sexta-feira, 29 de julho de 2022

One day at a time

 


Hévellin Rayane Mendes Abade


Em um formato seriado, One day at a time (Netflix) é uma nova versão de um programa de Tv com o mesmo nome. Na versão atual é possível acompanhar uma família de emigrantes cubanos formada por uma mãe dedicada que é ex-soldado do exército americano, uma avó tradicional e ao mesmo tempo excêntrica, uma adolescente inteligente, amável e de opiniões fortes e um pré-adolescente carismático e muito experto. Eles vivem em um apartamento modesto e confortável o que nos leva a conhecer mais um personagem importante dessa narrativa, o vizinho intrometido que é dono do prédio e posteriormente se torna parte da família Alvarez.

Apesar de todos os personagens da série fazerem parte do mesmo núcleo cada um em algum momento desenvolve um enredo particular. Cada temporada centraliza o foco no drama de um dos personagens, sem deixar que a narrativa dos outros caia no esquecimento, dessa forma ao final de cada temporada fica uma deixa para o tema a ser tratado na temporada seguinte.

A exemplo disso pode se notar no final de uma das temporadas que tratava da reconciliação de Elena (a filha) com seu pai, que anteriormente não havia aceitado sua sexualidade, mas termina com o pai da garota que também é um alcoólatra em tratamento assim como Schneider (o vizinho) contando para Penélope (a mãe) que aparentemente o vizinho recaiu ao vício, isso acontece literalmente no último episódio da temporada e na seguinte acompanhamos Schneider ser pego bêbado por Alex (o filho) e Lídia (a avó).

O homem encontra na família Álvares uma rede de apoio para recomeçar o tratamento do zero e lidar com tudo que o levou a regredir. Pode ser concretizado que é dessa mesma forma que os integrantes da série lidam com o drama de todos os personagens, se juntando e o apoiando e no fim sempre fica um aprendizado que lhes amadurecerá em algum aspecto.

One day at a time aborda vários assuntos socialmente importantes de maneira leve, didática e divertida, contudo, a sitcom trata principalmente da importância da família, da relação de amor, união e compreensão, por mais clichê que possa ser, observar os integrantes da casa se envolvendo cem por cento para ajudar a carregar as bagagens do outro passa exatamente essa mensagem e mostra o que se espera das pessoas a quem chamamos de família e do lugar que chamamos de casa.

Glee

Beatriz dos Santos Amaral e Maurício Santa Rosa Bigois


Qual o valor de um sonho? Para os alunos do New Directions, o sonho é como um combustível na direção do que eles tanto almejam, que é viver da arte. Porém o McKinley High é o pior lugar para querer ser artista, os jovens que decidem entrar no clube do coral, já podem esperar uma raspadinha ser jogada na sua cara. Essa é uma das principais formas de bullying que os jogadores e as lideres de torcida praticam com esses alunos, e o aval vem da treinadora e vilã mais carismática da série Sue Sylvester, que tem como missão destruir Will Schuester o professor do clube e os seus alunos. 

Will encontra no clube o amor e as recordações da época em que era jovem, então ele decide ser o novo diretor, que ao longo das aulas vai se envolvendo com a vida pessoal dos alunos, sendo não apenas um diretor mas um grande conselheiro para muitos deles. Dentre os jovens temos a Rachel Berry que é odiada por quase todos os alunos, incluindo seus companheiros de coral, o motivo? Ela é chata, egocêntrica e narcisista. Mas tem um grande talento e uma voz que deixa todos encantados, encanto esse que deixa o quarterback do time de futebol Finn Hudson apaixonado por ela. 

Não podemos deixar de citar outros personagens essenciais como o Kurt, Mercedes, Artie, Tina, Puck, Mike, Sam, o warble Blaine e Quinn, Santana e Brittany, a trindade profana. Todos eles com uma característica particular que representa quem eles são, considerados pela sociedade parte de uma minoria. Eles são totalmente opostos uns dos outros mas na sala do coral se tornam uma família, com o mesmo sonho. Juntos eles competem para fazer o New directions ser campeão da competição nacional de corais. 

A primeira temporada tem histórias como, gravidez na adolescência, gravidez psicológica, sexualidade, romances e tudo isso com muita música. Tendo mais de 700 performances em seus quase sete anos de exibição, covers dos maiores clássicos dos musicais aos hits atuais. Essa escolha das músicas é uma questão importante para compor o episódio, pois eles buscam passar a mensagem certa e que represente o estado de espírito do personagem que está cantando. 

O tema principal da série é sobre amizade e união, e mostrar que todos nós temos nossa importância. Eles usam do discurso que todos somos ‘’perdedores’’ por que o bullying que eles sofrem na série, destacando essas características que para alguns é um defeito, é algo que muitas outras pessoas possuem. Existe inclusive um episódio intitulado Born This Way, dedicado somente a esse quesito, onde eles vestem camisetas com seus defeitos e aprendem a ter orgulho deles. Mostrando para o público e os fãs da série que se identificam com os personagens, que está tudo bem em ser um ‘’perdedor’’. E é nesse lugar de empatia que a série consegue relatar diversas situações da sociedade com comédia e música, e faz com que o telespectador se sinta conectado e especial. Como diz a Rachel Berry ‘’Fazer parte de algo especial, te torna especial.’’

Bruno

 


Bem-vindo, Bruno! Com Spoilers…


Gisla Eduarda dos Santos Brito


A primeira e única temporada de “É o Bruno!” (2019), da Netflix, é uma série rapidinha, com apenas oito episódios, essencial e divertidíssima para os amantes de cães. A história gira em torno de Malcolm (Solvam Naim), um homem fascinado por seu cão, e que faria, literalmente qualquer coisa, para seu melhor amigo de quatro patas, o puggle Bruno. Os dois são inseparáveis e lidam com diversas situações típicas do mundo canino: problemas com vizinhos, guerra entre passeadores, pessoas que não recolhem o cocô de seus animais, amores problemáticos, psicopatas fãs de cachorros e, principalmente (a pior coisa para a dupla) a proibição de entrar no mercado do bairro.

Malcolm dá tratamento de rei ao seu cachorro e quer garantir que todos ao seu redor tratem o mesmo com o respeito que ele merece, quase como se fosse um deus. Na série, esse sentimento só é conquistado no fim do último episódio, em que podemos ver a redenção do Brooklyn, onde os dois vivem, mas não antes de muita luta (e porrada) por parte de seu amado dono.

O último episódio da minissérie intitulado “Bem-vindo, Bruno” é a representação final do maior desejo da dupla: entrar no mercado. Esse feito, não é só um simples ato para os dois, é a prova que Bruno não é qualquer outro cão, ele “é um ser humano também” como Malcolm diz. O interessante aqui, é que além de seu melhor amigo, podemos ter outra interpretação sobre o pet, que ele seria a representação do ego de seu dono e por isso Malcolm teria atitudes tão maníacas e precisaria protegê-lo a qualquer custo, já que qualquer atentado (por menor que seja) contra o bichinho, poderia levá-lo ao fundo do poço, como visto no sexto episódio da série.

