quarta-feira, 2 de julho de 2025

GAROTA EXEMPLAR

  


LARISSA BEZERRA DA SILVA


Garota Exemplar (Gone Girl, 2014), dirigido por David Fincher e baseado no romance homônimo de Gillian Flynn, é daqueles filmes que nos prendem pelo enredo, mas nos marcam pela inquietação que deixam ao final. O longa apresenta uma construção meticulosa do suspense e da narrativa, com um roteiro afiado e uma estética fria que reforça o distanciamento emocional dos personagens – marcas características de Fincher.

A trama acompanha Nick Dunne (Ben Affleck), um marido aparentemente comum cuja vida vira de cabeça para baixo quando sua esposa Amy (Rosamund Pike) desaparece no dia do aniversário de casamento. A partir daí, o filme desenvolve não apenas uma investigação policial, mas uma profunda análise sobre aparências dentro de um relacionamento, com reviravoltas imprevisíveis que mantêm o espectador em constante estado de alerta.

Do ponto de vista técnico, Garota Exemplar é muito bem-feito. A montagem das sequências é brilhante, unindo passado e presente de forma natural, mas ainda assim surpreendente. A trilha sonora também se destaca: discreta, porém extremamente eficaz — ora silenciosa e tensa, ora inquieta e quase hipnotizante, especialmente nas cenas conduzidas pela narrativa de Amy.

Além dos aspectos técnicos, as atuações merecem atenção especial. Ben Affleck, com sua expressão contida, combina perfeitamente com a ambiguidade do personagem Nick. Já Rosamund Pike rouba a cena com uma atuação complexa, misteriosa e ameaçadora — um desempenho marcante, que a coloca facilmente entre as grandes personagens femininas do cinema atual.

Apesar de toda essa excelência, o final deixou um gosto agridoce. A construção do enredo cria uma expectativa de um desfecho mais explosivo ou conclusivo, e o que recebemos é, na verdade, um encerramento que parece inconcluso. Não por falta de resolução, mas pela sensação de que o filme caminha para algo mais grandioso, apenas para parar e nos deixar no desconforto. Pode-se argumentar que essa era a intenção – mostrar o aprisionamento emocional e psicológico de um casal cuja relação virou um campo de batalha silenciosa –, mas, na realidade, causa um sentimento de que faltou um passo a mais. O filme parece flertar com a ideia de uma continuação, mesmo que talvez não tenha sido essa a proposta original.

Mesmo com esse desfecho, Garota Exemplar é um filme envolvente, elegante e incômodo — uma combinação que contribui significativamente para seu impacto. É impossível ignorar o brilhantismo técnico e a densidade temática da obra, que vai muito além do mistério do desaparecimento. Trata-se de um thriller psicológico de alto nível, uma dissecação brutal — e estilizada — do que significa compartilhar a vida com alguém.

The Big Bang Theory


 Entre os dois mundos

 

Por Tiago Eneas

 

Em The Big Bang Theory (2007 - 2019, criada por Chuck Lorre e Bill Prady), acompanhamos o cotidiano de Sheldon Cooper (Jim Parsons) e Leonard Hofstadter (Johnny Galecki), dois brilhantes físicos que conseguem solucionar os mais sofisticados problemas da ciência, mas que ainda não desvendaram uma grande questão: como socializar adequadamente. Além dos dois personagens principais, o astrofísico Rajesh Koothrappali (Kunal Nayyar) e o engenheiro Howard Wolowitz (Simon Helberg) também são dois elementos essenciais para a história.

O cotidiano dos quatro altera-se profundamente quando Penny (Kaley Cuoco), uma garçonete aspirante à atriz, muda-se para o apartamento ao lado de Sheldon e Leonard. Ela é sociável, popular e descontraída, diferindo fortemente dos quatro cientistas desajustados. As personalidades distintas e complementares desse grupo proporcionam um núcleo cômico que orbita entre a inclinação acadêmica – e ao mundo nerd –  e uma vida social mais agitada. A posterior inserção de Amy Farrah Fowler (Mayim Bialik) e Bernadette Rostenkowski (Melissa Rauch) também contribuem diretamente para essa lógica.

