quarta-feira, 13 de novembro de 2019

beco em festa

A RECUPERAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE NATAL POR TRÁS DOS GRAFITES

Novos painéis de grafites fazem parte do projeto de revitalização do centro histórico da capital potiguar, na Cidade Alta. Mas é preciso ir além, através de becos e vielas, para compreender como o reaquecido ponto histórico, cultural e agora turístico ressurgiu da lama.

Por: Heillysmar Lima, Jefferson Bernardino e Jônatas Saturnino


O PROJETO VIVA O CENTRO

Insatisfeito e inquieto com a negligência do poder público, o deslocamento do centro  comercial  para shoppings da zona Sul e da pouca valorização por parte da população daquele que um dia já foi o “Grande Ponto”, principal espaço comercial e cultural de Natal através das décadas do século passado, o comerciante Delcindo Mascena uniu forças aos poucos com outros comerciantes da Cidade Alta com a finalidade de restaurar e dar nova vida aos espaços, atraindo mais clientes e criando novas áreas de consumo de arte e lazer. A partir dessa mobilização, nasceu o projeto Viva o Centro, em 2018, com o propósito de resgatar a cena cultural de um dos mais antigos bairros de Natal, e do seu comércio. Sem falar no turismo local, que se resume a praias, às bordas da cidade. Delcindo, liderando o projeto, correu atrás das autoridades competentes e após se reunir com elas conseguiu garantir iluminação, limpeza e segurança para o nascedouro da noiva do sol. O projeto chamou a atenção de instituições como o SEBRAE, a Fecomércio, a Câmara de Dirigentes e Lojistas (CDL), FIERN. A partir de novas reuniões e dos riscos para o comércio e o lucro na região, aderiram à ideia dando suporte em uma ação que envolve de 250 a 300 empresários no momento, além dos moradores do centro, dando um tom apenas não somente cultural ao projeto, mas financeiro.

Delcindo conseguiu levar de volta para o centro o Natal em Natal, incluí-lo na agenda de shows e atividades comemorativas. O prefeito Álvaro Dias colocou nas mãos do projeto a responsabilidade de planejar e administrar os festejos. Ao serem perguntados sobre quais artistas queriam para se apresentar nos eventos, disseram que além dos artistas locais, desejavam Fagner, Waldonys e Alexandre Pires. O prefeito lhes deu os três.

Em parceria com uma empresa de turismo, que pôs o Centro da cidade em sua rota, o projeto atrai dezenas de turistas por dia. A resposta sempre é positiva.
Um outro projeto, da prefeitura da cidade juntamente com a SEMURB e a STTU, visa a construção de um calçadão ligando a catedral nova à catedral velha, com praças em seu percurso. O projeto de restauração da fachada e da arquitetura neoclássica dos prédios já começou. 

Em relação ao Alecrim, há uma parceria do projeto Viva o Centro com a Associação dos Empresários do Bairro do Alecrim (AEBA) e também com representantes da Ribeira para novos trabalhos de revitalização.

Segundo ele, houve o início de um diálogo com a Secretaria Municipal de Cultura (FUNCARTE) mas não deu em samba, assim como com a Associação dos Amigos do Beco da Lama e adjacências (SAMBA), segundo ele. No Beco da Lama, não houve incentivo por parte da prefeitura e todo o processo de revitalização foi feito por conta própria e financiamento dos envolvidos, apenas não tendo que arcar com a tinta, única oferta e auxílio da Prefeitura. No Espaço Cultural Ruy Pereira, foi diferente. A prefeitura se interessou em restaurar o local. Segundo Delcindo, a revitalização significa “trazer de volta a nossa base cultural, a estrela onde brilhou Natal. E a partir do momento em que conseguirmos revitalizar cultural, urbana e comercialmente, a estrela volta a brilhar para o mundo”. Para ele, não há futuro sem cultura.