Ainda sobre o final da primeira temporada, vemos o uso de uma linguagem cômica que utiliza a ferramenta da repetição de imagens e sons, fazendo com que você não consiga parar de assistir e rir. Visualmente, a entrada no mercado é retratada como um sonho, com trilha sonora de música clássica e câmera subjetiva centrada no Bruno, afinal ele é a estrela aqui.

Os personagens que apareceram durante o decorrer da série reaparecem para reafirmar e se curvar diante da superioridade da figura canina, mas o devaneio é repentinamente cortado para uma revelação chocante: Bruno possui uma vida dupla. E esse fato é, sem dúvida, o gancho necessário que a minissérie precisava para dar aquele gostinho de quero mais. Quem era Bruno no passado? Ele já teve outro dono? Será que seu nome é mesmo Bruno? Essas perguntas por enquanto não tem previsão de resposta com a indefinição da emissora sobre a renovação da série, mas sem dúvidas, a obra é uma boa pedida para um relaxante momento de fantasia.

veneno

 




Gil Araújo


A série Veneno é dirigida pela dupla Los Javis, a trama envolve a vida e morte de Cristina Ortiz Rodriguez, La Veneno, mulher trans que ganhou visibilidade na televisão espanhola e se tornou um grande ícone da cultura LGBTQIAP+. Em paralelo, a trama envolve a descoberta de Valéria e as maneiras de como sua vida se mistura com a de Cristina.

O encontro das duas protagonistas se configura através de uma reportagem sobre a saída de Cristina da prisão e sua estadia na cidade onde Valéria mora. A jovem que indiretamente acompanhou a trajetória de Cristina na televisão fica animada com a possibilidade de se encontrar com um de seus ícones. O encontro acontece, La Veneno e sua amiga Paca já reconhecem que Valeria una de nosotras - como citado pelas personagens. A partir disso, a história das duas se entrelaçam até a morte de Cristina.

Por ser uma minissérie há a preocupação de montar os arcos narrativos e finalizá-los, nesse sentido, Veneno é marcada por dois núcleos principais: a transição de Valéria e a visita ao passado de Cristina. Com isso, há na série muitos flashbacks enquanto La Veneno narra sua história de vida para a escrita do livro, planejado por Valéria, e, dessa maneira a narrativa vai se construindo através da transição de gênero de Valéria e a visita ao passado da estrela. O episódio 2 é muito provavelmente o mais representativo desse formato narrativo, intitulado "Un viaje en el tiempo" é todo concentrado na infância da protagonista e o começo da sua jornada de se entender mulher. Junto a esse, o episódio final fecha vários arcos narrativos incluindo o de ambas protagonistas de forma dramática e tocante.

O principal conflito apresentado na narrativa é a dúvida se a trajetória de vida de Cristina está sendo contada por ela sem mentiras. Assim sendo, toda a superfície da trama se estremece quando a dúvida aparece através da personagem Valéria, que confia e possui uma relação de afeto com o ícone da TV espanhola. 

Todavia, essa dúvida apresentada no episódio 5 só reforça o potencial dramático dessa biografia e passa a admitir que mesmo não sendo totalmente verossímil, a versão de Cristina perpassa por uma carga emocional muito pesada de lidar com seus traumas passados enquanto busca alcançar os holofotes da mídia novamente. O flashback de La Veneno ainda criança demarca muito bem como a fantasia se mistura com a dureza dessa história. Durante a cerimônia de primeira eucaristia Cristina corta um pedaço de sua roupa para simular um vestido e sobe ao altar da igreja vestida dessa maneira na frente de toda sua vila, enquanto ela narra a forma de como se sentiu preenchida em fazer aquilo, é representado na tela a cauda de um pavão abrindo suas penas quando se sente vista por todos naquele momento.

Nesse sentido, a produção da série acompanha o floreamento da narração de Cristina, tendo, por vezes, aspectos fantasiosos nos flashbacks, que funcionam quase como uma alternativa de evitar a dureza de uma vivência transgênero na Espanha. Assim sendo, a produção acompanha de maneira excelente a história que o roteiro constrói.

Quanto aos personagens, há três núcleos: a família de Veneno, sua comunidade e os profissionais envolvidos em seu período na televisão. 

O primeiro aparece primordialmente nas voltas ao passado que a série realiza, geralmente reforçando um lugar de dor, maus tratos e preconceito gerados principalmente pela figura de sua mãe. 

O segundo, representa, em primeiro momento, o desdém e a competição, principalmente no ambiente de prostituição que perpassa a história, mas logo acontece a reviravolta de se tornar um local de apoio e amor incondicional. 

Por fim, o terceiro núcleo, representa a oportunidade do sucesso que foi repentina e exploratória. Dessa maneira, pode-se concluir que todos os âmbitos da vida de Cristina lhe causaram dor de algum modo. A personagem se monta diante do telespectador enquanto um indivíduo que busca por amor e aceitação e, por poucas vezes, consegue alcançá-los.

Veneno é, por definitivo, uma excelente representação de como fazer uma série biográfica, em especial, de uma pessoa transgênero, todas as três atrizes que interpretam Cristina são trangêneros como a personagem bem como a parcela majoritária do elenco, demonstrando que a representatividade não se trata somente de contar essas histórias, mas também de como elas são contadas. A minissérie espanhola é um convite para que todos possam entender a jornada de viver seu próprio gênero e as batalhas que envolvem o processo de transição através do carisma e dor de La Veneno, a bomba da espanhola.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Trilogia da Terra

  


Uma análise comparativa dos filmes Terra para Rose (1987) O Sonho de Rose (2000) e Frutos da Terra (2008), de Tetê Moraes



Ygor Felipe Pinto


O presente trabalho tem por objetivo analisar os filmes da Trilogia da Terra: Terra para Rose (1987), O Sonho de Rose (2000) e Fruto da Terra (2008), da cineasta Tetê Morais. Para tanto, parto de uma análise comparativa entre os filmes, buscando apontar os procedimentos e elementos estéticos escolhidos pela diretora, identificando aproximações e distâncias entre as estratégias discursivas de cada narrativa. Como metodologia parto da análise pragmática de Luiz Gonzaga Mota (2013), utilizando seus procedimentos operacionais para debater a respeito dos sentidos expressados pela narrativa, levando em conta o contexto histórico de produção e as estratégias discursivas elaboradas pela diretora que dão sentido aos filmes.


Introdução

A Trilogia da Terra é uma série de 3 filmes documentais, produzidos pela diretora Tetê Moraes, em um espaço de tempo de 22 anos. Os filmes representam a história de luta do MST, sua evolução como organização e as ideologias que norteiam a lógica dos assentamentos, não o bastante, a partir do segundo filme, a diretora confronta os filmes anteriores aos personagens, medindo os efeitos recepção da narrativa do filme na vida dessas pessoas. O tempo tem papel fundamental no processo de construção discursiva, pois tanto os personagens quanto a diretora sempre estão em confronto com ele, questionando sempre sua posição anterior a tomadas de cenas.

