Relatos de personagens que lutam, todos os dias, para terem suas identidades reconhecidas e aceitas perante o meio acadêmico e a sociedade.
Por: Ana Flávia Amorim; Ana Luiza Vila Nova; Ana Paula
Matos; Rayane Fernandes; Walber Gomes; Yasmin Alves; Yasmin Cunha; Ylanna
Pires.
De acordo com
dados da ONG Transgender Europe (TGEU), o
Brasil lidera pelo segundo ano consecutivo o ranking de assassinatos contra
pessoas transgêneros e travestis. A pesquisa aponta que houve 167 mortes entre
outubro de 2017 e setembro deste ano, números estes, que podem ser maiores
devido a dificuldade de contabilização dos crimes motivados por transfobia, ou
do reconhecimento da identidade de gênero das vítimas, pelos órgãos
responsáveis. Em homenagem a essas pessoas, o dia 20 de novembro é
lembrado como o Dia Internacional da Memória Trans, em prol da visibilidade e
da luta pela representatividade.
O
mesmo relatório, apresentado pela TGEU, relaciona os casos de violência à
vulnerabilidade social, resultante da falta de oportunidades no mercado de
trabalho e da marginalização sofrida por essa parcela da sociedade, onde mais
de 90% veem na prostituição a única saída viável para sua sobrevivência. “É muito comum a gente ver pessoas trans somente na
prostituição ou em trabalhos que nem são de carteira assinada, como
cabelereiras, manicures... sempre no campo da beleza, que são os que não tem
acesso aos direitos sociais. São trabalhos que não estão nem no mercado formal
nem no campo da educação.” afirma Janaina Lima,
jornalista formada pela UFRN e editora do jornal Brasil de Fato (RN) que é
exceção a realidade citada e exemplo da luta trans no ambiente acadêmico.
Janaina Lima, 26, editora e assessora de
comunicação. (Foto: Ana Luiza Vila Nova)
No
que diz respeito ao ativismo e a organização de movimentos sociais, ela entende
que a questão LGBTQ+ é transversal, logo deve ser premissa de qualquer
militante ou partido. Quando questionada sobre a representatividade trans em
Natal, Janaina relata experiências
positivas com duas organizações feitas por pessoas transexuais e travestis, que
se construíram ao longo da história e hoje fazem a luta e representam: a
Atrevida e A Transparência. “A gente sonha com uma sociedade onde possamos ser
iguais a todo mundo e que uma conquista básica não seja uma vanglória ou um
grande desafio”, finaliza a jornalista.
Leilane presente!
Leilane Assunção, historiadora e ativista, foi
pioneira da representação trans no meio acadêmico, sendo a primeira doutora e
professora universitária transgênero do país. Além de ter uma forte atuação nos
movimentos sociais pelos direitos LGBTQ+ e pela descriminalização das drogas,
era também uma das coordenadoras do Instituto
Brasileiro Trans de Educação (IBTE) e colaborou na formulação da cartilha trans
do governo do Rio Grande do Norte.
A historiadora permaneceu na UFRN de 2013 até seu
desligamento em 2017, sempre como docente substituta, e em diversas ocasiões
fez denúncias sobre o preconceito ser o motivador de suas reprovações em
concursos ou em bolsas de doutorado ou de pesquisas. Com o afastamento imposto pelo
término do contrato com a Universidade, o histórico de boicotes e as
dificuldades financeiras, a historiadora sofreu de depressão e anorexia,
seguido por uma pneumonia e por uma infecção, que a levou a óbito, no último
dia 13.
Leilane e sua luta
são símbolos de resistência por muitos educadores que seguiram e seguirão seus
caminhos, em busca de visibilidade e igualdade de oportunidades.
Leilane Assunção recebendo o Prêmio Direitos
Humanos 2011, na categoria Igualdade de Gênero, representando a Doutora
Berenice Bento. (Foto: Roberto Stuckert Filho)
Para Bernardo Candeia, a busca pelo reconhecimento
de identidade tornou-se sinônimo de otimismo. Com pouco mais de cinco meses,
ele vem vivenciando um processo de autoconhecimento, “é muito incrível, cada
dia descubro um negócio diferente”, diz com um sorriso no rosto. Apesar
das primeiras reações da família terem sido negativas, o fotógrafo não se
deixou abalar. Enquanto persistia na busca em se entender melhor, o rapaz teve
apoio de uma amiga próxima em seus momentos de angústia no início de sua
transição, o que o motivou a buscar mais sobre a questão transgênero.