Os cenários principais da série são o apartamento de Sheldon e Leonard e a Universidade em que trabalham (a Caltech). Não há qualquer trilha sonora, com exceção da tradicional abertura, fazendo com que o principal som sejam as risadas da plateia, o que indica, de certa forma, os momentos humorísticos no episódio (como é típico de sitcoms). As filmagens evitam ângulos muito subjetivos e conservam, normalmente, uma certa neutralidade.

Inicialmente, cada personagem parte de um estereótipo mais ou menos explicitado: Sheldon é o gênio apático, totalmente alheio ao sentimento dos outros; Leonard é um cara boa praça, mas sem muito jeito; Howard é o “engraçadão” e pretenso mulherengo; Raj é o nerd incapaz de falar com mulheres e Penny é a loira burra. O que, em princípio, parece unidimensional, é rapidamente superado em virtude da profundidade e das características únicas de cada um deles.

A produção conta com um vocabulário simples e acessível mesmo quando aborda conceitos ou definições científicas – com exceção de Sheldon, que intencionalmente possui um linguajar complexo e até mesmo caricatural – , algo que facilita a compreensão e imersão do espectador. As cenas dramáticas e os arcos de romance adicionam uma carga adequada de drama, contribuindo para uma narrativa mais densa.

A jocosidade se constitui, principalmente, com base nas piadas e nas interações incomuns dos personagens. Vale ressaltar, contudo, que muitas dessas tiradas, como as de Howard, poderiam não ser bem vistas hoje, principalmente pelo teor machista e misógino – mesmo que isso seja uma etapa necessária para a desconstrução do personagem que, como mencionamos, parte de um arquétipo.

 No que tange à mudança dos personagens, é inevitável destacar o fato de que Raj não amadurece tanto como os outros três. Sheldon se torna muito menos robótico, mais empático e menos egoísta; Howard – o que mais muda dentre os quatro – torna-se alguém completamente diferente, abandonando suas piadas problemáticas e atingindo um grau mais elevado de independência emocional; Leonard consegue, de certa maneira, trabalhar seus traumas emocionais e consolidar seu relacionamento com Penny. Koothrappali, por sua vez, parece lidar com os mesmos problemas do início ao fim, sem muito progresso. É um fato que ele consegue falar com mulheres, mas mostra uma imaturidade característica do personagem que também era na primeira temporada. Não consegue estabelecer um relacionamento por essa falta.

Por fim, pode-se dizer que The Big Bang Theory é apaixonante, tanto em relação aos erros quanto aos acertos. O que em princípio poderia ser nichado, agradável somente aos “nerds”, furou a bolha. Por meio de personagens cativantes e complexos, a série aborda conflitos humanos de uma maneira palatável para todos os públicos.

Os Incompreendidos

 


Pedro de Luna

Em Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959), François Truffaut não apenas estreia como diretor, ele inaugura uma nova forma de fazer cinema. Marco inaugural da Nouvelle Vague, o filme é, antes de tudo, uma declaração pessoal: autobiográfico em essência, político em subtexto e profundamente poético na forma. Por meio de Antoine Doinel, seu alter ego interpretado por Jean-Pierre Léaud, Truffaut dá voz a uma geração de crianças invisíveis, aquelas que crescem sem escuta, sem espaço, sem direção.

Antoine é um menino comum, mas essa é justamente a tragédia. Porque ser “comum” numa sociedade que exige submissão e não escuta as angústias da infância é uma condenação silenciosa. O menin iva colaboram para um realismo poético que rompe com o cinema clássico e aproxima o espectador da verdade emocional do personagem. A Paris filmada por Truffaut não é idealizada, é fria, indiferente, melancólica. A cidade grande, com seus becos e muros altos, funciona quase como uma prisão simbólica para aquele que só quer correr, brincar, pertencer. A atuação de Jean-Pierre Léaud é um dos maiores trunfos do filme. Ele não interpreta Antoine; ele é Antoine. Seu olhar não tem a malícia dos atores infantis moldados por Hollywood, mas carrega uma autenticidade desconcertante. Em sua revolta, há fragilidade.

Em sua fuga, há desespero. Em seu silêncio, há perguntas sem resposta.

A cena final é uma das mais célebres da história do cinema. Antoine foge do reformatório e corre até o mar, que, até então, ele nunca havia visto. A câmera o acompanha numa longa sequência, até que ele para e olha diretamente para nós. Truffaut congela a imagem, nos forçando a encarar aquele olhar. É um momento de suspensão, onde tempo e narrativa se interrompem, e tudo o que resta é uma pergunta muda: e agora? A fuga foi real, mas a liberdade é possível?

