segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Branca de Neve

 


MOANA RAQUEL


O primeiro longa-metragem de animação da história, Branca de Neve e os Sete Anões, da Disney, quebrou paradigmas ao deixar sua marca na história. Poucos acreditavam em seu potencial em 1937 (ano em que a obra foi lançada), mas o filme arrecadou mais de 8 milhões de dólares em bilheteria. Ele conta a história da princesa Branca de Neve, que, perseguida pela Rainha Má devido à sua beleza, se abriga na casa de sete anões em troca de seus serviços domésticos. Porém a Rainha a encontra facilmente e, disfarçada de mendiga, envenena a Princesa com uma maçã. Branca entra em um sono profundo, assemelhado à morte, mas é trazida de volta pelo “beijo de amor verdadeiro”.

O filme tem uma animação incrível, com cores vivas, e, apesar de tudo, suavidade nos movimentos, com exceção dos olhos da princesa, que raramente são vistos abertos. Os elementos usados nos momentos de medo e confusão foram muito bem pensados e conseguiram passar as emoções facilmente, sem mostrar nenhum tipo de cena explícita de sangue, envenenamento ou algo do tipo. Contudo, relevaram altamente outros tipos de violências “amigáveis” que os anões dividem entre si de tapas e batidas, bem como o beijo na boca de um homem praticamente desconhecido a uma mulher desacordada e, supostamente, morta.

Visto a partir da visão de uma mulher no século XXI, o longa poderia facilmente mostrar uma crítica à desvalorização comercial da beleza de mulheres acima de 40 anos e, até mesmo, a dificuldade de mulheres tidas pela sociedade como “bonitas” viverem normalmente sem o olhar e toque indesejado de homens. Mas a obra apela para a rivalidade feminina, onde uma bruxa, que poderia facilmente fazer uma poção para ficar mais bonita, escolhe criar uma maçã envenenada para matar a única pessoa que, segundo seu espelho mágico, é mais bonita do que ela. Como se não fosse o suficiente essa ser a relação das duas únicas mulheres retratadas na trama, suas histórias não são aprofundadas e o objetivo da protagonista não passa de algo supérfluo guiado pelo desejo de se casar com um príncipe com quem nunca conversou, sem grandes ambições além disso. E a Rainha Má, que poderia ter diversas outras preocupações na mente, administrando um reino, desvia de sua vida somente para matar quem é mais bonita que ela e supõe ser uma ameaça.

Portanto, apesar de ser um lindo musical de animação, visto atualmente, não passa de um deleite aos olhos, já que todas as suas representações, incluindo a dos anões, são extremamente distorcidas e não servem para nada além da alienação de jovens meninas.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Ó Paí, Ó

Ó Paí, Ó (2007), de Monique Gardenberg


Maria Emanoela da Silva Cadó


“Ó Paí, Ó” é um daqueles filmes que parecem estar desde sempre no imaginário do brasileiro, especialmente o brasileiro negro e nordestino. Algumas cenas icônicas e piadas foram tão reproduzidas desde seu lançamento, em 2007, que a sensação é de que todo mundo já o assistiu. Entretanto, para a geração daqueles nascidos na virada do milênio, as memórias podem ser difusas; a verdade é que, à época do seu lançamento, eu era uma criança. E somente agora, aos 25 anos, resolvi parar para assisti-lo do início ao fim, e foi uma experiência e tanto.

O cinema brasileiro pós retomada trouxe uma grande variedade de histórias e abordagens, numa época em que as grandes produções internacionais eram marcadas pelo advento das tecnologias de efeitos especiais. Na falta dos recursos dos grandes estúdios, nosso foco era narrativo e de olhar. “Ó Paí, Ó” surge nesse contexto, com um elenco

recheado de atores globais, e destaque para Lázaro Ramos, Dira Paes e Wagner Moura. Trata da vida de um conjunto de moradores de um cortiço no centro histórico de Salvador, precisando lidar com as adversidades da vida na periferia em pleno Carnaval. É baseado na peça homônima escrita por Marcio Meirelles e estrelada pelo Bando de Teatro Olodum, ao qual o filme é dedicado nos créditos finais e do qual fez parte grande parcela do elenco.