Atualmente 600 vagas estão abertas para oficinas, através da FUNCARTE, ministrada por artistas dos mais diversos tipos de arte, em todas as zonas da cidade, com inscrições abertas em outubro. Cerca de quarenta editais estão abertos.

A REVITALIZAÇÃO ATRAVÉS DOS SPRAYS

Arte de rua e de estética urbana, inicialmente marginalizada por estar associada à periferia e ainda vítima de preconceito por parte de outros artistas e pela população, o grafite nasceu a partir de uma necessidade de comunicação, representação e afirmação artística; e registro de ideias de uma camada social até então silenciada. Vindo dos guetos norte-americanos para ganhar as ruas e becos do Brasil, e consequentemente de Natal.

A ideia de revitalizar o Beco da Lama partiu de Delcindo Mascena, que viajou até São Paulo para visitar um amigo que possui quatro bares na Vila Madalena, nas vizinhanças do Beco do Batman. Pediu ao amigo para que o apresentasse o artista responsável pelas artes do local. Conheceu o artista de renome internacional Dicesarlove. Após um diálogo, em que afirmou não ter dinheiro para pagar o cachê dele, o artista quis apadrinhar o beco e pediu apenas as passagens, hospedagem e alimentação.

Um dos artistas locais responsáveis pela grafitagem dos espaços culturais revitalizados, Miguel Caracará, conta que o processo criativo começou a partir de uma troca de ideias com Dicesar, a partir da necessidade de usar os espaços como galerias de arte a céu aberto para os artistas que trabalham com o grafite em Natal.  O primeiro passo foi a pesquisa de locais nos espaços onde o trabalho pudesse ser desenvolvido. O Beco da Lama foi o primeiro contemplado e na sequência outros espaços como o Ruy Pereira. A temática abordada primeiramente no beco foi a da figura de Câmara Cascudo e logo após, eles tiveram uma liberdade maior para criar, a partir de sugestões e propostas partindo do seu trabalho. A partir de uma curadoria, alguns artistas foram selecionados após terem os seus projetos apresentados, com remuneração e estrutura garantidas, com total liberdade para usufruírem de suas técnicas. “Já existia uma cena e um mercado para o grafite aqui e estava faltando apenas fomentação e na medida em que começou a aparecer, foi melhorando para todos que trabalham diretamente com a arte do grafite aqui na cidade”. Foram em torno de quarenta e oito artistas.

A presença da cultura popular nas gravuras se deu a partir de uma influência local, nordestina, e usada por quase uma unanimidade de artistas grafiteiros da região, descrita por Miguel como uma riqueza cultural e popular, algo comum dentro do processo criativo de artistas nordestinos.

A revitalização e grafitagem de outros pontos da cidade, como bairros periféricos, ainda estão sobre planejamento, dependendo de alguns investimentos e que serão grandes painéis, com um significativo impacto visual. O de Areia Preta ainda será inaugurado.

O BECO DA LAMA

A estreita rua Vaz Gondim já foi ponto de encontro de intelectuais, boêmios e artistas da cidade. Recebeu esse nome pela quantidade não só de lama mas também de excrementos humanos encontrados por lá. Nas últimas décadas, era um espaço decadente, desvalorizado, com seus bares frequentados ainda por quem buscava por uma boa farra, mas seus canteiros por dependentes químicos e prostitutas, em uma degradação física e moral. O Beco da Lama ganhou nova cara, novo significado e floresceu como um espaço de lazer novo para a população e de manifestação da cultura popular potiguar. Diariamente, rola um sambinha por lá a partir das três horas da tarde, indo até o anoitecer. Além dos grafites e bares, também há outros tipos de comércios, como uma loja de produtos religiosos onde a pomba-gira está ao lado de Maria e Buda as observa no canto oposto da entrada da loja. A programação cultural agora envolve eventos no colorido e grafitado local como o Samba no Beco, o Festival Gastronômico do Beco da Lama – Pratodomundo e o mais recente Festival Literário do Beco da Lama – FliBeco e a Feira de Quadrinhos. Se tornou um forte espaço de turismo, comércio (comidas e bebidas, livros, discos) e produção artística e criativa. No bar da Nazaré, nunca faltam uma gelada, um papo descontraído e um bom petisco.