Os Incompreendidos não oferece soluções. Tampouco tenta redimir a dor com algum tipo de final feliz. O que ele faz, com delicadeza e força, é nos convidar a escutar o que normalmente ignoramos: as dores invisíveis, os gritos abafados, a solidão cotidiana de umainfância que amadurece cedo demais. O filme não julga Antoine. Julga o mundo ao redor dele.

Mais do que um clássico da Nouvelle Vague, Os Incompreendidos é uma aula de empatia e um espelho desconfortável. Truffaut nos mostra que crescer, em muitos casos, é aprender a sobreviver aos adultos. E que, se quisermos realmente compreender a juventude, talvez devêssemos começar por calar um pouco, e ouvir de verdade

Stranger Things

 


Taysa Pereira da Silva

A primeira temporada de Stranger Things foi lançada em 2016 pela Netflix e se tornou um enorme sucesso comercial. Criada pelos irmãos Duffer, a série combina ficção científica, terror e a nostalgia dos anos 80, que se mostra super importante para a história.

A trama inicia-se em 06 de Novembro de 1983, na pacata cidade de Hawkins, Indiana, onde ocorreu o misterioso desaparecimento de Will Byers. Ao mesmo tempo de seu desaparecimento, uma garota chamada Eleven escapa de um laboratório e é encontrada pelos amigos de Will (Mike, Lucas e Dustin). Eleven se mostrará uma peça fundamental para o desenrolar da trama e muitos segredos serão revelados.

Entretanto, a história vai além do desaparecimento de Will, pois outras situações ocorrem em paralelo. A série aborda o drama enfrentado por Jim Hopper, delegado da polícia local de Hawkins, que está lidando com traumas do passado. Além do triângulo amoroso entre Nancy, Jonathan Byers e Steven Harrington, e o misterioso laboratório de pesquisas liderado pelo Dr. Brenner. Mesmo assim, o desenrolar dos acontecimentos levam esses personagens a se envolverem na trama principal.

Logo, a série não deixa pontas soltas.

Stranger Things conta com um elenco de peso, entre eles os já experientes David Harbour e Winona Ryder. Mas, o elenco infantil e adolescente se destaca, tendo um papel fundamental na trama.

A série apresenta alguns clichês narrativos do gênero do terror e ficção científica, como por exemplo o cientista malvado. Mesmo assim, os personagens são bem desenvolvidos durante os episódios.O roteiro bem trabalhado consegue atrair a atenção do telespectador e atiçar sua curiosidade sobre os estranhos eventos na cidade de Hawkins, e isso é um dos pontos principais da série. Além do desaparecimento de Will, mais histórias surgem ao longo dos 08 episódios, levando ao questionamento da relação dessas tramas com o evento principal. Todos os diferentes eventos são trabalhados de forma paralela na série, onde acompanhamos diferentes personagens investigando por conta própria cada nova informação. Por conta disso, o espectador presencia os pontos de vista de todos os grupos, conseguindo obter informações valiosas de cada personagem. Logo, cria-se uma ansiedade no espectador ao acompanhar uma cena em que a informação conseguida anteriormente seria importante, mas o personagem ainda não sabe. Um exemplo dessas cenas ocorre no 04 episódio, em que o delegado Hopper vai ao necrotério investigar o corpo encontrado de Will.

Descobrimos junto ao delegado que aquilo trata-se de um corpo falso, plantado para encobrir os segredos do laboratório. Nas cenas seguintes em que são mostrados os amigos de Will inconformados com a possível perda, cria-se uma ansiedade para que eles descubram logo a verdade.

No geral, a série trata sobre a importância da amizade, a inocência da infância e até onde a ganância por poder leva o ser humano. Faz repensar sobre o medo pelo desconhecido e como este sentimento pode nos levar a ignorar acontecimentos importantes em nossa volta, para vivermos em uma bolha.

