domingo, 1 de novembro de 2020

conto de aia

 


Não deixe os bastardos te desanimarem:

Feminismo e maternidade em The Handmaid’s Tale


Ana Karla Batista Farias1

Cleber Femina2

Alexandre Ferreira Mulatinho3


  1. Introdução

A série The Handmaid’s Tale (THT) é um exemplo de narrativa transmídia, advinda da obra O Conto da Aia, de autoria da escritora canadense Margaret Atwood, publicado originalmente em 1985. A história distópica sobre a opressão das mulheres numa sociedade vindoura militar, patriarcal e teocrática, fora adaptada para o meio audiovisual em forma de ficção seriada pelo site de streaming Hulu em parceria com os Estúdios MGM e exibida a partir de abril de 2017. A primeira temporada, a qual esta comunicação se concentra, possui dez episódios, cada um com duração aproximada de uma hora.

Caracterizada como um drama, a história é ambientada na República de Gilead, um Estado totalitário, que outrora fora os Estados Unidos da América (EUA), construído a partir de um golpe civil e militar. Nesta primeira temporada a narrativa trata em primeiro plano da história de June, ou Offred, uma aia que busca se libertar da opressão vivida e reencontrar sua família.

A série, assim como o livro no qual é baseada, deixa evidente a reflexão sobre o quão a função biológica da mulher pode ser usada como pretexto para o exercício do controle social sobre a autonomia, direitos reprodutivos e a sexualidade das mulheres, que passam a ter a maternidade como pressuposto norteador de seu papel na sociedade.

Para tal, apresentamos uma breve descrição dos elementos que compõem a estrutura narrativa da série para, em seguida, adentrarmos nas estruturas interiores e revelar a forma e a substância do conteúdo que dela faz parte. Adotamos a perspectiva greimasiana (GREIMAS, 1976) para realizar esse trajeto e no final retomamos a importância da união feminina na luta contra a opressão.

  1. Construção do objeto (ou a forma e a substância de expressão)

A ficção seriada de The Handmaid’s Tale (THT), em sua adaptação audiovisual, apresenta uma narrativa cujo eixo principal aborda a perda de todos os direitos das mulheres e sua localização, pelos homens, em um papel social inferior construído somente em torno das suas características biológicas, mais precisamente, da sua capacidade de reprodução. Originalmente escrita e publicada na década de 1980, uma época de crescente luta pelos diretos femininos, mas que também via a ascensão da política neoliberal, do convívio com a guerra fria e com as lembranças ainda recentes do holocausto da Segunda Guerra, a história, de natureza distópica, busca refletir sobre as consequências de uma sociedade na qual a liberdade de corpo e de pensamento de alguns seres humanos é controlada, sobre a inexistência de igualdade de gêneros e sobre como essa realidade afetaria as mulheres. O enredo reflete, ainda, acerca da importância da união entre as pessoas em torno de um objetivo em comum, neste caso, a reconquista da liberdade e dos direitos das mulheres, fato que começa a ser abordado no clímax desta primeira temporada e que desponta como base do enredo da vindoura.

Para tal, é contada a história de June Osborne (Elizabeth Moss), também conhecida como Offred, uma mulher comum que tem sua vida devastada após a revolução que transformou os Estados Unidos na República de Gilead, uma nação totalitarista, teocrática e falocêntrica, como será detalhado adiante. Neste contexto, o objetivo primário de June é reencontrar sua filha Hannah (Jordana Blake), que fora capturada junto com ela durante a tentativa de fuga de ambas e do marido, Luke Bankole (O-T Fagbenle), para o Canadá. Para alcançar seu objetivo, ela deve sobreviver às diversas formas de violências físicas e mentais impetradas pelos representantes do atual regime.

No enredo, aufere-se que o mundo vivencia uma onda de infertilidade decorrente dos efeitos da poluição e do aquecimento global, o que desencadeia uma redução expressiva nas taxas de natalidade e de sobrevivência das crianças recém-nascidas. Desta feita, emerge um cenário de exaltação à maternidade como uma dádiva divina. Por conseguinte, um grupo de fundamentalistas religiosos formado por homens e mulheres oriundos de uma classe social abastada, branca e conservadora, começa a defender piamente, sem aceitar argumentos contrários, que a crescente infertilidade alastrada pelo mundo constitui uma manifestação da ira de Deus, em face das ações pecaminosas e promíscuas da sociedade hodierna de então.

Este grupo se reúne sob a alcunha de Filhos de Jacó, com referências diretas à trajetória deste patriarca bíblico (GÊNESIS: 25-50). A história de infertilidade entre Jacó e sua esposa Raquel é utilizada como paradigma principal para as ações desse grupo, que acredita que somente copulando com mulheres férteis serão capazes de resolver o problema da baixa natalidade que assola o país. Entretanto, o papel de responsáveis pelo “salvamento da humanidade” é dado apenas aos homens detentores de alguma posição de comando dentro desta organização política, militar e religiosa. Outro ponto pelo qual é possível aferir a escolha da analogia a Jacó dentre tantos outros personagens bíblicos com o mesmo problema enfrentado por ele4, é a formação de um novo Estado político e religioso, uma vez que os doze filhos de Jacó seriam responsáveis pela formação das Tribos de Israel base do judaísmo e do atual Estado de Israel. Logo, as crianças oriundas desse processo reprodutivo seriam as responsáveis pelo estabelecimento de uma nova nação abençoada por Deus.

