segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Funny Games

Gabriel Oliveira

Um casal, seu único filho e um cachorrinho viajam para passar as férias em uma casa de veraneio, à beira de um rio austríaco. Ao notarem os novos vizinhos, dois rapazes que trabalham noutra casa ao lado decidem pregar uma "peça" naquela pobre família. Pouco a pouco, esgueiram-se para dentro da casa, dissuadindo-lhes de serem bons moços. Já instalados e sobre o controle da família, aqueles jovens iniciam uma série de desafios para que a família cumpra, em troca de suas vidas.

Impotentes, aqueles coitados inquirem: "por que vocês estão fazendo isso?", ao que são respondidos com um sonoro e debochado: "e por que não?".

Dirigido por Michael Haneke, o longa-metragem alemão Funny Games (1997), propõe-se a debater a violência enquanto entretenimento mórbido, debruçando-se sobre brincadeiras metalinguísticas para tanto. Além disso, consegue contornar na figura dos antagonistas àquela juventude desacreditada do final do séc. XX, filhos da pós-modernidade e da baixa coesão social.

Com um roteiro altamente consciente de si, Haneke faz questão de tirar o espectador da passividade que é praxe ao consumo audiovisual, apontando-nos diretamente o dedo - nem uma, nem duas, mas diversas vezes. Da morbidez que presenciamos, tornamos-nos cúmplices. Paul, um dos torturadores, é o único personagem que entende a diegese em que está inserido e deixa claro: suas ações são exclusivamente para entreter aos que assistem, pelo "bem" do roteiro.

Diante disso, a obra, consegue condicionar seus espectadores a não esquecerem o fato de que, por vontade própria, decidiram acompanhar aquela história moralmente questionável, sentando-se em seus sofás, enquanto comem e bebem algo. Sem reduzir a todos que assistem a meros sádicos, o roteiro ainda assim põe-nos a refletir até que ponto seríamos cúmplices daqueles abusos.

A apatia que somos levados a questionar em nós mesmos, também vemos encarnada nos dois torturadores daquela família. Paul e Peter, dois jovens-adultos que trabalham como caseiros na casa de veraneio vizinha da qual a família se hospeda. Ambos operam de forma cínica e cruel, deliciando-se nos atos perversos e desafios propostos à família. Essas atitudes, à primeiro momento, não aparentam possuir razão alguma para existir, mas observadas com mais atenção, permite-nos descortinar toda uma geração de sujeitos desacreditados e fragmentados socialmente.

 Ano após ano, observamos a coesão das comunidades desfazendo-se, num processo que perdura há décadas, mas que tem sua gênese muito antes: no despontar do capitalismo e o individualismo que se seguiu após ele. Ao fim do séc. XX, esse processo ganhou um catalisador: com o crescimento exponencial de tecnologias de informação e a virtualização das relações. Com isso, a relativização encontrou espaço fértil para germinar na juventude que crescia à época. Sem perspectivas de um mundo melhor, sem verdades objetivas ou credo no qual se apegar, os jovens, portanto, viram-se perdidos. É dentro desse quadro social que Haneke apoia seus dois sádicos antagonistas, nessa relativização moral banhada num niilismo do qual não existe retorno à vista.

Amplificando o terror psicológico que sentimos estando sob o poder daqueles rapazes, todos os elementos técnicos convergem para um naturalismo, com cada detalhe acrescentando a esse magnetismo que prende-nos à tela, esperando temerosos até onde aquela crueldade ainda consegue ir.

A julgar como a audiência de Cannes recebeu o longa em sua estreia - com um terço da sala retirando-se da sessão -, em 1997, podemos notar o impacto que o filme tem em provocar e perturbar sua audiência. O desconforto escapa da tela e nós, espectadores, somos forçados a entrar em diálogo direto com os acontecimentos. Funny Games é mórbido, é cínico e também é inesquecível.