Folhas de Outono (2023)

 

por Bárbarah Alves

 

Vanoye e Goliot-Lété pontuam em Ensaio Sobre a Análise Fílmica (1994) que entrar em contato com um filme gera uma multiplicidade de “impressões, emoções e intuições”. Logo, quando pensamos no cinema de Martin Scorsese, por exemplo, pensamos em no caos urbano de Nova Iorque, nas personagens imperfeitas e autodestrutivas, em Robert De Niro e Leonardo diCaprio; quando pensamos em David Lynch, por sua vez, nos vem à mente o surreal, o grotesco, as cortinas vermelhas ou o veludo azul, as trilhas melancólicas e os ruídos sonoros; quando pensamos em Aki Kaurismäki, pensamos em minimalismo, personagens marginalizados, humor seco, lacônico, e um fundo de esperança. Em Folhas de Outono (2023), último longa produzido pelo diretor finlandês, o cenário não muda. O filme pode ser descrito como uma comédia romântica, porém a simples definição do seu gênero não faz juz ao que, de fato, ele é.

O enredo acompanha os encontros e desencontros de Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen), dois trabalhadores que levam vidas marcadas pela solidão, rotinas exaustivas e desencantos. Ansa trabalha em um supermercado e, de vez em quando, afana algum produto fora do prazo de validade para se alimentar. Holappa, por outro lado, é um operário de construção civil com vício em álcool. Ambos se encontram à noite em um karaokê e timidamente constroem uma relação. Como já disse anteriormente, isso poderia descrever uma gama de filmes hollywoodianos. No entanto, o interessante desse — e de toda obra do Kaurismäki, diga-se de passagem — é a forma como se conta essa história.

O cinema de Kaurismäki é econômico: poucos elementos na mise en scène, cores sólidas e paleta enxuta (azuis, amarelos, vermelhos e verdes em boa parte do filme), cenas construídas a partir de poucos takes — de acordo com Alma Pöysti, os direcionamentos para os atores são: "não ensaie e não leia muito o roteiro". Ou seja, todas as escolhas do diretor sugerem uma busca pelo autêntico e pelo simples. É muito comum bater o olho em qualquer produto da filmografia do diretor e automaticamente dizer: “esse é um filme do Kaurismäki” por tais características. Com Folhas de Outono não há diferença. Todos os elementos “kaurismakianos” estão lá.

Voltando a falar do longa propriamente dito, o trabalho narra essa história de amor esquisitinha entre Ansa e Holappa, porém traz outros elementos interessantes de se pontuar. O primeiro deles é a forma como não há definição de tempo. Não se sabe ao certo em qual ano ou período se passa a história. Kaurismäki traz elementos retrô, como o rádio, o karaokê, os carros antigos, ao mesmo tempo em que traz o computador e o celular. Aliás, devo dizer que esses últimos são bem pontuais e não são de última geração. Outro viés que nos localiza no tempo e no espaço da história é a costura da própria narrativa passada no rádio. Em muitas cenas vemos informes a respeito da Guerra na Ucrânia. Contudo, outros elementos não nos colocam diretamente nos dias atuais. Portanto, pode-se dizer que a realidade da narrativa é fictícia, fabulosa.

Um outro ponto relevante da obra é a forma como são discutidas questões a respeito da vida do proletariado. O perfil derrotista e desesperançoso das personagens sugere uma crítica ao sistema capitalista. Para o diretor, não há possibilidade de colheita de frutos nesse modus operandi. Não é à toa que Kaurismäki produziu ao longo de sua filmografia duas trilogias: “Trilogia do Porto (ou Trilogia do Refúgio” e “Trilogia dos Perdedores (ou Trilogia Proletária)”. Na primeira, o diretor aborda temas como a migração, desigualdade, guerra e precariedade. Na segunda, a solidariedade, imigração, exclusão social e resistência. Folhas de Outono poderia estar nessa segunda “trilogia”, ainda que alguns críticos sugiram uma terceira trilogia — “Trilogia da Solidariedade Europeia”, filmes mais recentes e que abordam temas sociais contemporâneos como a migração, desigualdade, guerra e precariedade.

