segunda-feira, 4 de abril de 2022

pedagogia da liberdade

Introdução

Na revolução francesa, os girondinos sentaram à direita; e os jacobinos, à esquerda. Para Noberto Bobbio (2001), tal fato caracterizou toda história política que se seguiu. A direita representa os que defendem a liberdade individual acima da igualdade social entre indivíduos; a esquerda corresponde aos que advogam a primazia da igualdade de todos sobre a liberdade de cada um. Os dois lados políticos são assim polos da contradição moderna entre liberdade e igualdade.


Assim, por exemplo, pode-se dizer que Nietzsche é um filósofo existencialista 'de direita' quando afirma que os homens são diferentes perante Deus e Estado; que a igualdade jurídica entre indivíduos é uma mentira (1998). Por outro lado, também se pode dizer que Sartre é um existencialista 'de esquerda' porque acredita que cada homem é um 'universal singular', uma miniatura diferenciada do universo, ao lado de outros universos singulares.

Certamente, uma pessoa de esquerda em nossos dias protestaria dizendo que a esquerda também defende a liberdade. Na verdade, defende a liberdade política individual, sendo que essa já é resultante da igualdade e que não é exatamente disso que se trata quando se fala de liberdade. Hoje, a escola nos incutiu a ideia de igualdade e vemos a liberdade dentro de seus limites. E para Nietzsche, a liberdade humana deriva da 'morte de Deus'.

O argumento contra a igualdade de Nietzsche na Gaia da Ciência surge de sua crítica ao judaísmo e ao cristianismo (a igualdade perante a Deus) e depois se estende à modernidade democrática (a igualdade perante a lei). A igualdade, para ele, é uma doutrina de escravos. Seguir regras é ser “um escravo sem senhor” e a horizontalidade é tratada como um artificio de dominação dos mais fracos sobre os mais fortes – que se sacrificam sua liberdade em nome da igualdade. Liberdade aqui entendida como vontade de potência. Mas, há um outro sentido para liberdade.

No livro Assim falou Zaratrusta (NIETZSCHE, 2009, p.51) o filósofo desenvolve a metáfora dos três tipos de liberdade: a do Camelo, a do Leão e a da Criança.

A liberdade do Camelo é a autonomia de servir, de ser útil, o júbilo de fazer parte do conjunto ou de algo maior que si.

A liberdade do Leão é a capacidade da realização da vontade, do poder fazer o que se quer se fazer sem ajuda ou permissão.

E a liberdade da “criança brincando sério com seu tambor” é a independência da criatividade de valores. O camelo aceita o mundo como ele é. O Leão deseja transformá-lo. A Criança aceita o mundo mas não se conforma com ele …



[…] ela não está ligada nem à conservação, como o camelo, nem à destruição, como o leão. O artista criança, o lúdico-criador, é pura afirmação, pura atividade [...]. Ele independe do passado e do futuro, habita plenamente o presente, onde brinca gerando interpretações singulares (BARRENECHEA, M. A. 2008, p. 93).



Para Joseph Campbell, no livro/entrevista O Poder do Mito (1990), capítulo Sacrifício e Felicidade, as três metamorfoses correspondem as fases da vida (e também à Jornada do Herói). O Camelo é a infância e o chamado ao heroísmo. O Leão é a adolescência, a rebeldia, o 'dizer não' à injustiça moral e social. E por fim, a maturidade é a criança, criadora de sua própria dinâmica.

Osho (2006) faz uma interpretação mais profunda, em que o Camelo não é tão submisso, nem o Leão é tão revoltado, e que adota os níveis hermenêuticos de objetividade, subjetividade e intersubjetividade para definir melhor os tipos de liberdade.

O Camelo representa a ‘liberdade para’ fazermos algo. Em que lutamos contra as regras e contra a autoridade. É a liberdade política e objetiva, isto é: a ‘liberdade do não’ da autonomia de decidir o que ser e fazer e não o que os outros querem. Mas, de nada adianta a ‘liberdade para’ (cantar, por exemplo) senão temos a ‘liberdade de’ (a alegria de cantar). O leão, por sua vez, é a ‘liberdade de’ fazer o que quiser. A luta pela liberdade é contra o próprio condicionamento, é o aperfeiçoamento interior para se conseguir usufruir da liberdade exterior. É a liberdade psicológica e subjetiva, a ‘liberdade do sim’ da aceitação da vida. E a criança nietzschiana representa, para o guru indiano, a liberdade intransitiva. Aqui a liberdade em libertar outros através do exercício criativo da própria liberdade (quando cantando, mudamos sentimentos e situações). É a liberdade intersubjetiva da criatividade de valores.

Reparem que, enquanto Campbell dá uma ênfase heroica e biográfica às três metamorfoses, Osho ressalta a tríade como diferentes perspectivas possíveis da liberdade de cada a cada momento. Em alguns aspectos, as duas interpretações são complementares; em outros, são contraditórias, o Leão como um 'sim para vida' e um 'não para as regras'.