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

A Longa Marcha

 

Caminhe ou Morra

Lyênia Monteiro das Chagas

A Longa Marcha (2025) é a adaptação romance de Stephen King sob direção de Francis Lawrence, o mesmo responsável pelos principais filmes de Jogos Vorazes e que neste filme parece confortável revisitando o tema de jovens em situação violentas. A premissa do longa segue a estrutura do livro: em um Estados Unidos distópico, cem jovens participam de uma competição de resistência em que caminhar é questão de sobrevivência. Manter uma velocidade mínima garante a permanência; parar significa morrer, com a promessa de um desejo a ser comprido para o último de pé. Entre vários participantes memoráveis estão Ray Garraty, interpretado por David Jonsson, e McVries, vivido por Cooper Hoffman, que desenvolvem uma relação marcante ao longo do percurso. A supervisão rígida da marcha fica a cargo do Major, personagem de Mark Hamill.

O filme começa exibindo a brutalidade das regras de forma direta, mas aos poucos a câmera passa a recuar, evitar o espetáculo da dor e deslocar nossa atenção para quem continua vivo. A violência não desaparece, mas deixa de ser espetáculo para se tornar consequência. Quando o espectador passa a conhecer seus ritmos, medos e pequenos momentos de humor, a narrativa reduz a exposição das mortes e enfatiza a humanidade desses jovens. Eles deixam de ser apenas rostos desconhecidos e se tornam identidades em movimento.

A repetição do cenário não enfraquece a experiência. Mesmo atravessando diferentes regiões, tudo continua sendo a mesma estrada infinita. A escolha reforça o desgaste físico e mental imposto pela competição. O cansaço visual é parte da construção dramática: a sensação de continuidade forçada torna-se elemento narrativo.

Do ponto de vista técnico, Francis Lawrence demonstra controle sobre ritmo, tensão e linguagem visual. A direção utiliza enquadramentos longos para traduzir a exaustão, edição precisa para manter a urgência e uma paleta que destaca a deterioração progressiva da jornada. As performances de Jonsson e Hoffman sustentam a imersão emocional enquanto Hamill entrega um antagonista de presença sem exageros.

“A Longa Marcha” é um filme que usa de um conceito simples em uma experiência física e emocional. A narrativa mantém o público atento, enfatizando conexões, resistências e escolhas. A marcha continua porque precisa continuar, e essa sensação é o que move o filme do início ao fim.

A Origem do Mal


João Tobias Ribeiro de Lima


Um grupo de seis pessoas, há 45 mil anos, chega a uma ilha desconhecida em busca de abrigo, comida e sobrevivência, e se deparam com criaturas desconhecidas e muita escuridão, lidando até com certas traições ao longo do caminho. Com isso, eles tentam se manter unidos (ou não), e explorar sem ter nenhuma ideia do que vão encontrar.

“A Origem do Medo” é um filme lançado em 2022 e dirigido por Andrew Cumming, em sua estreia em longas-metragens, com uma ambientação bastante escura e misteriosa, mantendo um ar de terror e thriller ao longo de todo o filme. A língua falada na obra é completamente inventada, o que achei bastante interessante, além das roupas de pele e alguns equipamentos, como a lança, que deixam o longa com um tom realista. 

Porém, mesmo sendo um filme de quase uma hora e meia apenas, acabam deixando o filme maçante e arrastado em algumas partes, ao mesmo tempo em que outras partes ficam corridas até demais, sem um aprofundamento, sem ter um tempo para digerir ou de os próprios personagens sentirem o que acabara de acontecer. Além disso, a personagem Ave é pouquíssimo explorada durante todo o longa, tendo escassas falas e sendo reduzida apenas a grávida da história, que está sempre assustada.

A obra tem uma ótima ambientação, e estende muito bem as cenas de terror e suspense na floresta, prendendo quem assiste a ver o que vai acontecer em seguida, se a criatura irá se revelar, se tal personagem está vivo, e a escuridão casa perfeitamente com isso.

O final do filme me agradou bastante, com duas grandes revelações que, mesmo que uma delas seja meio óbvia, deixa o público boquiaberto, e acaba por ser uma grande finalização.

