A RECUPERAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE NATAL POR TRÁS DOS GRAFITES
Novos painéis de grafites fazem
parte do projeto de revitalização do centro histórico da capital potiguar, na
Cidade Alta. Mas é preciso ir além, através de becos e vielas, para compreender
como o reaquecido ponto histórico, cultural e agora turístico ressurgiu da
lama.
Por: Heillysmar Lima, Jefferson
Bernardino e Jônatas Saturnino
O PROJETO VIVA O
CENTRO
Insatisfeito e inquieto com a
negligência do poder público, o deslocamento do centro comercial
para shoppings da zona Sul e da pouca valorização por parte da população
daquele que um dia já foi o “Grande Ponto”, principal espaço comercial e
cultural de Natal através das décadas do século passado, o comerciante Delcindo
Mascena uniu forças aos poucos com outros comerciantes da Cidade Alta com a
finalidade de restaurar e dar nova vida aos espaços, atraindo mais clientes e
criando novas áreas de consumo de arte e lazer. A partir dessa mobilização,
nasceu o projeto Viva o Centro, em 2018, com o propósito de resgatar a cena
cultural de um dos mais antigos bairros de Natal, e do seu comércio. Sem falar
no turismo local, que se resume a praias, às bordas da cidade. Delcindo,
liderando o projeto, correu atrás das autoridades competentes e após se reunir
com elas conseguiu garantir iluminação, limpeza e segurança para o nascedouro
da noiva do sol. O projeto chamou a atenção de instituições como o SEBRAE, a
Fecomércio, a Câmara de Dirigentes e Lojistas (CDL), FIERN. A partir de novas
reuniões e dos riscos para o comércio e o lucro na região, aderiram à ideia
dando suporte em uma ação que envolve de 250 a 300 empresários no momento, além
dos moradores do centro, dando um tom apenas não somente cultural ao projeto,
mas financeiro.
Delcindo conseguiu levar de volta
para o centro o Natal em Natal, incluí-lo na agenda de shows e atividades
comemorativas. O prefeito Álvaro Dias colocou nas mãos do projeto a
responsabilidade de planejar e administrar os festejos. Ao serem perguntados
sobre quais artistas queriam para se apresentar nos eventos, disseram que além
dos artistas locais, desejavam Fagner, Waldonys e Alexandre Pires. O prefeito
lhes deu os três.
Em parceria com uma empresa de
turismo, que pôs o Centro da cidade em sua rota, o projeto atrai dezenas de
turistas por dia. A resposta sempre é positiva.
Um outro projeto, da prefeitura
da cidade juntamente com a SEMURB e a STTU, visa a construção de um calçadão
ligando a catedral nova à catedral velha, com praças em seu percurso. O projeto
de restauração da fachada e da arquitetura neoclássica dos prédios já
começou.
Em relação ao Alecrim, há uma
parceria do projeto Viva o Centro com a Associação dos Empresários do Bairro do
Alecrim (AEBA) e também com representantes da Ribeira para novos trabalhos de revitalização.
Segundo ele, houve o início de um
diálogo com a Secretaria Municipal de Cultura (FUNCARTE) mas não deu em samba,
assim como com a Associação dos Amigos do Beco da Lama e adjacências (SAMBA),
segundo ele. No Beco da Lama, não houve incentivo por parte da prefeitura e
todo o processo de revitalização foi feito por conta própria e financiamento
dos envolvidos, apenas não tendo que arcar com a tinta, única oferta e auxílio
da Prefeitura. No Espaço Cultural Ruy Pereira, foi diferente. A prefeitura se
interessou em restaurar o local. Segundo Delcindo, a revitalização significa
“trazer de volta a nossa base cultural, a estrela onde brilhou Natal. E a
partir do momento em que conseguirmos revitalizar cultural, urbana e
comercialmente, a estrela volta a brilhar para o mundo”. Para ele, não há
futuro sem cultura.
Atualmente 600 vagas estão
abertas para oficinas, através da FUNCARTE, ministrada por artistas dos mais
diversos tipos de arte, em todas as zonas da cidade, com inscrições abertas em
outubro. Cerca de quarenta editais estão abertos.