Após usurparem o poder político por meio de uma sequência de atentados, ardilosa e irresponsavelmente imputados a grupos fundamentalistas islâmicos, os Filhos de Jacó assumem o Governo, implantam uma enxurrada de medidas antidemocráticas, misóginas, homofóbicas e neofascistas, onde os direitos humanos, sobretudo, das minorias sociais são anulados. A Constituição dos Estados Unidos é suspensa, passando a população a ser regida com fulcro no Antigo Testamento. O país passa a se chamar República de Gilead, em referência ao monte de Gileade no qual Jacó e sua família buscaram abrigo após fugirem do domínio do seu sogro, Labão (GÊNESIS. 31-32). Dos 50 estados norte-americanos, 48 passaram a estar sob o julgo da nova república, ficando de fora apenas o Alasca e o Havaí, que não estão ligados territorialmente aos demais.

Contraditoriamente, apesar de a natalidade ser vista como uma bênção divina a serviço da reconstrução da nação, as mulheres são as principais prejudicadas, tendo sua emancipação política e civil suprimida. Elas são impedidas de exercer qualquer atividade empregatícia, segundo os ditames do novo governo. Suas contas bancárias são bloqueadas e, por fim, as mulheres são reduzidas ao papel de propriedade dos homens ou do Estado, sendo-lhes negadas a cidadania e direitos básicos, como a simples possibilidade de ler qualquer material que seja.

A posição de cada mulher na sociedade criada pelos Filhos de Jacó varia conforme sua vida pregressa. As mulheres férteis, mesmo casadas, são capturadas e enviadas para os Centros Vermelhos, onde são torturadas e doutrinadas para exercerem o papel de aias nas casas dos comandantes da República de Gilead. Coercitivamente, elas são responsáveis pela gestação das futuras crianças, como ocorre com a protagonista, June. As mais velhas e que comungam dos valores do novo governo podem atuar como Tias, que são as doutrinadoras e comandantes dos Centros Vermelhos. As mulheres inférteis e submissas ao atual regime trabalham nas casas dos comandantes como cozinheiras ou secretárias e são chamadas de Marthas. Aquelas que são inférteis, ou mesmo as férteis que se rebelaram contra o governo, ou são aprisionadas em bordéis secretos, chamados de Palácios de Jezebel, onde são obrigadas a servir aos prazeres lascivos dos comandantes e dos homens elitizados, ou são enviadas para as colônias, locais não mostrados durante a série, mas de onde se deduz que as pessoas são forçadas ao trabalho escravo ou à punição por morte. Por fim, as casadas com os homens que promoveram o golpe de Estado continuam a manter seu status social, embora se comportem de maneira subserviente ao marido e também tenham seus direitos civis negados.

Temporalmente, a adaptação audiovisual da história se desenvolve em um futuro próximo. Nesta primeira temporada da série não há a apresentação de uma data precisa, porém alguns itens de cenário e construções narrativas apontam para um período posterior ao ano de 20155. Por outro lado, a época na qual é desenvolvida a linha central da narrativa se passa três anos após a revolução que destituiu o governo dos Estados Unidos e iniciou a República de Gilead. Geograficamente, o núcleo central de personagens se localiza nas proximidades da cidade de Boston, estado de Massachusetts, nordeste dos Estados Unidos. Apesar da distância da fronteira com o Canadá, é a partir dali que muitas pessoas contrárias ao regime imposto pelos Filhos de Jacó partem para fugir em direção ao país vizinho.

É neste cenário que a história da personagem June é desenvolvida. Após ser capturada durante uma tentativa de sair do país, sobretudo devido ao que ocorre com as mulheres que são férteis, June é enviada para o Centro Vermelho Leia e Raquel, onde passa por um processo de ressocialização por meio de violência física e mental para agir como aia. Tia Lydia (Ann Dowd), a responsável pelo grupo de mulheres do qual June faz parte é categórica sobre o papel que elas deverão seguir a partir de então: “Bila serviu Raquel, vocês vão servir os líderes dos fiéis. Vocês vão gerar crianças para eles” (episódio 01).

O ponto principal da doutrinação imposta no Centro Vermelho é a participação das aias na “cerimônia de concepção”, um estupro travestido de ritual religioso, realizado periodicamente e cuja finalidade é a geração de crianças para repovoar Gilead. Como tal, a cerimônia é legitimada em consonância com as leis da nova república e formalizada de acordo com um protocolo de ações em duas etapas: na primeira, a aia se dirige a um determinado local da casa e se mantém ajoelhada e em oração; adentram ao recinto os demais empregados da família e, em seguida, a patroa; por último, entra o comandante, que lê a passagem bíblica na qual Raquel entrega Bila para que Jacó a engravide (GÊNESIS, 30, 1-3). Na segunda, a esposa e a aia vão para o quarto; sobre a cama, a aia deita de costas sobre as pernas da patroa, que a segura pelos pulsos; por fim, o comandante realiza o estupro e encerra a cerimônia.

