Hecléia de Oliveira Machado
Lars Von Trier, conhecido por suas obras provocativas e por vezes controversas, lançou em 2009 o longa “Anticristo”, filme que se consolidou como um dos mais ousados e discutidos do cinema contemporâneo. Protagonizado por Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe, o longa mistura terror psicológico, erotismo e simbolismo religioso em uma narrativa dividida em cinco capítulos. “Anticristo” retrata um casal (ambos sem nome) em luto após a morte acidental do filho pequeno, isolando-se em uma cabana (convenientemente chamada de "Eden") na floresta para enfrentar o trauma e, gradualmente, mergulhando em uma espiral de violência, dor e desespero. Além de imagens fortes e cenas de violência explícita, o filme é conhecido pelo tratamento quase filosófico que confere ao sofrimento humano, misturando elementos de psicanálise, simbolismo natural e misoginia, temática pela qual o diretor foi amplamente criticado.
Se por um lado “Anticristo” impressiona pelo rigor estético e pela forma como constrói tensão com uma fotografia fria e uma trilha sonora minimalista, por outro, é também alvo de críticas em relação à forma como utiliza a violência e o choque como recurso narrativo. Muitos argumentam que o filme recai em um certo exibicionismo visual, em detrimento de uma discussão mais elaborada sobre gênero, dor e luto. Além disso, a figura de Lars Von Trier, frequentemente envolto em polêmicas sobre declarações controversas e comportamentos machistas, levanta questionamentos sobre a validade de suas representações femininas: para parte da crítica, o diretor se apropria da imagem da mulher como "mal" primitivo apenas para chocar, reforçando estereótipos e não necessariamente subvertendo-os.
Contudo, há quem veja em “Anticristo” justamente o contrário: uma representação feminina potente, solta e selvagem. A personagem interpretada por Gainsbourg é tudo menos frágil. Sua violência, desejo e vulnerabilidade coexistem em um retrato caótico e profundamente humano, distante do binário comumente apresentado em narrativas que mostram mulheres ou como vítimas indefesas, ou como heroínas perfeitas e incorruptíveis. Essa construção abre espaço para reflexões sobre o feminino enquanto força da natureza, indomável e logicamente inexplicável. Essa visão contrasta com o olhar masculino racional e analítico do marido, que parece constantemente deslocado diante da força instintiva que emana da mulher, sempre se combinando ou se chocando com a da floresta ao redor do casal.
Outro ponto de destaque são as sutilezas do roteiro e da direção. Se “Anticristo” choca nos momentos de violência explícita, ele também comunica muito através de pequenos gestos, ruídos e imagens aparentemente banais. Um exemplo marcante é a cena das sementes que caem incessantemente no teto da cabana, gerando incômodo insuportável à mulher enquanto o homem parece sequer notá-las. Essa diferença é uma metáfora sensível para a relação de cada gênero com a parentalidade: para o corpo dela, cada "semente" é custosa, difícil de produzir e mais difícil ainda de germinar, algo que demanda atenção, cuidado e também sofrimento; para ele, trata-se apenas de mais uma semente, algo que ele produz em abundância e pode plantar livremente sem muito esforço. É nesse tipo de simbolismo que Von Trier constrói uma discussão rica sobre o luto, a perda e o modo como o corpo feminino vive a experiência de gerar e perder uma vida.
Lars Von Trier cria em “Anticristo” uma atmosfera em que a mulher é também natureza, caos e erotismo. A floresta em si, com seus animais simbólicos e ciclos de vida e morte, ecoa o estado emocional da protagonista, que vai da dor à destruição. Há quem veja nesse paralelismo uma redução da mulher ao papel de criatura irracional; há também quem leia esse movimento como uma afirmação da força feminina, selvagem e incompreensível por uma lógica masculina que tenta domesticá-la.
"Anticristo” é uma obra que provoca discussão precisamente porque está no limiar entre o gênio estético e a polêmica gratuita. Seu impacto não reside apenas no choque, mas na forma como cada elemento – da fotografia aos sons da floresta, do olhar frio do homem ao desespero da mulher – revela um universo onde a dor e o desejo coexistem sem moralismos. Apesar de imperfeições, de abusar por vezes da violência como recurso, e de ser manchado pelas atitudes do próprio diretor fora das telas, “Anticristo” segue como um filme poderoso da filmografia recente, abrindo espaço para leituras sobre gênero, violência, maternidade e os limites da razão humana.
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