Liberdades sociológicas

Observando essas referências, imagino uma pedagogia para liberdade, uma forma de educar que leve em conta os desafios das três metamorfoses. Para tanto, é preciso pensar cada elemento dentro de seu contexto grupal e depois elaborar desafios, rituais de passagem representando as metamorfoses. Mas, para não se referenciar apenas em interpretações de elementos simbólicos, problematiza-se aqui os conceitos de 'solidariedade mecânica e orgânica' de Durkhein (1978); a noção de 'inteligência coletiva' de Pierre Levy (2000); e a teoria integral dos três níveis da Psicologia do Desenvolvimento definidos por Ken Wilber (2007): pré-convencional (ou egocêntrico), o convencional (ou altercêntrico) e o pós-convencional (ou holoscêntrico).

Imagine-se, por exemplo, em um jogo de futebol em que todos os jogadores de cada time atacam e defendem em bando sem nenhuma preocupação tática com as posições. Temos aqui uma situação de anomia ou caos. Mas, alguns padrões de cooperação parcial surgem, aos poucos. Para Durkheim, nas sociedades primitivas a consciência coletiva predominava sobre a individual e a solidariedade entre seus integrantes é mecânica.

E nesse contexto pré-convencional - em que os indivíduos disputam e colaboram sem regras - os mais fortes, os mais rápidos, os mais espertos prevalecem em detrimentos dos mais fracos, lentos e distraídos. O heroísmo do Camelo é baseado na força, na sua capacidade de ser altruísta em um universo egocêntrico.

No entanto, se o esquema tático do time tolher as habilidades pessoais, com cada jogador preso a uma posição e com jogadas sempre previsíveis baseadas no desempenho físico, estaríamos em uma situação de solidariedade orgânica - aquela em que as duas formas de consciência – a individual e a coletiva – se mantiverem equilibradas, ou seja, que cada jogador dessa partida imaginária tiver uma visão de conjunto e alguma liberdade tática de movimento. O universo convencional é baseado em regras iguais para todos, com exceções para garantir a equidade: “primeiro os mais velhos, as crianças, as mulheres, etc”. E o heroísmo do Leão é a de quebrar as regras, em ser egoista e relativista em um universo altercêntrico e uniforme.

TABELA 1: EQUIVALÊNCIA DOS CONCEITOS DE DURKHEIN, NIETZSCHE E WILBER

SOCIABILIDADE

ORGANIZAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

NIETZSCHE

KEN WILBER

Anomia

Consciência Coletiva < Consciência Individual

CAOS SOCIAL

Solidariedade Mecânica

Consciência Coletiva > Consciência Individual

CAMELO

Pré-convencional ou Egocêntrico

Solidariedade Orgânica

Consciência Coletiva = Consciência Individual

LEÃO

Convencional ou Altercêntrico

Inteligência Coletiva

Consciência Coletiva + Consciência Individual

CRIANÇA

Pós-convencional ou Holoscêntrico

Elaborado pelo autor

A noção de Levy (2000) de Inteligência Coletiva representa um nível de organização mais aperfeiçoado do que a solidariedade orgânica durkheimiana porque ao invés de um equilíbrio entre formas concorrentes de consciência racional entre o todo e as partes, ela representa sua interação em uma única consciência que, além de ser coletiva e individual simultaneamente, é também espontânea e intuitiva.

Em relação ao nosso jogo de futebol, é quando o futebol deixa de ser técnico (individual) e tático (coletivo), para ser artístico; quando sem nenhum planejamento anterior, armam-se tabelas de passes imprevisíveis e as jogadas acontecem como “se fossem por mágica”. Essa sinergia descentralizada e sincrônica é a inteligência coletiva.



Para executar uma sinfonia musical com precisão e sensibilidade, uma orquestra precisa que seus integrantes desenvolvam certas habilidades psicológicas e competências subjetivas (além da excelência das qualidades técnicas e artísticas), tais como: afinidade emocional, capacidade de sincronia intuitiva, criatividade coletiva, improviso em conjunto, tolerância com erros secundários e gentileza nas correções necessárias. Essas mesmas habilidades também são necessárias para a produção colaborativa em rede de, por exemplo, narrativas audiovisuais, que envolvem vários tipos de artistas e técnicos. Atualmente, cada vez mais ‘grupos’ estão se tornando ‘equipes’ nas mais diversas atividades profissionais, principalmente na área da educação. A diferença entre o ‘grupo’ e a ‘equipe’ é que a última ultrapassa a soma das habilidades de seus integrantes através da inteligência coletiva, da capacidade de interagir criativamente em conjunto. Mas não é só isso! Imagine-se várias equipes espalhadas no espaço que passam a se auto coordenar umas em relação às outras de forma descentralizada, sincrônica e horizontal – sem uma hierarquia vertical que as centralize. Cada equipe local seria, então, um integrante de uma equipe nacional ou internacional. O resultado desta interação participativa entre cada um e o conjunto é a ‘Inteligência Coletiva’ (GOMES, 2009).