Por fim, outro aspecto que vale a ressalva são as próprias personagens e como elas agem no espaço e nas situações. Serei mais clara: a todo momento a sensação que se passa é de que estamos a ver um hibridismo entre a comédia e a tragédia grega — inclusive, com várias cenas estáticas e com as personagens quase quebrando a quarta parede, como se reconhecessem e buscassem o nosso riso. As personagens são apáticas e irônicas. Um humor cortante, seco, sem risadinhas. E, muitas vezes, esse humor vem de uma “lógica ilógica” ou do absurdo. Logo no início do filme, Holappa senta em um banco para fumar um cigarro. Acima dele, uma placa diz: “proibido fumar”. Pouco tempo depois, seu amigo chega, também senta no banco e fala: “isso ainda vai te matar”, apontando para o cigarro. O homem, então, tira uma carteira de cigarros do próprio bolso e acende um. São várias as situações semelhantes durante os pouco mais de 80 minutos da obra.

O estilo cinematográfico, os temas e o humor de Aki Kaurismäki talvez não agradem a todos. Folhas de Outono, talvez seja um dos mais digestíveis dentro de sua cinematografia simplesmente pelo fato de se tratar de uma história de amor. Ainda existe afeto no norte europeu. Um afeto frio, seco, travoso, mas ainda assim um afeto esperançoso.

Spotlight

 


 Segredos revelados


ROBESON DANTAS DOS SANTOS

Sabe aqueles filmes baseados em fatos reais que nos deixam reflexivos e pensativos quanto às nossas vidas, e quanto aos nossos princípios éticos? Então, Spotlight é um desses. Envolvente, dramático e por que não dizer, polêmico, Spotlight conta a história real da investigação jornalística sobre os casos de pedofilia na Igreja Católica. Mais do que apenas uma investigação contra a igreja,
o filme narra uma luta contra um sistema “imbatível” formado a fim de encobrir a barbárie recorrente e evitar gigantesco escândalo.

A trama se passa no início dos anos 2000, mas a investigação jornalística faz um paralelo com os anos entre 1970 e 1980, já que desde esse período diversos padres já haviam molestado e abusado de mais de 80 crianças.

O conflito inicia quando Marty Baron (Liev Schereiber) um novo editor chefe (um jornalista judeu) chega em Boston e indaga por qual motivo o Boston Globe (jornal onde se passa a história) não investigou a fundo as acusações contra o padre John Geoghan, acusado por pedofilia entre 1970 e 1980. Essa indagação faz com que o grupo spotlight saiam em busca de qualquer prova, testemunhas, denúncias e fatos daquele período, chegando a descobrirem mais de 13 padres abusadores, apenas naquela região.

Como futuro jornalista e cristão, afirmo que é impossível não se envolver na trama, o enredo choca ao mesmo tempo em que nos coloca a vivenciar cada denúncia, cada angústia e cada descoberta do grupo.

O diretor Tom McCarthy inspirou-se no livro escrito pelos próprios jornalistas e conduz o filme de maneira simples, sem muitos efeitos, enquadramentos ou edição sofisticados, mas fazendo do simples, um clima de realidade e impacto, uma vez que o texto, sobretudo dos depoimentos das vítimas são fortes e as vezes repugnantes.

O filme possui 128 minutos e conta com um incrível elenco com os atores Michael Keaton (Walter Robinson), Mark Ruffalo (Michael Rezendes); Rachel McAdams (Sacha Pfeiffer); Brian d’Arcy James (Matty Carroll) e muitos outros.

O filme Spotlight nos leva à reflexão de que o jornalismo precisa ser corajoso e agir com ética em prol do compromisso com a verdade e com a sociedade. Quantas crianças não poderiam ter sido poupadas de abuso se o jornal tivesse aprofundado a investigação nos anos de 1970 a 1980?

Não só em relação à igreja Católica, mas dentro de todas as congregações, católicas, evangélicas, espíritas, cristãs ou não cristãs. A reflexão vai além do fato de serem padres ou da igreja católica, mas sim do abuso de autoridades religiosas, que usam o nome de Deus para cometer o crime de pedofilia, e do fim da credibilidade de um sistema criminoso que encobriu mais de 90 padres envolvidos em abusos de menores.

Antes dos créditos, o público pode acompanhar diversas cidades em vários países, em que milhares de pessoas relataram casos de abuso, e enfim se sentiram livres e encorajados de denunciar a igreja pela não acusação de padres criminosos.