Porém, há críticas ao projeto por parte da Diretora da Associação dos Amigos do Beco Maria Gorette Barbosa. Em entrevista ao Brasil De fato, a dona do bar mais famoso do Beco, Nazaré, disse que não houve nenhum incentivo e apoio por parte das autoridades. “Eles colocam banheiro químico e iluminação para o samba do sábado [do projeto Viva Centro, de comerciantes do bairro], mas na quarta-feira retiram e não podemos usufruir dos serviços.”. Um outro comerciante do local, um açougueiro, alegou que a movimentação nos bares aumentou e o faturamento também.  Disse que as entidades ligadas ao Viva o Centro estiveram no local para discutir e conversar sobre o projeto com os comerciantes do beco. Muitos bares perigavam até fechar. Para outros tipos de comércio, a situação continuou na mesma. O preconceito da sociedade com o reduto cultural também diminuiu.

Os artistas também fazem um balanço positivo por terem um novo espaço para mostrarem o seu trabalho e lucrarem com isso, dando um maior alcance a eles não só em termos de visibilidade mas de expressividade.  Ou para que os visitantes conheçam as batucadas do bar da Nazaré que até então eram abafadas pela precária estrutura e pela discriminação para com o espaço e o que era produzido nele. “Eu tenho fé em Deus que quanto mais a gente trabalha, mais vai dar certo o nosso trabalho. Porque os artistas da terra não tem nenhum valor não. Só quem lembra de nós é Deus. A prefeitura e o Estado não ajudam em nada. Eu não tenho nem carteira de artista”, protestou um deles.

ESPAÇO CULTURAL RUY PEREIRA E O ZÉ REEIRA

No espremido beco, encostado ao IFRN da Cidade Alta, boêmia rua Professor Zuza, nas subidas e descidas da Avenida Rio Branco quem manda é o Zé Reeira, uma figura já bastante idosa mas rodeada por amigos que frequentam diariamente o seu bar, de grande vitalidade e alegria. A revitalização chegou até lá. Com grafites espalhados multicolores e que representam uma certa quantidade de personagens, e uma tenda com mesas e cadeiras, Zé Reeira viu o seu bar, local de uma vida inteira, ganhar nova vida e ser valorizado, ganhando até nova e eclética clientela. “Quando eu abri o bar, essa rua ainda era aberta. Depois, a câmara tombou. Depois disso, o espaço melhorou. O nosso interesse é sempre na área cultural. Começou com feirinhas de artesanato, de legumes e verduras. Ainda temos algumas feiras aqui. Muito do que não tem espaço no IFRN é realizado aqui e o espaço a cada dia fica mais famoso. Eu sou um felizardo do projeto mas antes era eu mesmo que bancava tudo”. Ele é esperançoso em relação ao futuro do espaço, se palitando pelo projeto de revitalização. A todo o tempo, cobre o prefeito Álvaro Dias e sua gestão de elogios.

Um homem embriagado, um dos seus melhores amigos e mais assíduos frequentadores (todos os dias), não gostou da nova decoração do local por achar que as novas imagens são “muito pesadas” e que não representam a cultura popular. Bêbado, pergunta várias vezes o significado da palavra “revitalização” e acha que o trabalho é apenas uma maquiagem.

Todas as sextas e sábados tem uma roda de samba comandada pelo músico Debinha e também o Serestas ao Luar. A boa comida também atrai o público nos finais de semana. O local ainda passa por obras. A revitalização preservou mas ao mesmo tempo jogou o passado e a sua pintura antiga para a nova linguagem e estética do grafite.


Também vale a pena passar pela Casa do Cordel, localizada na rua Vigário Bartolomeu. O coração de Natal pulsa, de maneira escondida e desvalorizada, em seu berço ao som do coco de roda.

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