por Bárbarah Alves
Vanoye e Goliot-Lété pontuam em Ensaio Sobre a Análise Fílmica (1994) que entrar em contato com um filme gera uma multiplicidade de “impressões, emoções e intuições”. Logo, quando pensamos no cinema de Martin Scorsese, por exemplo, pensamos em no caos urbano de Nova Iorque, nas personagens imperfeitas e autodestrutivas, em Robert De Niro e Leonardo diCaprio; quando pensamos em David Lynch, por sua vez, nos vem à mente o surreal, o grotesco, as cortinas vermelhas ou o veludo azul, as trilhas melancólicas e os ruídos sonoros; quando pensamos em Aki Kaurismäki, pensamos em minimalismo, personagens marginalizados, humor seco, lacônico, e um fundo de esperança. Em Folhas de Outono (2023), último longa produzido pelo diretor finlandês, o cenário não muda. O filme pode ser descrito como uma comédia romântica, porém a simples definição do seu gênero não faz juz ao que, de fato, ele é.
O enredo acompanha os encontros e desencontros de Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen), dois trabalhadores que levam vidas marcadas pela solidão, rotinas exaustivas e desencantos. Ansa trabalha em um supermercado e, de vez em quando, afana algum produto fora do prazo de validade para se alimentar. Holappa, por outro lado, é um operário de construção civil com vício em álcool. Ambos se encontram à noite em um karaokê e timidamente constroem uma relação. Como já disse anteriormente, isso poderia descrever uma gama de filmes hollywoodianos. No entanto, o interessante desse — e de toda obra do Kaurismäki, diga-se de passagem — é a forma como se conta essa história.
O cinema de Kaurismäki é econômico: poucos elementos na mise en scène, cores sólidas e paleta enxuta (azuis, amarelos, vermelhos e verdes em boa parte do filme), cenas construídas a partir de poucos takes — de acordo com Alma Pöysti, os direcionamentos para os atores são: "não ensaie e não leia muito o roteiro". Ou seja, todas as escolhas do diretor sugerem uma busca pelo autêntico e pelo simples. É muito comum bater o olho em qualquer produto da filmografia do diretor e automaticamente dizer: “esse é um filme do Kaurismäki” por tais características. Com Folhas de Outono não há diferença. Todos os elementos “kaurismakianos” estão lá.
Voltando a falar do longa propriamente dito, o trabalho narra essa história de amor esquisitinha entre Ansa e Holappa, porém traz outros elementos interessantes de se pontuar. O primeiro deles é a forma como não há definição de tempo. Não se sabe ao certo em qual ano ou período se passa a história. Kaurismäki traz elementos retrô, como o rádio, o karaokê, os carros antigos, ao mesmo tempo em que traz o computador e o celular. Aliás, devo dizer que esses últimos são bem pontuais e não são de última geração. Outro viés que nos localiza no tempo e no espaço da história é a costura da própria narrativa passada no rádio. Em muitas cenas vemos informes a respeito da Guerra na Ucrânia. Contudo, outros elementos não nos colocam diretamente nos dias atuais. Portanto, pode-se dizer que a realidade da narrativa é fictícia, fabulosa.
Um outro ponto relevante da obra é a forma como são discutidas questões a respeito da vida do proletariado. O perfil derrotista e desesperançoso das personagens sugere uma crítica ao sistema capitalista. Para o diretor, não há possibilidade de colheita de frutos nesse modus operandi. Não é à toa que Kaurismäki produziu ao longo de sua filmografia duas trilogias: “Trilogia do Porto (ou Trilogia do Refúgio” e “Trilogia dos Perdedores (ou Trilogia Proletária)”. Na primeira, o diretor aborda temas como a migração, desigualdade, guerra e precariedade. Na segunda, a solidariedade, imigração, exclusão social e resistência. Folhas de Outono poderia estar nessa segunda “trilogia”, ainda que alguns críticos sugiram uma terceira trilogia — “Trilogia da Solidariedade Europeia”, filmes mais recentes e que abordam temas sociais contemporâneos como a migração, desigualdade, guerra e precariedade.
Por fim, outro aspecto que vale a ressalva são as próprias personagens e como elas agem no espaço e nas situações. Serei mais clara: a todo momento a sensação que se passa é de que estamos a ver um hibridismo entre a comédia e a tragédia grega — inclusive, com várias cenas estáticas e com as personagens quase quebrando a quarta parede, como se reconhecessem e buscassem o nosso riso. As personagens são apáticas e irônicas. Um humor cortante, seco, sem risadinhas. E, muitas vezes, esse humor vem de uma “lógica ilógica” ou do absurdo. Logo no início do filme, Holappa senta em um banco para fumar um cigarro. Acima dele, uma placa diz: “proibido fumar”. Pouco tempo depois, seu amigo chega, também senta no banco e fala: “isso ainda vai te matar”, apontando para o cigarro. O homem, então, tira uma carteira de cigarros do próprio bolso e acende um. São várias as situações semelhantes durante os pouco mais de 80 minutos da obra.
O estilo cinematográfico, os temas e o humor de Aki Kaurismäki talvez não agradem a todos. Folhas de Outono, talvez seja um dos mais digestíveis dentro de sua cinematografia simplesmente pelo fato de se tratar de uma história de amor. Ainda existe afeto no norte europeu. Um afeto frio, seco, travoso, mas ainda assim um afeto esperançoso.
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