O desenrolar dos fatos ocorre quando a dona do edifício, a evangélica fervorosa Joana (Luciana Souza), resolve interromper o fornecimento de água do prédio como forma de punir os moradores por estarem curtindo a festa. São vários núcleos que se conectam: Roque (Lázaro Ramos) é um pintor e aspirante a cantor, de coração bom e apaixonado pelo Carnaval, que se interessa por Rosa (Emanuelle Araújo), afilhada de Neusão (Tânia Tôko), dona do bar local que frequentemente reúne a comunidade em festa; Reginaldo (Érico Brás) é um malandro taxista que trai a esposa grávida Maria (Valdinéia Soriano) com diversas

mulheres, incluindo a travesti Yolanda (Lyu Arisson), também moradora do cortiço, e Psilene (Dira Paes), irmã de Carmem (Auristela Sá), enfermeira que realiza abortos clandestinos e mantém um pequeno orfanato em sua casa. Em meio a tudo, os pequenos filhos de dona Joana, os inteligentíssimos Cosme e Damião (Vinícius Nascimento e Felipe Fernandes) saem pelas ruas do Pelourinho buscando as mais diversas maneiras de ganhar dinheiro dos turistas escondidos da mãe.

“Ó Paí, Ó” é, também, um musical. Com coordenação de trilha sonora de Caetano Veloso, traz seleção riquíssima e com a qual muitos de nós podemos nos identificar; desde repertório original do Olodum, passando por Edson Gomes, Ilê Ayê e composições do próprio Caetano. São cenas lindíssimas, muito bem construídas e que se conectam muito bem com a narrativa da obra, de maneira direta ou indireta. A estrela é, obviamente, Roque, apresentado como um artista sonhador que interpreta boa parte da trilha sonora, mas o carisma dos demais personagens é evidente.

Ao longo do filme, somos expostos a momentos do cotidiano daquelas pessoas que expressam inúmeros problemas sociais. Com teor humorístico ou não, são cenas que não apresentam dificuldade em comunicar a forma como questões importantes como desigualdade social, violência urbana, racismo e lgbtfobia perpassam a vida daqueles moradores, quase sempre utilizando como contraponto o conservadorismo representado na figura de dona Joana, ou o fato de que o centro histórico de Salvador, especialmente em época de Carnaval, agora vive em função de agradar os turistas, enquanto não há esforço do poder público em melhorar a vida dos moradores, que vivem em constante situação de pobreza e violência. Dessa forma, evidencia-se o significado sintomático do filme, que se torna ainda mais claro com os tristes acontecimentos finais.

Conclui-se, portanto, que este é um filme muito importante. Tanto do ponto de vista da experiência que ele traz, quanto no que diz respeito ao que ele deixa; ao que fica no espectador. É um gosto agridoce, um gosto de Brasil mesmo. Ao fim, nos perguntamos: como pode um lugar ser tão especial e tão sofrido ao mesmo tempo? Como pode tudo simplesmente seguir, paralelo a uma tristeza e uma impotência assim, tão profundas? São perguntas que seguem diariamente sem resposta, mas que já se tornaram parte de nós. E o que nos resta é, realmente, seguir.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Pulp Fiction

 


Eduardo Medeiros Gurgel de Faria


"Pulp Fiction", dirigido por Quentin Tarantino, é frequentemente elogiado por sua originalidade e inovação cinematográfica. No entanto, o que pode ser considerado como uma obra prima para alguns, pode não ser recebido com olhos tão apaixonantes assim por outros. “Pulp Fiction” tem uma falha grave que é uma das piores que um filme pode apresentar: a película tem um vazio imenso de significado.