O primeiro filme, Terra para Rose (1987) foi gravado em 1986. O filme conta a história do processo de ocupação da Fazenda Annoni, um latifúndio improdutivo de nove mil hectares, através da trajetória de Rose, uma militante histórica do MST, primeira mulher a dar à luz em um assentamento, que morreu em um suposto acidente, durante o processo de ocupação desta fazenda.

O Sonho de Rose (2000) narra a volta de Tetê Moraes aos assentamentos do Rio Grande do Sul, no filme a diretora reencontra os antigos militantes, evidenciando as transformações em suas vidas. Também encontra a família de Rose, descobre que após a sua morte, seu marido e filhos se afastam do movimento, indo morar em Porto Alegre. Lá ele reencontra Marcos, filho de Rose e primeira criança a nascer em uma acampamento do MST, que relata não lembrar da mãe e não ter sonhos. Após as gravações do filme, o MST decide conceder um lote à família de Rose, em função de sua luta e sacrifício pela reforma agrária, o que faz a família retornar aos quadros do movimento.

O último filme da trilogia é Fruto da Terra (2008), é um curta-metragem de 15 minutos, onde a diretora reencontra Marcos, na ocasião, estudante de medicina em Cuba. O filme aborda a trajetória de Marcus até chegar a universidade e o papel que os outros filmes possuem em sua vida. Também mostra um pouco das experiências de Marcos em Cuba.

Nessa análise irei aplicar o método de análise pragmática de Luiz Gonzaga Mota, para discutir a respeito das escolhas estéticas e conceituais empregadas pela diretora em seus filmes. Levando em conta que meu olhar sobre a narrativa se debruça sobre o contexto comunicacional da enunciação, onde tanto o contexto, quanto o de recepção devem ser levados em conta (Mota, 2013). Compreendendo que os discursos narrativos se constroem através de estratégias e astúcias comunicativas que decorrem dos desejos do sujeito narrador.

Ele recorre consciente ou inconsciente a operações e ardis linguísticos e extralinguísticos a fim de realizar certas intenções: as estratégias narrativas realizam-se em contextos pragmáticos e produzem certos efeitos de sentido de acordo com os contratos comunicativos e a burla consentida (e compreendida desses contratos cognitivos. A comunicação narrativa gera, assim, certo tipo de relação entre os sujeitos interlocutores: consciente ou inconscientemente o narrador investe na construção narrativa do seu discurso como um projeto dramático e solicita uma determinada interpretação de parte do seu destinatário (se essa interpretação se realizará de fato é outra questão. (Motta, 2013, p 126)

Irei adotar os procedimentos da Metodologia de Análise Pragmática consiste em um esquema de três planos de entendimento, sendo eles plano da expressão (linguagem ou discurso) corresponde à descrição, o plano da estória (ou conteúdo) equivale à análise, e o plano da metanarrativa (tema de fundo) o da interpretação. Em seguida defino os três níveis de narração, em que operam dentro das narrativas, sendo eles, narrador autor, narrador mediador e narrador personagem. Por fim iremos enquadrar os filmes nos sete movimentos narrativos: a intriga, o paradigma, os episódios, o conflito dramático, os personagens, as estratégias argumentativas e a metanarrativa.


Pano de expressão, estória e metanarrativa

O plano de expressão é como a narrativa é empregada, no caso das três narrativas analisadas, por serem filmes, é o audiovisual de não ficção (documentário).

Já o plano de conteúdo diz respeito a substância das histórias e o assuntos principais abordados, no casos dos filmes da Trilogia da Terra (1987 a 2008) é a Luta dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Rio Grande do Sul, focalizada na história da militante Rose, mártir na luta pela reforma agrária e símbolo do movimento e seus múltiplos (positivos e negativos) desdobramentos.

O plano meta-narrativo diz respeito aos subtemas e grandes temas empregados na narrativa, como por exemplo a “moral da história” ou quais discussões a narrativa que levar ao público. Nos filmes propostos para análise fica clara a centralidade de questões relacionadas à desigualdade no campo, concentração fundiária, falta de interesse de agentes políticos e violência policial e política, uma vez que trata da trajetória, até a pós a morte, da militante Rose, vítima de violência do campo, que faleceu sem ver seu sonho se realizar.


Níveis de narração

Como narrador-autor, temos a empresa que produz os filmes bem como suas fontes de financiamento. Quando falamos de contexto comunicacional esse narrador autor tem grande relevância, uma vez que, é quem financia e tem seus interesses expressos nas narrativas. Os filmes analisados foram produzidos pela produtora VemVer Brasil, de propriedade da diretora dos filmes, Tetê Moraes, assim podemos dizer que tanto o narrador-autor, quanto o narrador-mediador se coadunam, sendo eles a mesma pessoa. Contudo, precisamos identificar as linhas de financiamento e apoiadores financeiros das obras.

O primeiro filme (Terra para Rose, 1987) teve apoio da EMBRAFILME, FUNTEVÊ/TV-E RIO, FINEP, IBASE, SECRETARIA DE ATIVIDADES SÓCIO CULTURAIS/INACEN (Coordenadoria de mulher e cultura), FUNDAÇÃO NACIONAL PRÓ-MEMÓRIA, CEDI, CESE, MST-RS; Segundo filme (O Sonho de Rose 2000), com o apoio da Lei de Incentivo à Cultura n 8.313 (MINC), BILANCE, ICCO, INCRA/PNUD Terceiro filme (Fruto da Terra, 2008) teve apoio, AECID – Centro Cultural São Paulo, CTAV – Centro Técnico Audiovisual, MINC – Secretaria do Audiovisual.

Todos os apoios partem de instituições de caráter social e financiamento público, isso deixa claro o caráter militante dos filmes, sendo essas narrativas contestadoras da situação abordada, a desigualdade fundiária e a violência política no Brasil. Olhar as fontes financiadoras é um grande passo para entender a posição ideológica e a mensagem que as narrativas empregam.

Para identificar o narrador-personagem precisamos lançar um olhar aos elementos estéticos do filme. As Sonoras: Assentados, políticos, fazendeiros, transmitem memórias e opiniões, que reforçam a mensagem do cineasta, também são utilizadas como contraponto de opiniões na montagem dos filmes.

Outro fator importante é Voz Over (voz de Lucélia Santos) narra a história contextualizando, trazendo dados estatísticos, históricos e factuais. No primeiro filme ela é um elemento organizador das ações, empregada de uma forma muito parecida com a feitura de documentários expositivos e reportagens jornalísticas. Já no segundo serve como elemento de ligação entre os episódios. Por exemplo, quando a diretora vai de um assentamento a outro, a voz over traz alguma informação histórica, ou sobre a organização do MST.