Não esperem uma mega aventura, ação do início ao fim ou suspense, a riqueza do filme está no roteiro impecável e na dinâmica da investigação do grupo spotlight, desafiando os limites em busca da verdade. Por fim, indico o filme a todos que se interessam por uma trama envolvente, intrigante e muito, muito reflexiva

Titanic

Entre a Grandeza Visual e a Simplicidade Narrativa


 Pedro Henrique Araújo de Andrade


Dirigido por James Cameron, ‘Titanic’ permanece um marco do cinema comercial, combinando reconstrução histórica com melodrama romântico. O filme utiliza o naufrágio real de 1912 como pano de fundo para uma narrativa ficcional centrada no romance entre Rose (Kate Winslet), herdeira da elite sufocada pelas expectativas, e Jack (Leonardo DiCaprio), um artista pobre de espírito livre. Essa dicotomia social constitui o cerne temático, expondo criticamente as hierarquias da época, evidenciadas na segregação espacial a bordo e, sobretudo, na distribuição desigual dos salva-vidas durante o desastre.  

Tecnicamente, a obra é notável. A reconstrução minuciosa do transatlântico, aliada aos efeitos visuais pioneiros (especialmente nas sequências do naufrágio), confere verossimilhança e impacto visceral. A direção de Cameron equilibra escala grandiosa com detalhes intimistas, como os contrastes entre a opulência da primeira classe e a precariedade dos conveses inferiores. As atuações de Winslet e DiCaprio, embora vinculadas a arquétipos, transcendem-nos por meio de química convincente e nuances emocionais.  

Contudo, o roteiro sucumbe a simplificações problemáticas. O desenvolvimento do romance central apoia-se em convenções previsíveis, acelerando a conexão dos protagonistas em detrimento da profundidade psicológica. Os antagonistas, particularmente o noivo de Rose, Cal Hockley, são reduzidos a caricaturas da aristocracia vilã, perdendo oportunidades de complexidade. Licenças poéticas, como a icônica cena da proa (historicamente inacessível a passageiros) ou a polêmica lógica da porta flutuante, comprometem a coesão narrativa em favor do espetáculo.  

A duração excessiva (3h14m) expõe fragilidades estruturais, com subtramas redundantes que não ampliam o tema central. Embora a crítica social seja válida, sua execução oscila entre o sutil (os planos sequenciais comparando refeições das classes) e o didático (os diálogos explícitos sobre liberdade).  

Conclui-se que “Titanic” é um paradoxo: triunfa como façanha técnica e experiência sensorial, justificando seus 11 Oscars e recorde de bilheteria, mas falha como estudo de personagens ou narrativa refinada. Sua relevância cultural é inegável, porém mais como monumento à ambição cinematográfica que à profundidade artística.

SANTO FORTE

Zidney Marinho Oliveira de Mello

Santo Forte foi produzido em 1997 no contexto da visita do Papa João Paulo II ao Rio de Janeiro. O objetivo era mostrar características e experiências religiosas de moradores da Vila Parque da Cidade, comunidade carente da Zona Sul da Cidade Maravilhosa. Foram realizadas várias entrevistas com humildes moradores do local. Essas entrevistas denotaram, claramente, a complexidade da visão religiosa daquelas pessoas uma vez que é mostrada uma mistura de crenças distintas, como é o caso do cruzamento entre as religiões católica e umbandista, por exemplo.

De maneira sublime, sem nenhuma pitada de invasão, Eduardo Coutinho faz perguntas enfáticas quanto às crenças e experiências dos entrevistados. Confortavelmente, eles o respondem. Uma delas, Thereza Ferreira, idosa, relatou experiências relativas às suas vidas passadas, onde afirmou ter sido rainha, em uma antiga vida sua. Também foi relatada, por Thereza, uma experiência a respeito da morte de sua irmã, onde, segundo ela, uma pomba gira teria sido a responsável pelo falecimento. Outra entrevistada, Carla, disse que, quando criança, era fanática religiosa e estava começando a ter paranoias. Por isso, sua mãe a proibiu de frequentar a Igreja Universal do Reino de Deus. Após esse afastamento, Carla se aproximou da umbanda, onde sofreu com surras de santo. Por esses motivos, ela optou por dar um tempo nas religiões.

Essa mistura de crenças provoca uma pequena confusão mental no espectador, o que faz com que este se interesse ainda mais pelas histórias ali contadas. Para as pessoas consideradas em cima do muro quanto a religião, no sentido de prática religiosa, Coutinho os indaga quanto à sua "religião oficial". Talvez por comodidade social, no que diz respeito a discriminação religiosa e preconceito, a grande maioria se diz católico apostólico romano. O fato de seguirem e acreditarem em mais de uma religião, certamente, não os incomoda a ponto de acharem que estão equivocados com essa prática visto que a fé que possuem se mostra como alicerce de enfrentamento das dificuldades e alegrias da vida cotidiana.