Após o treinamento, June é enviada para a casa da família Waterford, composta pelo comandante Fred (Joseph Fiennes) e sua esposa Serena Joy (Yvonne Strahovski). É a partir desse ponto que June passa a ser chamada de Offred, aglutinação de of Fred, ou “de Fred”, denotando que ela é propriedade do comandante. Completam o núcleo de personagens da casa dos Waterford a Martha Rita (Amanda Brugel) e o motorista Nick Blaine (Max Minghella), que também é um espião à serviço do Olho, uma agência de espionagem do governo da República de Gilead. Além destes, June conta com o apoio da amiga Moira (Samira Wiley), aia fugitiva que, recapturada, foi enviada para o Palácio de Jezebel, de onde escapou novamente e se refugiou no Canadá, e das aias Emili, ou Ofglen (Alexis Bledel), Janine ou Ofwarren (Madeline Brewer), Ofsamuel (Jenessa Grant) e de Alma (Nina Kiri)6, que convence June a participar de uma rede de aias com viés rebelde, denominada Mayday, que buscam a libertação.

A pedido de Alma, June deve conseguir uma arma a ser utilizada pelas supostas componentes da Mayday e capaz de desestabilizar o governo. June passa a ter acesso a ela somente no episódio 10, o último da temporada. Para sua surpresa, a arma se revela como um pacote de cartas de outras mulheres com seus depoimentos, seus relatos de suas vidas pregressas e dos abusos que passaram a sofrer após a prisão. Elas contam, ainda, sobre a esperança que cada uma cultiva na queda do regime imposto e no reencontro com as famílias. Neste sentido, a unidade das estórias escritas nas cartas demonstra que o pior inimigo do governo é a união entre a mulheres, fato revelado nas cenas finais do último episódio da temporada, quando as aias se rebelam contra a execução de uma delas (Janine, neste momento Ofdaniel).

  1. A busca por igualdade (ou a forma e a substância de conteúdo)

The Handmaid’s Tale é contada a partir da perspectiva de June, com a personagem sendo protagonista e narradora da história. Seus pensamentos são ouvidos pelos telespectadores, evidenciando seus sofrimentos, planos e desejos, fazendo com que o público adote sua perspectiva da história. As opções de enquadramento fotográfico utilizadas, como planos fechados e closes, também revelem os sentimentos da protagonista através das suas expressões.

A memória da vida de June antes do Golpe de Estado é resgatada por meio de flashbacks, nos quais o público pode acompanhar desde o momento do primeiro encontro com Luke (episódio 05) e o nascimento da sua filha, Hannah (episódio 02), até sua captura e envio para o Centro Vermelho (episódio 01). As mudanças sociais que culminaram com a ascensão da República de Gilead também podem ser conhecidas pelos flashbacks de June e de outros personagens, como o de Serena Joy (episódio 06), que revela que o movimento que originou os Filhos de Jacó se apoderou das ideias dela de “reprodução como um imperativo moral” e de “fertilidade como um recurso nacional” para paradigmatizar as diretrizes norteadoras do establishment a ser introduzido. Ou seja, demonstra que Serena foi uma das primeiras a ter seu pensamento apropriado pelos comandantes do Filhos de Jacó.

De maneira geral, seja na literatura de romance ou de ficção ou nas séries televisivas, o público é convidado a tomar o lugar dos personagens e a vivenciar a história por seus pontos de vista por meio de um processo de abdução.

De acordo com Gomes (2017), a abdução consiste na inferência a fim de se obter a melhor interpretação sobre a narrativa, na tentativa de lograr uma explicação sistêmica para um acontecimento ou conjunto de acontecimentos. Assim, por tratar-se de um conteúdo seriado, a cada desfecho de episódio, o receptor/espectador da mensagem é imbuído a tentar destrinchar, abduzir o capítulo seguinte e imergir no enredo psicológico e denso da história.

Ao contrário das narrativas seriadas tradicionais como o sitcom e a soap opera, a serialização de obras literárias, sobretudo de ficções futuristas que guardam um alto teor enigmático, induzem o público a ver cada episódio minuciosamente ou até o rever, no intuito de compreender os desdobramentos de longo prazo, descortinando os mistérios por trás dos elementos narrativos. Ademais, o modelo narrativo que constitui THT difere de uma estrutura tradicional em que os actantes possuem funções no processo muito bem delimitadas, seguindo a praxe do herói que trava um embate com o vilão, obtendo auxílio do ajudante em busca de um objeto-valor (GREIMAS, 1976).

Com base nos ensinamentos de Reuter (2007), THT consiste numa narração homodiegética cuja perspectiva perpassa pela personagem protagonista, June, que narra a intriga ocorrida no momento em que acontece, como também se remete ao tempo psicológico que vem e vai sem obedecer a uma ordem cronológica.

Quanto aos actantes, eles assumem uma complexidade moral, psicológica e de emoções, sendo forçoso encaixá-los em uma única funcionalidade. Aqui, alguns antagonistas também são oprimidos pelo sistema e pela supressão de liberdades fundamentais que também os tornam vítimas ainda que em menor amplitude. É o caso, por exemplo, das esposas dos comandantes, com destaque para Serena Joy, que embora seja conivente ao regime totalitário, fundamentalista e patriarcal instalado, tendo ajudando, inclusive, a implantá-lo, também está descontente com a situação, o que somente pode ser abduzido no desenrolar do esquema canônico da narrativa, no encadeamento das ações a que Greimas (1976) define como dinâmica.

Tabela 01 – Quadrado narrativo da ficção seriada distópica

A tentativa do espectador de abduzir os improváveis colaboradores do sistema, quem é confiável ou não.