O Arquivo é um elemento fundamental, tanto para a cobertura da voz over, quanto para contextualizações históricas. A partir do segundo filme ele ganha maior relevância pois a diretora sempre usa o arquivo para fazer comparações entre o antes e depois das personagens, colocando as personagens em choque com o passado.

A partir do segundo filme a presença da diretora é mais frequente, ela interage com as personagens aparecendo em cena com eles. Dessa forma a diretora se converte em personagem participando das ações em cena.

Tomadas de cenas em som direto: Quotidiano do acampamento, registros das negociações com a polícia, palavras de ordem, cantos. Essas cenas trazem o aqui e agora das ocupações, das marchas e o cotidiano dos acampamentos. Procedimentos esse remonta o perfil de produção do cinema direto e cinema etnográfico francês.


Os sete movimentos analíticos

1º Movimento: compreender a intriga como síntese do heterogêneo

Para compreender a intriga dos filmes foi necessário compreender suas partes e como elas interagem com o todo narrativo, para tanto, fiz uma decupagem dos filmes analisados, onde os filmes foram “desmontados” para identificar como se opera a intriga dessas narrativas.

Terra para Rose (1987) Foca na personagem Rose, mostrando suas posições e luta. É dividido em capítulos que narram a luta pela desapropriação da fazenda Anoni, Mostrando o nascimento do filho de Rose, o acampamento ao redor da fazenda, a caminhada até a cidade de Porto Alegre, a volta ao acampamento, a violência policial e a morte de Rose (atropelada por uma carreta desgovernada nas proximidades de Fazenda Anoni). A voz Over guia a história, sendo reforçada pelas imagens in loco dos eventos e as sonoras dos diversos agentes envolvidos.

O Sonho de Rose (2000) é focado na relação da cineasta (personagem) com as personagens. Faz usos de flashes backs, com imagens do filme de 1987 e atuais. A voz over surge possui papel de elemento de ligação. Ao invés de capítulos temos as visitas da cineasta aos assentamentos, apresentados como cartelas. O auge da narrativa está no encontro de Tetê Moraes com a família de Rose, principalmente a entrevista com o menino Marcos, que diz não lembrar da mãe, não sonhar e querer ser pintor como seu pai, totalmente afastado do antigo sonho de sua mãe de ter uma terra para plantar.

Frutos da Terra (2008) e foca na relação da cineasta com Marcos, filho de Rose e a primeira criança a nascer num assentamento do MST. Esse filme é um resultado do filme anterior, já que após as gravações o MST, resolveu acolher a família concedendo um lote de terra, o que fez toda a família voltar ao movimento Marcus faz curso de medicina em Cuba, onde as cenas são gravadas. A voz over agora é do próprio Marcos, que fala sobre as mudanças de sua vida, sua relação com a mãe e o MST. O momento atual de Marcos é sempre contraposto com cenas dos dois outros filmes.


2º Movimento: compreender a lógica do paradigma narrativo

A lógica do paradigma narrativo muda com a produção dos filmes. Enquanto o primeiro filme é centrado na trajetória de Rose, nos filmes seguintes o foco das ações são os encontros dos personagens com a diretora, que a partir daí levanta questões referentes aos trabalhos anteriores. A personagem Rose sempre é lembrada, em arquivos e depoimentos.

Os filmes vão se desdobrando uns nos outros, Terra para Rose, a luta de Rose por terra e sua trágica morte; O Sonho de Rose, retorno de Tetê Moraes para saber se o sonho de Rose havia se realizado e como estão os outros integrantes do MST registrados em 87 e como o movimento se desenvolveu nesse período; por fim Frutos da Terra, a realização do sonho de Rose, pois sua família estava assentada e seu filho estudando medicina em Cuba graças aos convênios do MST com o estado cubano.


3º Movimento: deixar surgirem novos episódios

Terra para Rose: 6 capítulos – Prólogo (sem cartela); Pressão; A Espera; O Confronto; O Sonho; A Trégua. As cartelas são igual com a imagem de uma carroça em cima de uma monte ao pôr do sol, só mudando os texto.

Sonho de Rose: Cada assentamento é um capítulo, onde ocorrem os encontros entre a diretora e as personagens.

Frutos da Terra: Curta metragem sobre a vida de Marcus em Cuba.


4º Movimento: permitir ao conflito dramático se revelar

Foram identificados os seguintes conflitos dramáticos nas obras?

Terra para Rose: A luta pela terra, sob a perspectiva da desigualdade e violência no campo. Personagem Rose personifica esse conflito.

O Sonho de Rose: A luta pela conquista da terra pela família de Rose, que até então havia deixado o movimento, ao final do filme o MST consegue assentar o companheiro e os filhos de Rose (filme como mediação da conquista familiar) Secundário: As transformações na vida das personagens do primeiro filme.

Frutos da Terra: Como Marcus lidou com sua presença nos filmes, com a perda precoce da mãe e como chegou a cursar medicina em Cuba. A importância de um movimento social organizado e multidisciplinar e sua militância no MST.


5º Movimento: personagem: Metamorfose de pessoa a persona

São três os personagens principais da série, Rose, Marcus e Tetê Moraes, pude identificar que a história gira em torno de suas ações e memórias, norteando assim a narrativa.

Rose, militante do MST que se torna mártir no primeiro filme. A construção dessa personagem é muito forte no primeiro filme, o que a torna um símbolo do movimento por sua luta e por sua entrega. A trajetória de Rose é central para pensar a série de filmes, sob sua órbita emergem outras histórias e temas a serem debatidos.

Marcos Tiaraju Correa da Silva, filho de Rose, primeira criança a nascer em um assentamento do MST. Sua trajetória é marcada pelo afastamento do movimento quando criança e seu retorno, que fica evidente no terceiro filme, como estudante de medicina do MST. Marcus simboliza as conquistas do movimento, seu sucesso e sua internacionalização.

A diretora Tetê Moraes, que aparece em imagem e interage em cenas com as personagens, troca com elas memórias, se tornando um elemento mediador, entre as obras.


6º Movimento: as estratégias argumentativas

São muitas as estratégias argumentativas para produção de um documentário. Aqui já escrevi um pouco sobre algumas dessas estratégias como a voz over e o arquivo. Também podemos encontrar nos filmes influências de diferentes escolas do cinema documentário como o cinema direto, que privilegia os encontros entre cineasta e personagens e depoimentos “no calor do momento” (ex manifestações). Outra estratégia vem de encontro com o documentário expositivo, onde a voz over guia as ações que aparecem na tela, construindo uma relação de som e imagem, por vezes de ilustração ou de oposição argumentativa.