Bernardo
Candeia, 20, fotógrafo. (Foto: Ana Luiza Vila Nova)
Seguido do processo de auto aceitação, Bernardo deu
início a outra luta: o seu reconhecimento como homem perante a sociedade. O uso
do pronome masculino é uma das conquistas citada pelo jovem, “a questão de
pronome conta muito, quando as pessoas começaram a me tratar no masculino eu
fiquei ‘caramba, que paz na minha alma’”. E ainda que enfrente preconceitos o
seu caráter otimista faz com que ele lide com situações desconfortáveis da
melhor maneira possível. Conviver com pessoas que possuem lutas semelhantes a
sua vem lhe ajudando a progredir. “Espero que essa vitória seja em vida”, conta
ao falar sobre as suas expectativas diante do futuro. Sempre olhando pelo lado
positivo, Bernardo tem ambição por viver, mesmo que existam momentos difíceis.
“Eu quero essa forma pra mim, todos os dias!”, diz
Haria Bruna, estudante do curso de artes visuais da UFRN, que começou a
transpor as barreiras do binarismo de gênero ao se entender como uma pessoa
andrógena e, posteriormente, explorar a expressão artística drag queen.
Contudo, não tardou para que ela entendesse que a forma feminina não era algo
eventual em sua vida, mas, sim, parte definitiva de sua identidade de gênero.
Assim, ao se entender mulher, a universitária passou a buscar a ingestão de
hormônios como meio de adequar a sua forma física ao gênero com o qual se
identifica. “Eu passei por momentos de muita depressão e eu pensei: ou eu me
mato ou começo a transição. Eu faço tratamento hormonal sem acompanhamento
médico, fui e pesquisei na internet alguns grupos de pessoas trans e comecei o
tratamento hormonal. É super arriscado!”, afirma Haria, ao se confirmar como
mais um exemplo de pessoa transgênero que, por não ter acesso ao tratamento
adequado de saúde, administra a própria terapia hormonal sem qualquer tipo de
orientação médica.
Haria
Bruna, 23, universitária e artista. (Foto: Ana Luiza Vila Nova)
Além da falta de assistência médica direcionada, a
aceitação familiar é outra questão que costuma ser um entrave para pessoas
trans. No caso de Haria, não é diferente. Embora se sinta acolhida no ambiente
doméstico, a sua identidade de gênero por vezes ainda é um ponto de conflito.
“Minha avó é o tempo todo: corta esse cabelo, toma jeito de homem. Ela que
compra meus brincos, maquiagens, mas é aquela coisa, aquele embate, a parede
que impede. Mesmo assim, minha família evoluiu bastante, meus avós eram bem homofóbicos
e quando eles viram que tinha LGBTQ+ em casa, o pensamento mudou
completamente”.
No ambiente acadêmico, Haria identifica um grau
variável de aceitação. Segundo ela, na Universidade existem diferentes nichos,
o que influencia diretamente na sua vivência na academia. “O nicho que eu
frequento é das artes, ou seja, todos desconstruídos. Uma pessoa como eu
entrando lá é sentimento de acolhimento, tipo ‘esse é meu lugar, é aqui que eu
pertenço’”, reconhece. O uso do banheiro, contudo, segue sendo um problema.
Conta a estudante que não encontra problemas quando há banheiro inclusivo,
porém, com relação aos banheiros femininos, ainda sente a necessidade de ser
acompanhada por uma amiga. Quanto a frequentar banheiros masculinos, afirma
que, a essa altura, é algo impensável. “Antes mesmo da transição eu fazia
cursinho aqui, no setor III [da UFRN] e nunca entrei no banheiro lá, eu tinha
muito medo”, relata a estudante, se referindo a ansiedade gerada pela
hostilidade do ambiente. Lidar com espaços hostis, infelizmente, segue como
parte do cotidiano de muitas pessoas transgênero, para quem o simples ato de
existir se mostra como uma manifestação de resistência e coragem.
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