VÍTIMAS

ANTAGONISTAS

Desvendar o conflito da função exercida pelos personagens. Vítimas ou vilões?

Compondo o enredo, os conflitos presentes em The Handmaid’s Tale são terrenos propícios para a tentativa de abduzir e encontrar respostas plausíveis no que concerne às tensões desencadeadas na série. A título de exemplo, tem-se o conflito narrativo de cunho moral e religioso, expressado por parte de alguns comandantes, como Fred, que demonstra incoerência e contradição ética entre o discurso que apregoa, pautado na moral religiosa e nos bons costumes, e o seu comportamento de fato. Muito embora comporte-se como um homem temente e obediente a Deus, que diante da esposa e da sociedade de Gilead, mantém conjunção carnal com Offred somente para fins de procriação, segundo as normas que regem o Estado, às escondidas frequenta o Palácio de Jezebel, como muitos líderes da nova república, obrigando sua aia a acompanhá-lo e a satisfazer-lhe os prazeres carnais, atentando às leis daquela sociedade e cometendo o tão condenado pecado da luxúria. O espectador é conduzido a abduzir sobre o caráter dos Filhos de Jacó e daquela sociedade, se é mesmo alicerçada no conservadorismo e no fundamentalismo religioso ou no falso moralismo. Ao fim da primeira temporada, o espectador também é convidado a supor diversas possibilidades quanto ao desfecho do conflito: June conseguirá escapar ao sistema opressor? Reencontrará seu marido? Resgatará sua filha? Ou estará deixando a casa do comandante Fred para um lugar pior? São incógnitas que deixam brechas para que o espectador formule suas apostas na tentativa de desvendar o código da narrativa seriada.

Outro conflito presente de maneira constante e, possivelmente por isso, o que permite maior abdução do público na construção do sentido macro que envolve o seriado, se refere ao embate dicotômico entre a busca pela liberdade feminina e a opressão masculina. Retomando o pressuposto greimasiano, no qual a narrativa é uma disputa entre sujeito e antissujeito em busca do mesmo objeto-valor (MENDES, 2013), podemos aferir que na trama de THT o objeto-valor que é desejado por protagonistas e antagonistas é a liberdade. Para o sujeito “mulheres”, a liberdade significa a retomada dos direitos perdidos durante o processo revolucionário e o retorno a um sistema social supostamente igualitário (esses pontos também podem ser vistos aqui como destinador e destinatário, respectivamente, de acordo com o pensamento greimasiano). Para os antissujeitos, os Filhos de Jacó, a liberdade feminina, uma vez cerceada e sob o controle dos seus comandantes, representa a retomada do crescimento populacional, a recolocação das mulheres em seu papel social primário, tal como fora, em seu entendimento, designado por Deus, e, em última instância, a afirmação de uma suposta soberania biológica.

Imagem 01 – Ativista segura cartaz: “O Conto da Aia não é um manual de instruções”.

Fonte: Reprodução do Facebook de Margaret Atwood. Publicado originalmente em 23/01/2017.

Essa perspectiva aparece consonante com o momento político que a sociedade norte-americana tem enfrentado desde 2016, sobretudo com a retomada de crescimento de movimentos de extrema-direita7,8 durante dois mandatos do ex-presidente Barack Obama, tido, por sua condição de origem um representante das minorias sociais, e que culminaram com a eleição de Donald Trump à presidência daquele país. Movimentos sociais em prol dos direitos femininos e das minorias foram às ruas um dia após a posse de Trump cobrar dele maior compromisso com a manutenção dos direitos humanos9.

Em uma ação promovida pela organização não-governamental Marcha das Mulheres na cidade de Toronto, no Canadá, em janeiro de 2017, a própria autora da obra O Conto da Aia, Margaret Atwood, viu e fotografou ativistas que referenciavam sua obra como instrumento de luta pela igualdade de gênero e direitos humanos, como mostram as imagens a seguir.

Imagem 02 – Ativista segura cartaz: “O Conto da Aia é uma ficção distópica, não um manual de instruções”.

Fonte: Reprodução do Facebook de Margaret Atwood. Publicado originalmente em 23/01/2017.

Neste sentido, o debate trazido à esfera pública pela obra aborda a importância da manutenção dos direitos humanos e das minorias a partir da defesa da igualdade de gênero contra grupos opressores e detentores dos poderes dos capitais financeiro e moral. No nosso entendimento, este é o conteúdo que está oculto na forma de expressão adotada em THT, de uma ficção distópica de totalitarismo religioso em uma sociedade que busca a repovoação do planeta.

Com isso, podemos construir nosso quadrado semiótico narrativo greimasiano a partir da seguinte base estrutural:

Imagem 03 – Quadrado semiótico em The Handmaid’s Tale.

Feminismo (S1)                                   Patriarcado (S2)




Direitos Humanos (-S1)                        Machismo (-S2)

Fonte: Elaboração Própria


A partir dessa estrutura optamos por evidenciar como instância de conflito a relação entre o Feminismo e o Machismo, sendo o primeiro o protagonista e o segundo o seu antagonista. Isto porque entendemos que esta oposição age de forma basilar para os demais conflitos existentes na série, bem como ela dirige as ações dos personagens ao longo da trama. Dessa forma, os ângulos do nosso quadrado semiótico narrativo greimasiano seriam formados pelo Feminismo (S1); pelo Não-Feminismo (S2), aqui representado pelo Patriarcado; pelo Machismo (-S2); e pelo Não-Machismo (-S1), aqui visto como os Direitos Humanos, conforme a representação diagramática a seguir.