7º Movimento: permitir às metanarrativas aflorar

Esses filmes têm por objetivo trazer uma visão positiva do MST, não entram em muitas polêmicas em relação ao movimento, as únicas que pude identificar são relacionadas aos assentados trabalharem em cooperativas ou para si, o que não apareceu, nas sonoras, ser algo tão polêmico entre as personagens. O que os filmes procuram transmitir é a questão da desigualdade no campo, simbolizada pela ocupação de áreas como da fazenda Annoni, um latifúndio improdutivo de 9 mil hectares de terras. Desse tema afloram outros subtemas como a falta de comprometimento político e a violência por parte do estado.

Nos dois últimos filmes a diretora expande essa visão e além das questões referentes a desigualdade, levanta-se questões relacionadas ao trabalho em cooperativas e agroecologia. Trabalhar de forma cooperada e unida sob uma base de preceitos agroecológicos, ou seja, alimentos limpos que respeitam a natureza tem sido uma das principais bandeiras do MST.


Conclusões

Os filmes da Trilogia da Terra, são um conjunto de filmes que abordam a luta e a organização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Podemos concluir que um filme é o desdobramento do anterior, evidenciando a busca da diretora por simbolizar o MST por meio dos personagens Rose e Marcos, mãe e filho que participam ativamente das lutas do movimento.

As propostas discursivas da diretora modificam muito a forma estilísticas dos filmes, enquanto Terra para Rose, temos um grande cuidado com planos (direção Walter Carvalho) e em registrar os vários momentos da personagem Rose e seu filho recém-nascido, com contextualizações históricas, trazendo para discussão a voz de autoridades, pesquisadores e políticos ou outros dois se baseiam nos encontros da diretora com as personagens e as mudanças em suas vidas após o lançamento do primeiro filme, assim. Terra para Rose é como um ponto de partida para as outras narrativas.

O sonho de Rose (2000) teve um papel importante para a família de Rose, já que a partir das gravações desse filme, os filhos e marido de Rose realizaram o sonho de ganhar um lote de terra no Rio Grande do Sul. Mostrando assim o potencial mobilizador e transformador que as narrativas audiovisuais possuem.

Por fim, Frutos da Terra (2008) simboliza a realização do sonho, a ascensão social de quem foi tão massacrado pela sociedade. Isso se dá pois o filme foca unicamente na relação de Marcos com os filmes realizados por Tetê Moraes, ela chega a dizer em um momento “esses são os filmes da sua vida”. Em entrevista em O Sonho de Rose, Tetê questiona Marcos se ele lembra de sua mãe, se tem sonhos e o que quer ser quando crescer, Marcos responde que não lembra nada da mãe, que não sonha e quer ser pintor como o pai. Em Frutos da Terra fica clara a mudança de perspectiva que o filme anterior gerou na vida da família do garoto.

Ainda há muito que se refletir sobre os filmes, transmito aqui uma primeira análise que será o primeiro passo para reflexões mais profundas, com base em entrevistas com a cineasta e com os personagens envolvidos.



Referências

MOTA, Luiz Gonzaga, Análise Crítica Narrativa - Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 2013, 254p

Filmes

Terra para Rose (1987) https://www.youtube.com/watch?v=1ZlqjK4K1-0

O Sonho de Rose (2000) https://www.youtube.com/watch?v=xP2Jm23RJ9Y

Fruto da Terra (2008) https://www.youtube.com/watch?v=EzGqqYJlWZI

Heartstopper

 


 Matheus Vinícius Fernandes de Menezes


A série “Heartstopper” dirigida por Euros Lyn e produzida por Patrick Walters, foi inspirada na webcomic escrita por Alice Oseman, que também supervisiona a série. Ela conta a história de dois adolescentes que estudam na Truham Grammar School for Boys, o Nick Nelson (Kit Connor) e o Charlie Spring (Joe Locke). Nick aparenta ser o típico adolescente de filmes americanos, o popular que joga rugby, porém ao conhecer Charlie ele vai perceber que não é apenas isso. 

Ao serem colocados como dupla numa matéria, Nick e Charlie desenvolvem uma amizade um tanto inesperada, já que Nick é popular e Charlie costumava sofrer bullying até o ano anterior ao enredo da série, por descobrirem que ele é gay. Charlie Spring é um garoto tímido porém sem ter vergonha de quem ele é, sempre acompanhado de Tao e Isaac, seus amigos e protetores. Ao conhecer Nick ele logo desenvolveu um “crush” por ele, e a partir disso a história se desenvolve num romance inesperado. Nick que é colocado como hétero, por pressão social, descobre que é bissexual após dúvidas e questionamentos sobre seus sentimentos por Charlie, se afastando do seu antigo grupo de amigos ao perceber que não fazem bem a eles. 

O enredo ainda conta com sub enredos paralelos ao principal, tendo Tara e Darcy, um casal lésbico como um núcleo, novas amigas de Nick, e também Tao e Elle, amigos de Charlie quem estão desenvolvendo uma relação mais íntima. 

Heartstopper é uma série feita por e para o público LGBTQIA+. Alice Oseman é não-binária e o elenco conta com pessoas trans, gays, lésbicas e bissexuais. Além de passar uma bela mensagem sobre representatividade e aceitação, também conta um pouco sobre bullying e os traumas que ele pode ocasionar, tudo isso de um jeito leve e com uma estética fazendo jus a sua inspiração, que é a webcomic de mesmo título, ao colocarem elementos animados nas cenas que indicam e representam sensações e sentimentos dos personagens na cena e também influencia a quem assiste, algo que também acontece nos quadrinhos. Além de ter uma ótima trilha sonora com cantores ingleses locais, para remeter ao local da série, um interior na Inglaterra. 

É uma ótima série para todos os públicos e todas as idades, fazendo crianças que fazem parte da comunidade LGBTQIA+ se sentirem representadas desde pequenas, e também fazendo com que pais ou futuros pais entendam um pouco sobre como é esse processo de aceitação de uma criança/adolescente LGBT.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Stranger Things2

 

Confrontando as emoções

Crítica da quarta temporada de Stranger Things


João Pedro Ramalho


A quarta temporada de Stranger Things, popular série da Netflix que lançou seus mais recentes episódios entre maio e julho de 2022, distanciou-se de uma certa ludicidade presente em anos anteriores e mergulhou fundo em um suspense psicológico. Dessa vez, a história gira em torno do embate entre Eleven (Millie Bobby Brown), Mike (Finn Wolfhard), Dustin (Gaten Matarazzo), Lucas (Caleb McLaughlin), Will (Noah Schnapp) e Max (Sadie Sink), versus o principal vilão do Mundo Invertido: Vecna (Jamie Campbell Bower). Nessa jornada contra um ser de outra dimensão, cujo modus operandi consiste em matar jovens que vivenciam traumas do passado, os adolescentes da fictícia cidade estadunidense de Hawkins também precisam enfrentar seus próprios medos, como o temor pela inadequação em meio à sociedade dos anos 1980.