O grande mérito de Santo Forte é o foco em ouvir. Outro fator interessante e dinâmico da obra é o fato de mostrar alguns dos entrevistados assinando autorização de direitos de imagem, sendo pagos pela produção e, também, presenteados. Através de personagens simples e cheios de fé, Santo Forte obtém êxito em apresentar o Brasil das diferenças, que, ao mesmo tempo, é o Brasil das semelhanças e da pluralidade. O documentário de Eduardo Coutinho é sensível e humano. Por fim, Santo Forte encanta por enaltecer os entrevistados, os enchendo de orgulho e alegria por terem sido participantes diretos da obra por meio do conto de experiências e ensinamentos a respeito de suas crenças e religiões.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Ghost In the Shell


 Ode cyberpunk ao mundo real

Emanuel Victor da Silva Lima

O lugar em que Ghost in the Shell, filme de 1995 dirigido por Mamoru Oshii, habita na história do cinema e no gênero Cyberpunk, é um lugar inquestionável. Baseado no manga de mesmo nome, publicado entre 1989 e 1991, o filme estabelece uma nova profundidade em termos narrativos, ao levar os debates filosóficos sobre corpo, alma e ser, à um novo patamar, alcançado pela mescla proposta da fusão entre animação tradicional e digital, possível não só pelas novas tecnologias da época, como também, pelos novos processos que permitiram modificar a forma de produzir e animar.

No filme, acompanhamos a personagem Motoko, uma agente bio-mecânica na caça pela ameaça conhecida por Senhor das Marionetes, um hacker altamente perigoso e que é capaz de invadir e tomar controle sobre as vítimas através da rede. Isto é, o ponto de partida para a apresentação de perguntas e questionamentos incumbidos nos diversos signos apresentados pelo roteiro.

Sendo também, colocados em evidência na animação pela maneira em que a protagonista e os seus arredores são animados, orbitando um abismo entre o físico e o digital, semelhante a sua própria existência. Vemos isso na famosa cena inicial, onde digital e analógico são unidos para a criação de uma ilusão de ótica, que muito simboliza o cerne dessa história. Marcada por uma fotografia e direção de arte atenta em todas as camadas, o filme não tem medo de passear e explorar os cenários e espaços desse mundo distópico. Seja através de planos contra-plongée que exploram o cenário das grandes cidades, corporações e tecnologias opressoras, do uso de efeitos digitais em cima da animação tradicional, ou da fluidez de quadros com qual o filme é animado cuidadosamente.

A história toma forma de uma maneira visceral e inquietante ao propor questionamentos sobre a nossa existência, fragilidade e individualidade em um mundo tão excêntrico e que parece ter evoluído para além do físico. Por meio da animação e suas novas tecnologias, toda essa premissa, permeia o filme de forma a construir uma das animações mais belas do cinema japonês, assim como, respectivamente, uma das trilhas mais influentes. Orquestrada por Kenji Kawai, a trilha propõem uma mistura de cânticos búlgaros com músicatradicional japonesa em contraste com efeitos digitais e distorções provocativas sobre a cultura desse mundo longínquo e excessivamente evoluído. A música tema do filme, que o acompanha em 3 atos, separadas em 3 faixas, representa o processo de dialética existente em elipse constante sob a narrativa e animação, contribuindo para a atmosfera exótica e única.

Sem dúvidas, Ghost in the Shell é um filme que ainda se mantém atual, mesmo 30 anos após o seu lançamento. Suas discussões e influências para o cinema e indústria de animação, atravessam desde Matrix (1999) até animações mais recentes como Homem Aranha no Aranhaverso (2018). Tendo agora os espaços e questões abordadas no filme, orbitando um espaço mais paupável, o filme agora, toma para si novos contextos para esta época, perdendo a excentricidade mas ganhando realismo e terror no momento em que o que era
ficção agora se torna comum e real.