Tabela 02 – Conflito entre elementos do quadrado semiótico em The Handmaid’s Tale.

Posição

Elementos Narrativos

Relações de conflito

S1 x -S2

Feminismo x Machismo

-S1 x S2

Direitos Humanos x Patriarcado

Relações de oposição

S1 & S2

Feminismo x Patriarcado

-S1 & –S2

Direitos Humanos x Machismo

Relações de complemento

S1 + -S1

Feminismo + Direitos Humanos

S2 + -S2

Patriarcado + Machismo

Fonte: Elaboração própria.

As relações de complementaridade demonstradas por S1 + -S2 e S2 + -S2 refletem a ligação intrínseca que cada um desses elementos tem em relação ao outro com o qual forma par: o machismo como decorrente de uma tradição social baseada no patriarcado opõe-se diretamente ao feminismo como expoente da luta por direitos humanos e por igualdade social. Um exemplo da ligação S2 + -S2 em THT é claramente percebida no episódio 06, em um flashback de Serena Joy. Mesmo tendo sido mentora do ideário da “fertilidade como recurso nacional”, adotado pelos Filhos de Jacó, ela foi impedida de expor suas ideias para o conselho, formado apenas por homens.

A conversa que se segue após a sua saída, entre Fred e o comandante Putman, elucida bem a posição:

[Putman] - Ela ficou chateada?

[Fred] - Não, só frustrada. Ela está envolvida desde o começo.

[Putman] - Bom, isso é culpa nossa. Nós demos mais do que elas podiam lidar. Focam tanto em buscas acadêmicas e ambições profissionais, nós as deixamos esquecer o verdadeiro propósito. Não acontecerá novamente. (Colchetes nossos)

Como exemplo da ligação complementar S1 + -S1, podemos destacar a união das aias no episódio 10 contra a execução de Janine/Ofdaniel, quando elas se opõem ao comando emitido por Tia Lydia.

Por sua vez, nos eixos S1 & S2 e -S1 & -S2 apresentam as relações de oposição direta entre os conceitos. No primeiro (S1 & S2), o feminismo e sua concepção de igualdade entre gêneros têm como representante da sua ausência uma cultura paternalista, na qual às mulheres são destinados os papeis coadjuvantes, mesmo na construção das suas próprias histórias, quando, muitas vezes, não lhe são atribuídos papeis alguns, apagando sua presença na história. É o caso do discurso que envolve a atribuição de propriedade de uma aia à determinada família, como mencionado anteriormente. Como aponta Strauss (1997, p. 35) “um nome pode revelar muita coisa, tanto de quem o deu quanto de quem o porta”. Neste sentido, nomear uma mulher com a preposição “de” (of, em inglês) seguida do nome do homem, revela que ela é propriedade dele, e não da família à qual ela é enviada, revelando uma desigualdade de gênero mesmo dentro das casas dos comandantes.

No segundo (-S1 & -S2) ocorre o mesmo efeito. O machismo se estabelece culturalmente e age de maneira agressiva e opressora sobre as minorias, principalmente nas mulheres, atribuindo a elas um discurso vitimista e de dependência do homem, ao passo que enaltece a conduta do indivíduo do sexo masculino na sociedade. Em oposição a ele, os direitos humanos buscam o rompimento deste ciclo cultural, seja por meio de leis universais de valorização da vida e de ações efetivas de defesa dos oprimidos. No âmbito da sociedade mundial representada em THT, percebesse que inúmeros países estabeleceram sanções comerciais e econômicas contra a República de Gilead devido aos desrespeitos à liberdade e à vida implantados contra a população, em especial contra as mulheres.

As relações de conflito, por sua vez, expõem o âmago da disputa simbólica presente na narrativa de The Handmaid’s Tale. Ao longo de toda a série é possível extrair inúmeros exemplos dos embates entre feminismo e machismo (S1 x -S2) e dos direitos humanos contra a cultura paternalista (-S1 x S2) exercida pelos comandantes do novo governo. A própria existência do Palácio de Jezebel é um deles, pois no local as mulheres são violentadas, mutiladas e obrigadas a consumirem álcool e outras drogas ilícitas a fim de satisfazerem os desejos dos comandantes e de outros homens apoiadores do atual regime que, ao saírem, voltam a propagar a moralidade social e a temeridade a Deus. Outro exemplo desse conflito é o simples fato de as mulheres serem proibidas de ler e escrever. Muito embora o tom distópico da narrativa nos leve a perceber que os ângulos do feminismo e dos direitos humanos são subjugados constantemente perante seus contrapontos, essa abordagem também desperta uma esperança de rompimento do modelo vigente.