O fato de Vecna ter preferência por adolescentes que passam por problemas emocionais é apenas um dos sinais de que o mote da trama é a preocupação com as questões psicológicas. Além dele, pode-se destacar a forma como o vilão leva suas vítimas: em alucinações, vivenciadas no tempo psicológico das personagens, Vecna as “traga” impondo sua mão sobre as cabeças, como se dominasse suas mentes e, por consequência, seus corpos. Já uma das formas de fugir do monstro da temporada é apelando para as sensações, através da audição da música preferida da personagem.

Contudo, não são apenas os protagonistas de Stranger Things que se confrontam com as emoções ao longo da temporada. O ambiente construído na série envolve os espectadores no suspense, reforçado pela maneira como a ação do vilão se desenvolve. No episódio de estreia, por exemplo, Vecna não ataca logo na primeira aparição. Os sinais de sua atuação, como o ressoar das batidas de um relógio de pêndulo, são apresentados gradualmente, acendendo a expectativa e o medo do público, até que, por fim, o ser do Mundo Invertido faz sua vítima inicial.

Nesse jogo psicológico, calcado em uma trama cheia de reviravoltas e acontecimentos sobrenaturais, a quarta temporada de Stranger Things constrói um ambiente mais sombrio e menos lúdico, mas ainda convidativo. Ao abordar os traumas e temores vividos pelas personagens, a série chama o público a refletir, também, sobre suas dores e seus receios. No final, a qualidade da história apresentada e os sentimentos evocados pela série fazem essa experiência, que pode não ser tão fácil, valer a pena.

STRANGER THINGS

A metamorfose

ANNE PENHA 

A série estadunidense Stranger Things, criada e dirigida pelos irmãos Matt e Ross Duffer para a plataforma de streaming Netflix, em 2016, apresenta 4 temporadas com 34 episódios. A série é ambientada na década de 1980, situada na cidade rural fictícia Hawkins, Indiana. Os Irmãos Duffer apresentam na sua tessitura elementos de vários gêneros cinematográficos para compor a narrativa fílmica, desde o gênero de ficção científica ao drama adolescente, de modo a entrelaçar com elementos sobrenaturais. 

Na narrativa acompanha-se os personagens principais Will Byers (Noah Schnapp), Mike (Finn Wolfhard), Lucas (Caleb McLaughlin), Dustin (Gaten Matarazzo) e Eleven (Millie Bobby Brown) em suas peripécias ao longo das temporadas, que se têm a amizade e o amadurecimento como plano de fundo. 

A princípio, assim como as demais temporadas, a quarta temporada revisita e faz referências aos clássicos do cinema da década de 1980. A trama em cada temporada vai aprofundando-se nos conflitos íntimos, psicológicos dos personagens, trazendo aos espectadores não apenas a ambientação da adolescência nos anos oitenta com suas tensões e dramas, mas também temas universais, como o amadurecimento, o luto e o bullying. 

Em cada temporada surgem novos personagens que vão trazendo mais núcleos narrativos para série. Assim, além dos personagens principais da série, têm-se a Maxine "Max" Mayfield (Sadie Sink), que entrou na segunda temporada. 

No primeiro episódio da quarta temporada, observa-se um paralelo entre Max e Eleven, pois são um dos arcos narrativos que se entrelaçam na série. Assim, se por um lado temos os traumas expostos de Max por meio dos pesadelos, após a morte do irmão na terceira temporada, do outro lado temos as dores da heroína Eleven, não apenas com a perca dos poderes, mais adificuldade em viver uma nova vida longe dos amigos e do pai, Hopper (David Harbour). 

A narrativa vai utilizando elementos da linguagem cinematográfica desde a paisagem sonora aos elementos cénicos para interligar os personagens. Com isso, na progressão delas são evidenciadas a jornada das heroínas, conceito cunhado por Maureen Murdock, em 1990. 

Dessa forma, a partir dos flashbacks, dos pesadelos, das alucinações dos personagens vai sendo introduzido na trama o antagonista Vecna (Jamie Campbell Bower) que entra na mente dos personagens na narrativa. Com isso, fazendo uma referência a um dos ícones do terror da década de oitenta, Freddy Krueger. A partir disso, têm-se a estrada das provações das duas personagens, ambientando o espectador na ilusão do sucesso, na desconstrução e na descida das heroínas. Por fim, ao longo da temporada elas vão enfrentamento seus traumas na busca e reconstrução de si, na compreensão do outro e das diferenças para resolver os seus conflitos internos perante o mundo.

Nosedive

 Somos medidos pelo olhar dos outros?

José Fernando Barbosa de Azevêdo

Maria Luiza de Lima e Silva Figueiredo


“Black Mirror” (2011) é uma série antológica de ficção científica, que aborda de forma satírica e obscura os aspectos de uma sociedade dominada pela tecnologia. Um desses episódios, intitulado “Nosedive”, conta a história de Lacie Pound (Bryce Dallas Howard), uma mulher que tenta se tornar popular pelas mídias futuristas, que regram a dinâmica social e a imagem individual de cada sujeito. No entanto, no decorrer do enredo, o que ocorre é o contrário do desejado pela personagem.

“Nosedive” aborda a preocupação excessiva com a imagem individual perante os demais agentes sociais. Essa perspectiva é apresentada de forma amplificada pela tecnologia. Trata-se de um comparativo com o mundo real, tendo em vista a maneira que as redes sociais criam e intensificam padrões de vida em diversos aspectos, influenciando internautas que, então, são representados por Lacie. Que não demonstra seus verdadeiros sentimentos, que se censura ou expõe muito, só para ser “aprovada”.

Como a série satiriza as adversidades introduzidas pela tecnologia, com “Nosedive” não seria diferente: o episódio mostra uma crítica à interação virtual excessiva em detrimento das relações reais, e o impacto que esta dinâmica causa na impressão que as pessoas desejam passar. Por isso, há uma preocupação em representar cada efeito deste contexto por meio de diversos personagens e situações mostrados no enredo. 

O trabalho feito em torno da história, em especial sobre a evolução de Lacie, foi muito feliz. A junção de cores pastéis combinou com a atmosfera do sinistro da rede social presente no enredo. Além disso, a trilha sonora trouxe todo um significado para cada ação desenvolvida. Tudo isso parece óbvio, mas só um episódio forte dramaticamente consegue segurar a narrativa e realçar tantas críticas bem feitas.

A intriga é percebida em “Nosedive”, em um plano secundário, em todas as cenas que tratam dos resultados da rede social. Lacie fazendo uma análise de insights mais parece uma sessão de terapia, por exemplo. A trama vai se desenrolando, então, como um conjunto de pequenas atitudes sinistras e espetaculosas. 