A REVITALIZAÇÃO ATRAVÉS DOS SPRAYS
Arte de rua e de estética urbana,
inicialmente marginalizada por estar associada à periferia e ainda vítima de
preconceito por parte de outros artistas e pela população, o grafite nasceu a
partir de uma necessidade de comunicação, representação e afirmação artística;
e registro de ideias de uma camada social até então silenciada. Vindo dos
guetos norte-americanos para ganhar as ruas e becos do Brasil, e
consequentemente de Natal.
A ideia de revitalizar o Beco da
Lama partiu de Delcindo Mascena, que viajou até São Paulo para visitar um amigo
que possui quatro bares na Vila Madalena, nas vizinhanças do Beco do Batman.
Pediu ao amigo para que o apresentasse o artista responsável pelas artes do
local. Conheceu o artista de renome internacional Dicesarlove. Após um diálogo,
em que afirmou não ter dinheiro para pagar o cachê dele, o artista quis
apadrinhar o beco e pediu apenas as passagens, hospedagem e alimentação.
Um dos artistas locais
responsáveis pela grafitagem dos espaços culturais revitalizados, Miguel
Caracará, conta que o processo criativo começou a partir de uma troca de ideias
com Dicesar, a partir da necessidade de usar os espaços como galerias de arte a
céu aberto para os artistas que trabalham com o grafite em Natal. O primeiro passo foi a pesquisa de locais nos
espaços onde o trabalho pudesse ser desenvolvido. O Beco da Lama foi o primeiro
contemplado e na sequência outros espaços como o Ruy Pereira. A temática
abordada primeiramente no beco foi a da figura de Câmara Cascudo e logo após,
eles tiveram uma liberdade maior para criar, a partir de sugestões e propostas
partindo do seu trabalho. A partir de uma curadoria, alguns artistas foram
selecionados após terem os seus projetos apresentados, com remuneração e
estrutura garantidas, com total liberdade para usufruírem de suas técnicas. “Já
existia uma cena e um mercado para o grafite aqui e estava faltando apenas
fomentação e na medida em que começou a aparecer, foi melhorando para todos que
trabalham diretamente com a arte do grafite aqui na cidade”. Foram em torno de
quarenta e oito artistas.
A presença da cultura popular nas
gravuras se deu a partir de uma influência local, nordestina, e usada por quase
uma unanimidade de artistas grafiteiros da região, descrita por Miguel como uma
riqueza cultural e popular, algo comum dentro do processo criativo de artistas
nordestinos.
A revitalização e grafitagem de
outros pontos da cidade, como bairros periféricos, ainda estão sobre planejamento,
dependendo de alguns investimentos e que serão grandes painéis, com um
significativo impacto visual. O de Areia Preta ainda será inaugurado.
O BECO DA LAMA
A estreita rua Vaz Gondim já foi
ponto de encontro de intelectuais, boêmios e artistas da cidade. Recebeu esse
nome pela quantidade não só de lama mas também de excrementos humanos
encontrados por lá. Nas últimas décadas, era um espaço decadente,
desvalorizado, com seus bares frequentados ainda por quem buscava por uma boa
farra, mas seus canteiros por dependentes químicos e prostitutas, em uma
degradação física e moral. O Beco da Lama ganhou nova cara, novo significado e
floresceu como um espaço de lazer novo para a população e de manifestação da
cultura popular potiguar. Diariamente, rola um sambinha por lá a partir das
três horas da tarde, indo até o anoitecer. Além dos grafites e bares, também há
outros tipos de comércios, como uma loja de produtos religiosos onde a
pomba-gira está ao lado de Maria e Buda as observa no canto oposto da entrada
da loja. A programação cultural agora envolve eventos no colorido e grafitado
local como o Samba no Beco, o Festival Gastronômico do Beco da Lama –
Pratodomundo e o mais recente Festival Literário do Beco da Lama – FliBeco e a
Feira de Quadrinhos. Se tornou um forte espaço de turismo, comércio (comidas e
bebidas, livros, discos) e produção artística e criativa. No bar da Nazaré,
nunca faltam uma gelada, um papo descontraído e um bom petisco.