Pulp Fiction conta com uma narrativa não linear inovadora que realmente é um de seus pontos fortes, mas, mesmo com esse quebra-cabeça narrativo admirável, a superlotação embaralhada de cenas mais atrapalha do que ajuda no desenvolvimento da trama. Essa obra audiovisual consiste basicamente em histórias cruas lançadas e organizadas seguindo uma sequência lógica a qual não parece ter nenhum elemento interessante responsável por uni-las. Na verdade, há sim um elemento, a violência, e essa violência se expressa potencialmente na obra de três formas: verbal, física e sexual.

Porém, a violência é um elo fraco do filme. Não que ela não se manifeste bem, muito pelo contrário, ela se manifesta até demais; e é justamente por isso que é um elo fraco; ela acaba se tornando apelativa e empobrece o filme ao invés de enriquecê-lo. A não ser que você seja o tipo de pessoa que goste de ver cenas macabras e sanguinárias e episódios pesados de muito sangue e guerra pelo puro prazer de vê-los, esse filme não irá te acrescentar nada de novo. Eu não tenho absolutamente nenhum problema com filmes violentos, até gosto, mas esse tema deve ser bem trabalhado na proposta para que valha a pena ter dependido tempo em visualizá-lo. Inclusive posso citar aqui filmes violentos os quais acho fantásticos e que dialogam coesamente com essa temática: “Tropa de Elite” e “Clube da Luta”.

A primeira vez que assisti ao Pulp Fiction pensei “qual a mensagem que esse filme me passou?” e cheguei à conclusão de que não havia me passado nenhuma. E isso realmente pode não ser um problema para um telespectador específico, mas para outros (como a mim por exemplo) pode ser. Quando assisti novamente obtive a seguinte mensagem: “o que uma arma apontada para a sua cabeça não é capaz de fazer”, todavia, acredito que essa mensagem foi mais mérito da minha criatividade do que da comunicação fílmica da obra em sim e talvez nem tenha sido exatamente o que o Tarantino quis comunicar ali.

Não tenho nada contra entretenimento por entretenimento, até gosto, mas quando se trata de temas tão sensíveis quanto a violência, acho que precisamos ter cautela e designar um objetivo claro do porquê estamos mostrando aquilo e o que queremos passar para quem está nos assistindo, porque se for só para testemunhar crueldade pura é preferível assistir ao noticiário local.

Também não tenho nada contra as cenas que não acrescentam em nada para a história principal, acho que, dependendo de como forem feitas, elas ajudam até a suavizar a narrativa e desopilar quem está assistindo. Porém, quando a quantidade dessas cenas é tanta que preenchem quase a totalidade da trama - aí sim vira um problema. Quase todas as cenas de Pulp Fiction são altamente descartáveis, embora que muito bem filmadas e dirigidas. Se o intuito do longa metragem era mostrar o poder de mise-en-scène do diretor, então ele cumpre seu papel e eu me calo, contudo, no quesito história, que é o mais importante para mim e para tantos outros, ele peca e muito.

Em resumo, enquanto "Pulp Fiction" é elogiado por muitos como um marco na história do cinema, seu apelo excessivo pela violência tanto física, quanto verbal e sexual e ainda a falta de uma mensagem central clara podem ser pontos de crítica para aqueles que preferem uma abordagem mais convencional e coesa no cinema. Se cada parte desse filme fosse uma obra curta isolada, elas receberiam isoladamente nota 10, mas quando se juntam e formam o longa por completo, não conseguem a coesão necessária e suas autossuficiências caem por terra quando unidas no que chamamos de Pulp Fiction.


Donnie Darko



PEDRO CAVALCANTI


Dirigido por Richard Kelly, “Donnie Darko” (2001) é um complexo filme que mescla elementos de drama, ficção científica e psicologia. Lançado em 2001, o filme explora a vida do personagem homônimo, um adolescente problemático que lida com questões existenciais e experiências temporais após escapar da morte, quando um homem vestido em uma fantasia de coelho amedrontadora o salva de uma turbina de avião que cai em cima de sua cama. A partir desse momento, a narrativa intrigante se desenrola com uma atmosfera sombria e misteriosa, apresentando um cronômetro para o “fim do mundo” e deixando espaço para interpretações subjetivas.