Nesse sentido, as ações das personagens, que sempre visam algo, compõem um todo significativo inteligente, em que os aspectos psicológicos são trabalhados de forma surreal. “Nosedive” é expressivo, tocante e chocante na medida do necessário para refletirmos sobre nossas ações virtuais. Quanto de aprovação dos outros precisamos?

terça-feira, 26 de julho de 2022

His Dark Materials

 

Luiz Julião 

Sabrina Beatriz


Na primeira parte da série acompanhamos Lyra. Uma órfã que vive na faculdade de Oxford cresceu em meio a estudiosos e catedráticos, presa em um mundo do qual sempre sonhou se libertar. A garota é a nossa protagonista no começo da série. Com o desenrolar da história conhecemos Will, o segundo protagonista. O garoto também vive em Oxford, mas não na Oxford de Lyra. Will vive em um outro universo. 

No mundo de Lyra os daemons existem como a alma ou consciência em forma de animal que caminha ao lado das pessoas e podem assumir a forma de vários animais diferentes. Ao decorrer da série descobrimos que os daemons são ligados aos humanos através do Pó. Quando a criança atinge a puberdade o Pó se fixa e seu daemon assume uma forma fixa. O Magisterium vê isso como o motivo de tudo que é ruim e para acabar com todo o mal do mundo é necessário cortar essa ligação e separar o ser da consciência. Transformando a criança em um adulto sem vida que apenas obedece ordens sem questionar. 

O Magisterium quer ordem e obediência. Todos que tentam desviar do que é estabelecido acabam excluídos da sociedade ou mortos. O povo gipsio é vítima do Magisterium por não seguir à risca o que é imposto e por isso são pessoas sempre à margem da sociedade, gente que não é bem vista. Assim como as feiticeiras e os ursos de armadura, que são tão afastados da vida comum imposta pelo Magisterium que ganharam status de lenda. 

His Dark Materials aborda temas como família, escolhas, livre arbítrio e liberdade. A série faz esse paralelo constante com grandes instituições, principalmente religiosas que demandam apenas obediência cega. Que excluem qualquer um que não siga à risca as regras estabelecidas. A história convida o espectador a pensar mais a fundo em suas escolhas. Por que elas são feitas? Por que deveriam ser feitas? Quais as consequências de suas ações? A busca pelo conhecimento e pela verdade, sem deixar se levar pelo que é imposto. 

Por fim, a série tem uma fotografia belíssima que só agrega a narrativa. O roteiro é fluido e coeso. Explicando o que deve explicar e quando deve explicar. O mistério do que está acontecendo na narrativa só nos deixa mais engajados querendo saber o que vem a seguir. Dafne Keen é a Lyra. Ruth Wilson é a Sra Coulter. E a interação entre as duas é sempre algo maravilhoso de assistir. Principalmente nas cenas que as duas entram em conflito. É uma boa série. Uma viagem divertida que entrega o que promete do início ao fim.

Gravity Falls

 Em Algum Lugar da Floresta

Maria Luiza Mafra Silva, 
Paulo Henrique de Araújo Medeiros

Criada por Alex Hirsch e produzida pela Disney Television Animation, Gravity Falls: Um Verão de Mistérios (2012 - 2016) é uma das animações modernas mais influentes, devido principalmente ao seu belo encerramento (dividido em duas partes intituladas Estranhegeddon 3: Recuperando Gravity Falls e Estranhegeddon 4: Em Algum Lugar da Floresta), se sustentando qualitativamente inclusive a partir dos critérios pragmáticos analíticos mais bem quistos. 

Iniciando pela análise geral, a série inteira mas em suma seu capítulo final, são sim riquíssimos: na linguagem, que é direta, lúdica, estrutural e expressiva, pautando-se em recursos e discursos hiperbólicos e moralistas, com uma tipologia expositiva porém sutil nos limites; no conteúdo, onde vemos uma virtualidade fictícia e fantasiosa, mergulhada em uma “salada” de mitologias ressignificadas por uma roupagem contemporânea, romantizando vertentes oníricas, irreais e cômicas; e na metanarrativa, com um conjuntivo folclórico, lendário e quimérico, misturando fabulações clássicas e coetâneas funcionais à explorar incontáveis arquétipos, isto através de motes cotidianos (como problemas pessoais e relações afetivas) e não cotidianos (como resolução de mistérios sobrenaturais, conspirações multiversais e o próprio apocalipse). 

Já narrativamente, as ideias mágicas e jocosas da direção de Alex, assimiladas pela leveza pueril aderente as típicas produções da Disney, são dissolvidas em duas temporadas que englobam uma sequência de suspense, mistério e acontecimentos estranhos, direcionados pelos principais agentes narrativos: os protagonistas e irmãos gêmeos Dipper e Mabel Pines. 

Assim, encaminha-se o enredo para o arco final, marcado pelo fenômeno fantástico do Estranhegeddon. Inclusive, sobre o episódio final em si, é retratado de forma inteligente a força de vontade e união entre Dipper, Mabel e sua equipe de amigos, que buscam criar um plano para enfrentar o vilão Bill Cipher e recuperar o controle da pacata cidade de Gravity Falls, recém dominada por estranhezas interdimensionais. Sendo assim, são designados vários elementos visuais (e suas respectivas sonoridades) que reforçam uma “estética do bizarro”, representada por coisas como: olhos gigantes metade morcegos, uma pirâmide gigante suspensa no céu, uma cabeça humana gigante com um braço embutido, transmutações bizarras do vilão principal, etc. 

Ademais, ressaltam-se os sentimentos das personagens e como eles foram importantes para o resultado final da batalha, dessa vez discutindo a reconciliação dos gêmeos Stanley e Ford (tio-avôs de Dipper e Mabel), que tiveram que renunciar as desavenças para salvar Gravity Falls, deixando assim uma mensagem positiva tanto para seus sobrinhos quanto para nós telespectadores.

GREYS ANATOMY

 

BEATRIZ PINHEIRO DA SILVA

Greys Anatomy é uma série de TV americana, criada por Shonda Rhimes e exibida em 27 de março de 2005. A série acompanha a vida pessoal e profissional de internos de cirurgia e seus supervisores (residentes e atendentes), que trabalham no Hospital Seattle Grace Mercy West (hoje em dia Hospital Memorial Grey Sloan), localizado em Seattle. 

 O arco principal é da protagonista Meredith Grey (Ellen Pompeo), seu par romântico e atendente Derek Shepard (Patrick Dempsey), seus amigos internos Cristina Yang (Sandra Oh), Izzie Stevens (Katherine Heigl), George O’malley (T.R. Knight), Alex Karev (Justin Chambers), sua residente Miranda Bailey (Chandra Wilson) e seu chefe geral de cirurgia Richard Webber (James Pickens Jr.). 

Na oitava temporada, iniciada em 2011, os ambientes eram praticamente os mesmos, mas o elenco já estava bem modificado. Dentre tantos acontecimentos na temporada, o episódio mais forte em termos de roteiro, sonoplastia e fotografia, foi sem dúvidas o episódio 24, último da temporada, que trouxe um trágico acidente aéreo na temática principal, contendo parte do seu elenco principal da época. Presentes no acidente estavam Meredith, Derek, Cristina, Lexie (irmã de Meredith), Mark (par romântico de Lexie) e Arizona (pediatra do hospital). 