Porém, há críticas ao projeto por
parte da Diretora da Associação dos Amigos do Beco Maria Gorette Barbosa. Em
entrevista ao Brasil De fato, a dona do bar mais famoso do Beco, Nazaré, disse
que não houve nenhum incentivo e apoio por parte das autoridades. “Eles colocam
banheiro químico e iluminação para o samba do sábado [do projeto Viva Centro,
de comerciantes do bairro], mas na quarta-feira retiram e não podemos usufruir
dos serviços.”. Um outro comerciante do local, um açougueiro, alegou que a
movimentação nos bares aumentou e o faturamento também. Disse que as entidades ligadas ao Viva o
Centro estiveram no local para discutir e conversar sobre o projeto com os
comerciantes do beco. Muitos bares perigavam até fechar. Para outros tipos de
comércio, a situação continuou na mesma. O preconceito da sociedade com o
reduto cultural também diminuiu.
Os artistas também fazem um
balanço positivo por terem um novo espaço para mostrarem o seu trabalho e
lucrarem com isso, dando um maior alcance a eles não só em termos de visibilidade
mas de expressividade. Ou para que os
visitantes conheçam as batucadas do bar da Nazaré que até então eram abafadas
pela precária estrutura e pela discriminação para com o espaço e o que era
produzido nele. “Eu tenho fé em Deus que quanto mais a gente trabalha, mais vai
dar certo o nosso trabalho. Porque os artistas da terra não tem nenhum valor
não. Só quem lembra de nós é Deus. A prefeitura e o Estado não ajudam em nada.
Eu não tenho nem carteira de artista”, protestou um deles.
ESPAÇO CULTURAL RUY PEREIRA E O ZÉ REEIRA
No espremido beco, encostado ao
IFRN da Cidade Alta, boêmia rua Professor Zuza, nas subidas e descidas da
Avenida Rio Branco quem manda é o Zé Reeira, uma figura já bastante idosa mas
rodeada por amigos que frequentam diariamente o seu bar, de grande vitalidade e
alegria. A revitalização chegou até lá. Com grafites espalhados multicolores e
que representam uma certa quantidade de personagens, e uma tenda com mesas e
cadeiras, Zé Reeira viu o seu bar, local de uma vida inteira, ganhar nova vida
e ser valorizado, ganhando até nova e eclética clientela. “Quando eu abri o
bar, essa rua ainda era aberta. Depois, a câmara tombou. Depois disso, o espaço
melhorou. O nosso interesse é sempre na área cultural. Começou com feirinhas de
artesanato, de legumes e verduras. Ainda temos algumas feiras aqui. Muito do
que não tem espaço no IFRN é realizado aqui e o espaço a cada dia fica mais
famoso. Eu sou um felizardo do projeto mas antes era eu mesmo que bancava tudo”.
Ele é esperançoso em relação ao futuro do espaço, se palitando pelo projeto de
revitalização. A todo o tempo, cobre o prefeito Álvaro Dias e sua gestão de
elogios.
Um homem embriagado, um dos seus
melhores amigos e mais assíduos frequentadores (todos os dias), não gostou da
nova decoração do local por achar que as novas imagens são “muito pesadas” e
que não representam a cultura popular. Bêbado, pergunta várias vezes o
significado da palavra “revitalização” e acha que o trabalho é apenas uma
maquiagem.
Todas as sextas e sábados tem uma
roda de samba comandada pelo músico Debinha e também o Serestas ao Luar. A boa
comida também atrai o público nos finais de semana. O local ainda passa por
obras. A revitalização preservou mas ao mesmo tempo jogou o passado e a sua
pintura antiga para a nova linguagem e estética do grafite.
Também vale a pena passar pela Casa
do Cordel, localizada na rua Vigário Bartolomeu. O coração de Natal pulsa, de
maneira escondida e desvalorizada, em seu berço ao som do coco de roda.
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