  1. A maternidade e a função reprodutiva

A partir das relações de conflito extraídas do quadrado semiótico narrativo que utilizamos, podemos abduzir uma das questões de The Handmaid’s Tale: a maternidade

Volvendo os olhos para a história da humanidade, a construção de espaços sociais tradicionalmente ocupados por homens e mulheres deu-se de acordo com as características atribuídas à natureza do feminino e masculino. Assim, enquanto ao homem traçou-se uma função social identificada com o mundo externo, à gerência do universo, à força, à razão e ao poder, o papel social designado às mulheres limitou-se à esfera privada, ao interior da casa, ao mundo da intuição, da emotividade e da passividade. Segundo os padrões impostos pela sociedade que criam paradigmas e modelos de mulher a serem seguidos, a função essencial do gênero feminino corresponde ao cumprimento do dever de ser mãe, dona de casa e esposa. Historicamente, em sociedades europeias e nas que decorreram de suas colonizações, é possível se verificar uma delimitação de papéis sociais considerados adequados para homens e mulheres conforme a “natureza” determinava. Em sociedades antigas, como a de Atenas, polis historicamente nomeada como berço da democracia, a mulher ocupava uma posição social inferior àqueles considerados cidadãos, pois somente gozavam de direitos os homens livres, da alta camada social e nascidos naquela própria cidade. Os demais segmentos sociais compostos por mulheres, escravos, estrangeiros e crianças eram socialmente marginalizados por não possuírem representatividade.

Enquanto os escravos e os estrangeiros eram designados aos trabalhos braçais, às mulheres destinavam-se os encargos domésticos que as preparavam para as funções sociais que lhes foram atribuídas como a maternidade e os cuidados do lar. As atividades mais nobres da sociedade ateniense, vinculadas ao exercício da reflexão como filosofia, política e artes, eram consideradas tradicionalmente masculinas.

A essa nítida divisão dos espaços e atividades a serem ocupados entre os gêneros, atribuía-se a justificativa da naturalização da desigualdade com base nas diferenças biológicas. Assim, em decorrência da natureza feminina tida como frágil e passiva, a realização de determinadas atividades por mulheres era inconcebível, incluindo o acesso às primeiras letras e ao conhecimento.

Estando limitado o horizonte da mulher, ela era excluída do mundo do pensamento, do conhecimento, tão valorizado pela civilização grega. Exceção feita às hetairas, cortesãs cujo cultivo das artes tinha como objetivo torná-las agradáveis companheiras dos homens em seus momentos de lazer, em suma a mulher grega não tinha acesso à educação intelectual (ALVES; PITANGUY, 2003, p. 12).

No que concerne à maternidade, até o século XVII era comum o modo negligente como pais e mães tratavam os filhos, demonstrando a partir da falta de convívio e de laços afetivos com a criança, uma notória indiferença. Embora se prevaleça a concepção de que o amor dos pais pelos filhos é incondicional e capaz de enfrentar renúncias pessoais, eles não pareciam dispostos a abdicar de si mesmos e da vida social que levavam para dedicar todo o tempo aos cuidados necessários para o bem-estar de um bebê. Assim, era preferível eximir-se das responsabilidades de criar e acompanhar os filhos a abrir mão das ambições pessoais. Os primeiros sinais de rejeição de pais e mães em relação às crianças se manifestavam na recusa da mãe em dar o seio, as mulheres, sobretudo, da alta sociedade consideravam indigno e “animalesco” para uma dama o ato de amamentar o próprio filho.

Em nome do bom tom, declarou-se a amamentação ridícula e repugnante. [...] Mães, sogras e parteiras desaconselham a jovem mãe a amamentar, pois a tarefa não é nobre o bastante para uma dama superior. Não ficava bem tirar o seio a todo instante para alimentar o bebe. Além de dar uma imagem animalizada da mulher “vaca leiteira”, é um gesto despudorado (BADINTER, 1985, p. 97. Grifo da autora).

O receio de deformar os seios passou também a ser usado como argumento pelas mulheres da nobreza contra a amamentação. Se o aleitamento materno comprometia a vaidade feminina e representava à mulher um empecilho para manutenção da boa aparência física, ele também atrapalhava a relação conjugal. Segundo Badinter (1985) na época existia uma crença muito difundida pelos médicos, de que durante a fase de aleitamento, os casais deveriam suspender as relações sexuais sob a alegação de que o esperma poderia azedar o leite e causar danos à saúde da criança. Assim, os maridos teriam de enfrentar um longo período de abstinência sexual durante o aleitamento materno, em consequência eles acabavam também assumindo posição contrária à amamentação para não serem forçados a abdicar de seu prazer sexual.

Somente em meados do final do século XVIII, com a disseminação das ideias de igualdade e felicidade, herança do iluminismo, os filhos abandonam a imagem de estorvo na vida dos pais que, para não abdicarem das ambições pessoais, preferiam entregar a responsabilidade de criar, cuidar e educar os filhos a terceiros, sem nenhum vínculo sanguíneo. No fim do século XVIII, além de se atribuir maior importância à relação afetiva entre pais e filhos, a imagem autoritária do pai e seu poder supremo são abalados, uma vez que a mãe conquista mais autonomia no núcleo familiar, sendo depois da figura do pai a segunda maior autoridade perante os filhos e nas decisões de âmbito doméstico. Para Rousseau (apud BADINTER, 1985, p. 241-242) a mulher não deve fugir da sua condição natural de exercer a maternidade, mesmo que ela exija sacrifícios e abdicações pessoais e de aceitar a submissão ao homem. A verdadeira mulher traçada por Rousseau deve ser educada para dedicar a vida em função dos outros (pai, marido e filhos) e se inclinar para o universo interior que corresponde ao serviço da casa e aos cuidados do marido. Para o ideólogo da revolução francesa, os deveres da mulher são cuidar do lar, do marido e da prole. As mães agora desfrutavam de igual poder em relação aos pais na criação dos filhos, devendo enxergar a maternidade como vocação e tornarem-se dedicadas aos cuidados maternos.