O episódio inicia com a cena do acidente, intercalada com uma cena já conhecida pelo público de Greys, que foi ao ar na primeira temporada, onde Richard apresenta o hospital aos novos internos e conta como a vida deles iria mudar. Esse início trouxe uma tensão ao momento, onde a fala de Richard e os gritos de desespero do acidente tornam tudo muito mais tenso. A partir daí o episódio mostra mais fortemente as características e a essência de cada personagem na luta pela sobrevivência. Além disso, a ambientação do acidente, ocorrido no meio de uma floresta, traz um ar mais sombrio as cenas, que contem diálogos profundos e situações bastante difíceis no decorrer do episódio. As cenas são bem construídas e equilibradas, ao passo que não é desconfortável sair de cenas tensas do acidente para as cenas de romance no hospital. Alguns diálogos trazem esse equilíbrio, como exemplo a cena de Cristina preocupada com seu sapato perdido em meio ao caos do acidente. 

Greys Anatomy conseguiu chocar mais uma vez neste episódio, com muito drama, diálogos intensos e mortes. Foi um episódio que se destacou dos demais, pois trouxe algo não tão realista, mas que combinou com o enredo da série, tanto pelo drama excessivo quanto pelas cenas sangrentas, até difíceis de assistir. 

Euphoria:

Complexidade e subjetividades juvenis


TAIANE CRISTINA DE MEDEIROS SILVA  

Ao olharmos para o passado escolar é possível lembrarmos como um momento nostálgico que vez ou outra, queremos voltar (ou não). O contexto escolar é terra fértil para a série Euphoria da HBO lançada em 2019 e dirigida por Sam Levinson. Ao retratar temas maduros vivenciados por adolescentes de 15 a 18 anos, a série tem como foco principal a história de Rue (Zendaya) e a sua dificuldade em se recuperar do vício das drogas enquanto vive o longo luto pela perda do pai e as suas descobertas afetivas juvenis. Em uma sátira das séries adolescentes, com cores quentes e bem iluminadas, Euphoria nos traz tonalidades de cores frias, saturadas e com baixa iluminação, dando maior dramaticidade e seriedade à obra.

Rue Bennet é a narradora personagem a quem somos apresentados no primeiro episódio. Logo, sabemos que o seu primeiro contato com as drogas foi na infância com seu diagnóstico de Transtorno Obsessivo Compulsivo, e adiante, com os medicamentos do pai doente de câncer terminal. A história da série é contada sob seu ponto de vista intercalando os momentos bons ou ruins da sua trajetória. Entretanto, mesmo estando em contato com o narrador-personagem Rue, o espectador pode ter acesso ao narrador mediador que são as imagens e todos os elementos audiovisuais que ora ratificam a personagem principal, ora expõe sua hipocrisia quanto a sua própria narração na série auxiliando o narrador autor na sua intenção comunicativa. Ao nos depararmos com tais narrativas, o espectador também entra em crise ao aprovar ou desaprovar as condutas da jovem viciada.

Apesar dessa premissa, a série dá amplo espaço aos outros personagens adolescentes que contemplam o drama em suas duas temporadas lançadas. Cada episódio traz a narração de Rue, mas também expõe o perfil sociopsicológico dos seus melhores amigos e rivais, um por episódio conforme sua subjetividade e das relações com as quais constrói. É perceptível que a narração de Rue é uma narração mais madura em relação aos fatos narrados, o que nos faz presumir que existe um espaço temporal entre o que aconteceu (flashbacks). Com a narração sarcástica dela ao tratar do seu próprio inferno pessoal, o espectador acessa suas emoções e inclusive “se relaciona” com Rue quando a personagem quebra a quarta parede em diversos momentos ao longo da série.

Jules Vaughn (Hunter Schafer) é uma menina trans nova na cidade e na escola pela qual Rue se apaixona. A amizade é o primeiro vínculo entre as duas, e em nome desse relacionamento e a pedido de Jules, Rue tenta com mais afinco ficar sóbria, falhando diversas vezes. Nos primeiros momentos, somos apresentados a uma personagem meiga que conhece poucas pessoas ainda na cidade. Mas que ao longo da história, ela relata que se relaciona com homens mais velhos para afirmar a sua “feminilidade”, sendo contestada imediatamente por uma amiga: “Porque você tem que ficar com homens para se sentir mulher?”. Isso explica o fato de Jules não avançar no relacionamento amoroso com Rue no início da série, pois o seu foco está em avançar cada vez mais no seu processo feminino.

Já Nate Jacobs (Jacob Elordi) é apresentado como principal antagonista da série. Excessivamente cruel, destrutivo, manipulador e abusivo, esse personagem se mostra capaz de interferir negativamente na vida de todos ao redor para a conquista de seus interesses e manutenção do seu status quo na escola. Superficialmente, é um personagem inteligente, controlador e crítico, entretanto ao longo do drama percebemos que é extremamente inseguro e duvida da sua sexualidade, além de carregar traumas advindos das cobranças e vida dupla sexual do seu pai Cal Jacobs (Eric Dane) que esconde sua própria homosexualidade atrás de um pai de família heteronormativa. No ambiente escolar, Nate têm uma relação abusiva e de co-dependência com Maddy (Alexa Demie), que mente para ele ao dizer que era virgem na sua primeira relação sexual com ele. Maddy possui todos os atributos considerados femininos pela heteronormatividade (pele lisa, cuidados estéticos, ausência de pelos) e, além da ideia de posse, Nate a usa com pano de disfarce para seus desejos sexuais mais escondidos e camufla sua atração por Jules.

Se pensarmos no Quadrado Semântico Narrativo proposto por Algirdas Greimas, temos nesta narrativa já apresentada quatro actantes: Rue (sujeito), Nate (anti sujeito), Jules (ajudante) e objeto de valor (sobriedade de Rue). E além das descobertas afetivas de Rue Bennet e seus conflitos com as drogas, somos confrontados com as subjetividades de Jules e de Nate em relação à própria sexualidade e as aparências sociais. Jules, mulher trans, que vive posteriormente uma relação homosexual com Rue e Nate que tem uma relação abusiva com Maddy, contudo tem conflitos e desejos por Jules, que já se relacionou com seu pai Cal Jacobs.

Considerando Luiz Gonzaga Motta, o plano metanarrativo do enredo se concentra em temas sobre homoafetividade, reabilitação e uso abusivo de drogas, transexualidade, problemas de autoimagem, violência, hipocrisia social e luto. Complexidades e subjetividades que permeiam a fase da adolescência e juventude e que, sim, estão relacionados a problemas psicológicos e de saúde mental que podem afetar toda uma família ou sociedade. A série marca sua relevância não somente para o simples entretenimento do drama, mas para a interpretação, crítica e reflexão sobre como a sociedade lida com tais questões tão próximas ao nosso cotidiano.