Frankenstein 3


 Hannah Carneiro



Na mitologia grega, a ambição de conceder mais dons à espécie humana levou Prometeu a roubar o fogo dos deuses e ser punido para a eternidade pelo mais poderoso deles: Zeus. Qual é o preço para quem desafia as leis da natureza? Quanto paga o criador e quanto paga a vítima? Em todas as formas e adaptações de Frankenstein, ou o Prometeu Moderno, clássico da ficção científica e da literatura gótica, escrito por Mary Shelley, esses são questionamentos que perduram. 


Do meio da neve surge uma criatura robusta e assustadora, determinada em dominar o destino de seu próprio inventor. A partir daí, como no livro original, Frankenstein (2025), dirigido por Guillermo del Toro, acompanha a odisséia de Victor Frankenstein e de seu monstro, desde o princípio de seus traumas geracionais. Distante da realidade literária, em que Victor tem uma infância colorida por amor e acolhimento, o filme ilustra um período marcado pela rigidez e frieza vinda de seu pai, o que colabora para uma melhor compreensão do seu amadurecer apático, voltado para o seu orgulho de superar as habilidades da figura paterna e desafiar a organicidade da vida.


Em contraste com sua ambição, surge Elizabeth Lavenza, vivida com sensibilidade e perspicácia pela atriz Mia Goth, que encontra na apreciação de pequenas formas de vida a maior beleza. O que, vale ressaltar, é meticulosamente transposto nos seus figurinos em cores e padrões que remetem a besouros, líquens e até mesmo um raio-x, idealizados pela diretora de arte Tamara Deverell. Dessa forma, em justaposição, sua personalidade destaca a vaidade e orgulho de Frankenstein, um homem movido pela sede de de alcançar um poder que compense o que a vida não lhe cedeu: amor.


Victor torna-se, então, o espelho de seu próprio pai: que gerou a vida, mas não a acolheu. Entre a vaidade que eleva o homem ao papel de deus e o abandono que o torna monstro, nasce o drama mais humano da obra: um filho que deseja ser inteiro, um pai feito de soberba incapaz de amar o que criou. E nessa ausência de amor, o horror deixa de ser sobrenatural — ele se torna profundamente humano.

Nesse cenário, a atuação do ator australiano Jacob Elordi merece destaque. Longe de interpretações caricaturais do seu passado, Elordi entrega uma Criatura crua e que transborda humanidade, prometendo sucesso em seus próximos trabalhos cinematográficos. Em um tom diferente, mais maniqueísta e infantil, se aproxima da curiosidade e ingenuidade perante o mundo transmitidas pela atriz Emma Stone, como Bella Baxter em “Pobres Criaturas” (2023), de Yorgos Lanthimos. A criatura de Del Toro é imponente, retalhada com partes escolhidas a dedo pela vaidade de Frankenstein, mas o olhar é frágil, quase infantil. Elordi compreende que o monstro não reside em sua aparência, mas na forma como o mundo o vê.

Apesar disso, pode-se observar que Del Toro escolheu aproximar sua Criatura da bondade e menos da dubiedade, o que é construído na obra de Mary Shelley de forma mais equilibrada: enquanto demonstra empatia para com certos indivíduos, também é cheio de violência e sentimento de vingança, o que torna a leitura do público mais próxima da compreensão da subjetividade humana e menos de um maniqueísmo que oprime a reflexão e entrega de bandeja o bem e o mal.

No que tange as forças inegáveis do filme, não se pode deixar de elogiar a direção de arte, que impressiona com seu caráter estonteante e demonstra consonância com os trabalhadores anteriores de Del Toro, conhecido por sua estética gótica e pela fusão entre o fantástico e o orgânico (A Forma da Água, O Labirinto do Fauno). O universo visual é híbrido: vestuários e cenários remetem ao século XIX, mas dispositivos tecnológicos e máquinas improváveis insinuam um futuro que jamais existiu. O filme se instala nesse paradoxo, refletindo a própria essência de Frankenstein, que sempre se tratou de fronteiras rompidas. 

Por isso, pode-se dizer que Frankenstein de Guillermo del Toro é uma obra que merece ser apreciada pela sua beleza estética e pela sensibilidade que o diretor extrai da literatura para as telas. Entretanto, não se pode deixar de questionar até onde vamos abrir mão da subjetividade da linguagem para tornar uma narrativa cada vez mais verborrágica e unilateral.