A natureza feminina é, propriamente falando, “alienada” pelo e para o homem. Sua essência, sua finalidade, sua função são relativas ao homem. A mulher é feita não para si mesma, mas “para agradar ao homem... para ceder e para suportar até mesmo a sua injustiça”. Logo, essa mulher será uma mãe, pronta a viver pelo e para o filho (BADINTER, 1985, p. 242. Grifo da autora).

A valorização da criança a partir dos ideais de igualdade e fraternidade contribuiu para que a figura da mãe dedicada ao filho passasse a ser exaltada e imitada por mulheres de diferentes classes sociais. A maternidade começa a ser encarada como um dever inerente à natureza feminina e a “verdadeira” mãe deve sacrificar-se e abdicar de si mesma em nome do amor e devoção ao filho. Os seguidores da nova ideologia exaltam as doçuras do ato de ser mãe e pregam que as mulheres agora devem ter satisfação em cuidar e amamentar seus filhos, relegando os serviços da ama-de-leite. A mulher assume a figura doce e maternal identificada com Maria em substituição à imagem diabólica e pecadora de antes, identificada com a figura de Eva. Agora se cria em torno dela, a representação de uma figura delicada, servil e companheira.

Neste sentido, o arco narrativo apresentado nesta primeira temporada de The Handmaid’s Tale bebe da fonte da mentalidade patriarcal e da hierarquização do poder do homem sobre a mulher tão arraigados na sociedade, o que resulta numa perspectiva diegética que dialoga em profundidade com a realidade em que os espectadores vivem. Na narrativa seriada, a mulher perde o status quo de pessoa humana, sujeito de direitos e protagonistas dos atos da vida civil, sendo reduzida a uma função biológica, o de procriar. A maternidade, desta feita, passa a ser o único papel social da mulher na República de Gilead, concebida como uma dádiva divina. A maternidade não como uma manifestação do livre-arbítrio e uma escolha voluntária da mulher, mas tão somente como uma imposição estatal, uma violência institucional que dita às mulheres que ser mãe lhes é a única ação dignificadora possível para o gênero feminino, para o “sexo inferior”, o outro do homem. Em face da epidemia de infertilidade que se alastrara pelo mundo, o endeusamento da maternidade é auferido em muitas passagens da narrativa diegética, tal como na fala de Janine, uma das aias, que após ter concebido uma filha saudável para o seu comandante, revela à Offred o fato de que teve um bebê dos bons, o que lhe dava a condição de poder fazer o que quiser, inclusive, tomar sorvete. Os únicos momentos em que as aias logravam uma situação mais autônoma e dignificante, de fato, eram quando conseguiam cumprir o dever que lhes foi imposto, o destino predeterminado para suas vidas: o de serem reprodutoras. No terceiro episódio, é perceptível uma mudança de tratamento brusca da esposa do comandante Waterford, Serena, para com Offred. Se ao longo do enredo, aquela só hostilizava a aia, a partir da mínima suspeita de que sua serva pudesse estar grávida, Serena torna-se doce e gentil, chegando a confessar à Offred que ela lhe representava um lindo milagre, o milagre divino de conceber um filho, de ser a escolhida por Deus.

O comportamento cortês muda repentinamente quando Offred conta-lhe que não está esperando um filho, passando a ser trancafiada em um quarto como punição. Na República de Gilead em alusão às sociedades mais conservadoras e falocêntricas, a infertilidade nunca é atribuída ao homem que é eximido de toda e qualquer culpa. O ato falho é sempre de responsabilidade da mulher. Posto isso, a narrativa ficcional lança luz à problematização de como as instâncias da sociedade representam a figura feminina, construindo sua identidade social em processos definidos histórica e culturalmente, dizendo quem e o que as mulheres devem ser, resultado de sua “natureza”.

  1. Conclusão (ou a importância da sororidade entre as aias)

Depreende-se da análise da narrativa seriada, The Haindmaid’s Tale, um enredo centrado na opressão perpetrada por um sistema patriarcal e teocrático contra os direitos da pessoa humana, subjugando, sobretudo, os segmentos mais vulneráveis da população, o que inclui as mulheres. Em tal sociedade distópica, a mulher perde o status quo de pessoa humana, sujeito de direitos e protagonistas dos atos da vida civil, sendo reduzida à função biológica de procriar. Ao longo da narrativa ficcional, os espectadores podem lançar-se à tentativa de abduzir a lógica interna da trama que evidencia a relação de conflito entre os protagonistas simbólicos: feminismo/direitos humanos e do outro lado, os antagonistas: machismo/sistema patriarcal.

Não é aleatoriamente que a cena do último episódio da primeira temporada de The Handmaid’s Tale correspondente ao maior ato de resistência das aias que desobedecem às ordens do sistema opressor e patriarcal, é embalada pela música de fundo da cantora, que fora ativista dos direitos civis dos negros nos EUA, Nina Simone, intitulada Feeling Good. Na ocasião, as aias são recrutadas para o habitual ritual de “salvamento”. Contudo, elas se surpreendem ao deparar-se com a figura de Janine/ Ofdaniel, que deverá ser condenada à pena de apedrejamento sob a acusação de atentar contra a integridade física de uma criança e colocá-la em perigo. Após terem se munido de pedras, atendendo aos imperativos de Tia Lydia, mesmo estando suscetíveis a sanções por desacato à autoridade da Tia e do sistema, as aias rebelam-se, recusando-se a matar Janine. Ato considerado como a mais importante manifestação de empoderamento feminino coletivo e sororidade entre mulheres, verificada na série.