A obra mergulha nas confusões da mente de Donnie, abordando temas como isolamento, medo da morte e o desafio de encontrar significado na vida. A presença do coelho imaginário, Frank, adiciona uma camada surreal à trama, representando as ansiedades e influências obscuras que permeiam a psique de Darko. A conexão emocional é aprofundada pela trilha sonora envolvente e pela atuação impactante de Jake Gyllenhaal, que transmite efetivamente a angústia do protagonista, juntamente com os eventos que o interligam aos demais personagens da trama. Inclusive, toda a trajetória vivida por Donnie constrói um personagem mais maduro, corajoso, conformado, e que entende o seu principal propósito no plano intertemporal apresentado. Plano esse que consiste em recriar o momento da sua morte, e permiti-la para evitar o fim de tudo.

Sob a ótica técnica, Kelly utiliza elementos visuais e narrativos de maneira magistral. A cinematografia emprega uma paleta de cores sombrias para transmitir a atmosfera melancólica, enquanto a direção habilmente manipula a percepção temporal, desafiando as convenções narrativas. A trilha sonora, com destaque para "Mad World" de Gary Jules, intensifica as emoções e complementa a abordagem visual. A edição precisa contribui para a complexidade da trama não linear. "Donnie Darko" transcende as fronteiras tradicionais do cinema, proporcionando uma experiência cinematográfica rica e emocionalmente envolvente.

"Donnie Darko" se destaca não apenas por sua trama curiosa, e por vezes de desafiadora compreensão, mas também pela habilidade técnica e emocional que permeia cada cena. O filme revela a maestria de Kelly ao explorar temas profundos e complexos, oferecendo ao público uma experiência que transcende o convencional, e fazendo do longa-metragem uma peça única no panorama cinematográfico contemporâneo.


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

tudo em todo

 


TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO


Thaís Medeiros Fernandes


Todo mundo com um mínimo de interesse por cinema ou até física já ouviu falar de multiversos, teoria que explodiu na cultura pop nos últimos anos, apesar de não ser nada nova. Desde Rick and Morty ao universo da Marvel, esse conceito tem sido utilizado por diversos diretores e a dupla Daniel Scheinert e Daniel Kwan não fica de fora.

No filme “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, lançado em junho de 2022, os Daniels exploram a ideia de diversos universos existindo ao mesmo tempo, como bem aponta o título. A ficção científica conta a até então monótona história de Evelyn Wang, proprietária de uma lavanderia mal sucedida com seu marido excessivamente otimista Waymond. As coisas vão de monótonas a completamente instigantes quando outra versão de Waymond pula do alfaverso, onde humanos aprenderam a saltar para suas diferentes versões, para o mundo em que Evelyn estava. A partir daí, o conceito de multiverso é introduzido tanto aos telespectadores quanto a Evelyn, a quem recai a tarefa de salvar o mundo (todos eles) da grande vilã Jobu Tupaki.

É impossível resumir a grande e deliciosa bagunça dessa obra. Cheio de “plot twists”, absurdidades cômicas e ideias inimagináveis, o filme tem um ritmo que não deixa a desejar em momento algum, fazendo da loucura o grande tema dele. Parece que para a dupla de diretores, nenhuma ideia era doida demais para as telas – sério, o cenário mais insano que conseguir imaginar, os Daniels colocaram o dobro disso.

Para além de todo esse caos do multiverso, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” fala também sobre a experiência e as emoções humanas. O coração da história e a mensagem deixada é que, apesar de parecermos pequenos e irrelevantes dentro de todos esses universos, a simplicidade de ser humano, do amor e da empatia é o que dá sentido à vida. Em meio a tanta loucura, os Daniels conseguiram fazer uma ficção científica cômica, caótica e comovente (tudo ao mesmo tempo), e que com certeza vale a pena assistir.