“Pecadores” (2025)

 


João Carlos Justino do Nascimento


E se os maiores fantasmas não viessem do sobrenatural, mas das próprias memórias e culpas que carregamos? Superficialmente, este é o enredo explorado em Pecadores (2025), mais novo filme do diretor de Pantera Negra e Creed, Ryan Coogler. Aqui, o diretor aposta em um território híbrido: terror gótico, drama de época e mitologia musical. Ambientado em 1932 no Delta do Mississippi, o filme traz Michael B. Jordan no papel duplo dos temidos irmãos gêmeos Fumaça e fuligem, que ao retornarem para casa, decidem inaugurar um bar para o povo negro celebrar suas tradições e músicas clássicas, mas acabam confrontados por forças sobrenaturais antigas, encarnados na figura de vampiros.

Para além do nome mais badalado do filme, a história também nos apresenta outra figura importantíssima para o desenrolar da trama: Sammie, ou, “pastorzinho” – apelido dado por conta de seu pai, pastor da cidade. O jovem ,de origem humilde, vive uma realidade dividida entre a religião – advinda do seu pai – e a sua paixão pelo blues, que parece ser algo intrínseco à sua gênese, um talento quase que místico. Misticismo esse que não é novidade para os adeptos à história do blues, uma vez que o personagem Sammie, como comentado pelo próprio diretor, bebe muito da lenda de Robert Johnson, que foi um famoso cantor de blues que supostamente vendeu sua alma ao diabo em troca de talento musical.

Dentre os vilões, um dos maiores mistérios é acerca dos vampiros, que na figura de seu líder: Remmick, inicialmente vemos um vilão estereotipado e sem muito desenvolvimento, mas que esconde um passado de muita relevância para o contexto impresso na obra. E é a partir da origem irlandesa do personagem que o filme ganha mais uma camada em seu subtexto, uma vez que, por ser um vampiro e irlandês, Remmick esteve presente em diversos períodos da história, dentre eles, o período de repressão e apropriação cultural praticada pela Grã-Bretanha contra o seu povo. No filme, o processo acontece de forma semelhante, ao criar-se um momento de empatia dos vilões com o os negros que estavam na inaguração do bar. Os vampiros chegam a comentar a real intenção dos donos do galpão em que estavam e que, na verdade, pela manhã, eles seriam abatidos pelos integrantes da Ku Klux Klan. A ideia era, através do encanto pela música do jovem Sammie, convertê-lo e usá-lo como porta de acesso aos seus ancestrais, representando a apropriação cultural sofrida pelos próprios irlandeses e, mais explicitamente, pelos negros nos EUA.

Pecadores vende-se como um filme do gênero terror, mas isso é apenas a camada superficial da trama, que recheia seu subtexto de crítica social, música tradicional (blues) e horror simbólico para explorar racismo, legado, culpa e trauma de um modo visceral. O filme não esconde, em momento algum, a importância da música como forma de resistência de uma cultura, transformando a trilha sonora do filme em uma experiência à parte e quase personificando o blues, que é colocado como um gênero musical ancestral, capaz de rasgar o tecido do tempo e transportar a cultura de seu povo.

Entre os “poréns”, é possível notar uma certa lentidão inicial — a primeira parte do filme demora a engatar no terror propriamente dito, focando mais no estabelecimento do ambiente e dos personagens. Além disso, a fusão de gêneros e símbolos — mitologia, obrenatural, musical — funciona como força motriz, mas corre o risco de dispersar quemprefere narrativas mais clássicas de terror sem camadas simbólicas ou envolvimentos culturais mais densos.

Por fim, a obra é um espetáculo visual, uma experiência digna de IMAX, dando ainda mais profundidade estética e sonora para o produto. Aborda diversos temas relevantes como a resistência, o legado e o racismo, além de conjugar emoção, crítica e entretenimento num gênero que, tradicionalmente, favorece sustos antes de reflexão. Pecadores é, para além dos seus feitos técnicos, um manifesto de resistência da cultura negra e das demais culturas, que, de alguma forma, lutam pela sua existência.