De modo simbólico, as aias em solidariedade à Janine, despertam a consciência de que as ações tomadas individualmente podem resultar em feitos deletérios a uma dada coletividade. Quando as mulheres passam a se perceber enquanto uma unidade, rompe-se um dos preceitos do patriarcado que cristalizam e mantêm as bases da relação de poder hierárquica de homens sobre as mulheres, qual seja: o pensamento arraigado e naturalizado de que as mulheres são rivais e inimigas umas das outras. Uma invenção da lógica patriarcal para aprisionar as mulheres na condição de oprimidas. O que pode ser auferido na narrativa seriada, logo no seu primeiro episódio, quando June/Offred profere que “não há amigas aqui. A verdade é que vigiamos umas às outras”, referindo-se à desconfiança nutrida por Ofglen, a priori. Esta, por sua vez, confirma “eles fazem isso muito bem. Fazem-nos desconfiar umas das outras”.

Ainda no último episódio, June é a primeira a deixar cair a pedra que deveria ser lançada contra Janine, e quando julgava está sozinha em seu ato de resistência, June presencia um exército de mulheres taciturnas que compartilham de sua iniciativa e também se eximem de apedrejar Janine. Com um arco emocional forte, as aias retornam do salvamento, marchando juntas, em comunhão. O que sugere a reflexão de que a desconstrução de um regime opressor como o patriarcado só pode ser trilhada por meio do florescer do sentimento de empatia entre mulheres e da auto-organização como enfrentamento ao sistema.

Com fulcro no pensamento de Beauvoir (2000), não há salvação individual, assim a emancipação feminina não se dá isoladamente, em face da impossibilidade de se tornar livre se ao redor as outras não o são. Desta feita, a narrativa seriada lança luz sobre o empoderamento das mulheres que só pode existir coletivamente, já que ninguém se liberta sozinho/a e autonomia perpassa pelo autoconhecimento de que a mulher pode escolher seu próprio destino não sendo condicionado ao reducionismo biológico.

1 Jornalista graduada pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN), graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), especialista em Comunicação, Semiótica e Linguagens Visuais e militante feminista do Movimento Mulheres do Seridó. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4239453D7 e e-mail: anakarlatvmossoró@hotmail.com

2 Jornalista graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mestre e doutorando em Estudos da Mídia pelo PPgEM UFRN. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4425438H6 e e-mail: cleberfemina@hotmail.com

3 Jornalista graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN). CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8549065Y8 e e-mail: mulatinho.alexandre@gmail.com

4 Abraão e Sara, avós de Jacó, possuem história análoga. Sara não podia ter filhos e entregou sua escrava Agar para que ela engravidasse de Abraão. Agar, então, deu à luz a Ismael. Sara engravidou de Abraão dez anos depois e deu à luz a Isaque, pai de Jacó e Esaú (Gen: 16-24).

5 No episódio 01, dentro do Centro Vermelho, durante o treinamento das aias, Tia Lydia apresenta um gráfico com a redução da natalidade, no qual é possível ver as taxas do ano de 2015; no episódio 05, em um dos flashbacks da história de June antes da revolução, é narrado o primeiro encontro entre ela e Luke, seu esposo, a partir de uma escolha de foto para o perfil dela no Tinder, uma plataforma de encontros virtuais via aplicativo lançada em 2012.

6 Ofsamuel não teve seu nome de batismo revelado nesta temporada, assim como Alma, que não foi dito a qual comandante ela estaria submissa.

7 “'Sou nazista, sim': o protesto da extrema-direita dos EUA contra negros, imigrantes, gays e judeus”. Disponível em <http://www.bbc.com/portuguese/internacional-40910927>.

8 “Três mortos na jornada de violência provocada por grupos racistas norte-americanos”. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/12/internacional/1502553163_703843.html>.

9 “Protesto de mulheres contra Trump reúne dezenas de milhares nos EUA”. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/21/internacional/1485009994_849896.html>


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  1. Referências

ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1995.

GÊNESIS. In: BÍBLIA Sagrada. Nova tradução na linguagem de hoje. São Paulo: Paulinas Editora, 2005.

GOMES, Marcelo Bolshaw. Quem é o culpado? O que os seriados policiais da TV nos ensinam. Culturas Midiáticas. Ano IX, n. 17 - jul-dez/2016

GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural. São Paulo: Cultrix, 1976.

HANDMAID’S Tale, The. Produzida por Sheila Hockin, Mike Backer, Margaret Atwood entre outros. Com Elisabeth Moss, Joseph Fienes, Yvonne Strahovski e outros. Canadá. Hulu & MGM Television. Temporada 01; 2017.

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009.

MENDES, Conrado Moreira. A noção de narrativa em Greimas. E-COM. Belo Horizonte, v. 06, p. 01-12, 2013.

REUTER, Y. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

STRAUSS, Anselm. Espelhos e máscaras. A busca pela identidade. São Paulo: Edusp, 1997.


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