O Anticristo


 Hecléia de Oliveira Machado


Lars Von Trier, conhecido por suas obras provocativas e por vezes controversas, lançou em 2009 o longa “Anticristo”, filme que se consolidou como um dos mais ousados e discutidos do cinema contemporâneo. Protagonizado por Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe, o longa mistura terror psicológico, erotismo e simbolismo religioso em uma narrativa dividida em cinco capítulos. “Anticristo” retrata um casal (ambos sem nome) em luto após a morte acidental do filho pequeno, isolando-se em uma cabana (convenientemente chamada de "Eden") na floresta para enfrentar o trauma e, gradualmente, mergulhando em uma espiral de violência, dor e desespero. Além de imagens fortes e cenas de violência explícita, o filme é conhecido pelo tratamento quase filosófico que confere ao sofrimento humano, misturando elementos de psicanálise, simbolismo natural e misoginia, temática pela qual o diretor foi amplamente criticado.

Se por um lado “Anticristo” impressiona pelo rigor estético e pela forma como constrói tensão com uma fotografia fria e uma trilha sonora minimalista, por outro, é também alvo de críticas em relação à forma como utiliza a violência e o choque como recurso narrativo. Muitos argumentam que o filme recai em um certo exibicionismo visual, em detrimento de uma discussão mais elaborada sobre gênero, dor e luto. Além disso, a figura de Lars Von Trier, frequentemente envolto em polêmicas sobre declarações controversas e comportamentos machistas, levanta questionamentos sobre a validade de suas representações femininas: para parte da crítica, o diretor se apropria da imagem da mulher como "mal" primitivo apenas para chocar, reforçando estereótipos e não necessariamente subvertendo-os.

Contudo, há quem veja em “Anticristo” justamente o contrário: uma representação feminina potente, solta e selvagem. A personagem interpretada por Gainsbourg é tudo menos frágil. Sua violência, desejo e vulnerabilidade coexistem em um retrato caótico e profundamente humano, distante do binário comumente apresentado em narrativas que mostram mulheres ou como vítimas indefesas, ou como heroínas perfeitas e incorruptíveis. Essa construção abre espaço para reflexões sobre o feminino enquanto força da natureza, indomável e logicamente inexplicável. Essa visão contrasta com o olhar masculino racional e analítico do marido, que parece constantemente deslocado diante da força instintiva que emana da mulher, sempre se combinando ou se chocando com a da floresta ao redor do casal.

Outro ponto de destaque são as sutilezas do roteiro e da direção. Se “Anticristo” choca nos momentos de violência explícita, ele também comunica muito através de pequenos gestos, ruídos e imagens aparentemente banais. Um exemplo marcante é a cena das sementes que caem incessantemente no teto da cabana, gerando incômodo insuportável à mulher enquanto o homem parece sequer notá-las. Essa diferença é uma metáfora sensível para a relação de cada gênero com a parentalidade: para o corpo dela, cada "semente" é custosa, difícil de produzir e mais difícil ainda de germinar, algo que demanda atenção, cuidado e também sofrimento; para ele, trata-se apenas de mais uma semente, algo que ele produz em abundância e pode plantar livremente sem muito esforço. É nesse tipo de simbolismo que Von Trier constrói uma discussão rica sobre o luto, a perda e o modo como o corpo feminino vive a experiência de gerar e perder uma vida.

Lars Von Trier cria em “Anticristo” uma atmosfera em que a mulher é também natureza, caos e erotismo. A floresta em si, com seus animais simbólicos e ciclos de vida e morte, ecoa o estado emocional da protagonista, que vai da dor à destruição. Há quem veja nesse paralelismo uma redução da mulher ao papel de criatura irracional; há também quem leia esse movimento como uma afirmação da força feminina, selvagem e incompreensível por uma lógica masculina que tenta domesticá-la.

"Anticristo” é uma obra que provoca discussão precisamente porque está no limiar entre o gênio estético e a polêmica gratuita. Seu impacto não reside apenas no choque, mas na forma como cada elemento – da fotografia aos sons da floresta, do olhar frio do homem ao desespero da mulher – revela um universo onde a dor e o desejo coexistem sem moralismos. Apesar de imperfeições, de abusar por vezes da violência como recurso, e de ser manchado pelas atitudes do próprio diretor fora das telas, “Anticristo” segue como um filme poderoso da filmografia recente, abrindo espaço para leituras sobre gênero, violência, maternidade e os limites da razão humana.