A perspectiva de Ken Wilber (2007) é ainda mais evolucionista que a de Levi. E ele aplica os níveis de desenvolvimento ao individual, social e até histórico. Para Wilber, a humanidade está em estágio de desenvolvimento convencional (a democracia representativa) e caminha, através do desenvolvimento dos meios de comunicação, para um novo regime de cognição coletiva.



Formação de pessoas livres

A criança é também o super-homem. O ser humano só conquista sua humanidade, quando abandona as animalidades do Camelo e do Leão. E, nesse contexto pós-convencional, surge o protagonismo lúdico da criança. Para chegar a ele, é preciso aprender os estágios anteriores.

O herói pré-convencional é um forte defensor dos mais fracos. Forte em um sentido genérico, pode ser o mais esperto ou o mais rápido. O importante é que ele assuma a responsabilidade pelo que tem ser feito. Muitos interpretam que o camelo representa a obediência ao poder, mas, na verdade, ele representa o sacrifício pelo coletivo. É a liberdade transitiva indireta (liberdade para fazer algo), a liberdade do faço porque quero, a vontade de poder. Ensinar a ser camelo é ensinar autonomia através de desafios. Os esportes e a educação física do corpo ensinam a liberdade do camelo.

O herói convencional coloca a individualidade acima das regras. No entanto, ele quebra as regras por dentro, não simplesmente as desobedecendo; a liberdade leonina consiste em mostrar que todas as regras, normas e leis são injustas, que não são aplicáveis a todos, que são relativas. Muitos também interpretam essa liberdade como rebeldia, mas, na verdade, ela corresponde à compreensão de que as diferenças cognitivas não são necessariamente desigualdades sociais. É a liberdade transitiva direta (liberdade de fazer algo), a liberdade do faço porque posso sonhar do meu jeito. Ensinar a ser leão significa capacitar à imaginação criativa, à liberdade interior. O aprendizado das ciências e da história ensinam a liberdade do leão.

TABELA 2: Programa de educação para a liberdade


BÁSICO

0 aos sete anos

MÉDIO

dos 7 aos 14

SUPERIOR

dos 14 aos 21

CAMELO

Esporte e jogos

Educação sexual

Serviço voluntário

LEÃO

Alfabetização

Formação científica

Vocação profissional

CRIANÇA

Inteligência emocional

Estudos narrativos

Arte e Criatividade

Fonte: elaborado pelo autor

O aprendizado das artes lapida emocionalmente o ser humano. Através da arte é possível chegar (ou retornar) à liberdade da criança brincante.

Rousseau diz que a criança e o selvagem nascem puros e que a sociedade os corrompe. Walter Benjamin (1985) afirma que a socialização apenas espelha a dicotomia cultural e cognitiva entre o mundo adulto (e a lógica das "coisas necessárias") e o universo infantil (e do "aparentemente supérfluo").

Winnicott (1975) é o grande estudioso do Brincar e deste universo como um espaço alternativo à realidade imposta pela cultura. A alfabetização e o aprendizado das quatro operações matemáticas básicas exige concentração e disciplina. Com elas, surge o mundo sério dos adultos, em que os atos têm consequências e o lúdico é visto como uma irresponsabilidade.

A transição da educação básica ao ensino médio deve ser concentrado em um desafio, em um rito de passagem, um teste de capacidade e força. No ensino básico, a ênfase educacional está na transformação do brincar individual no jogar coletivo, no desenvolvimento do corpo. A mente e as emoções precisam começar a ser trabalhadas. No ensino médio, a ênfase está no desenvolvimento intelectual de uma cultura científica, sendo importante de modo secundário o aprendizado sexual do corpo e o estudo dos sentimentos e das narrativas. A transição do ensino médio para o superior também pode ser dramatizado em uma prova de equidade, de aceitação de Si e do Outro. Nesse estágio, o protagonista em formação aprende a servir à comunidade, escolhe um ofício e, sobretudo, trabalha com arte para se tornar uma pessoa criativa.

No passado, o serviço militar e o vestibular cumpriram esse papel de rito de passagem da infância para a condição de membro da comunidade. A estrutura curricular da educação brasileira, em que o ensino básico é municipal; o secundário, estadual; e o superior, federal; também segue a mesma lógica mas de forma incompleta. O fundamental, no entanto, a interacional entre corpo, mente e espírito em cada estágio do aprendizado, não foi até agora bem desenvolvida.



Aprendizado por interação

O que é uma interação? Max Weber foi o primeiro a definir ‘Interação Social’ como sendo uma Ação Social mútua e recíproca entre dois (ou mais) atores ou sujeitos. A interação é dita social não apenas por produzir significado, mas também por ser uma prática social e se inscrever num contexto que influencia outras ações.

Muitos pensadores de ciências sociais utilizaram o conceito de Interação Social de diferentes formas: Parsons usou a interação social como cimento do funcionalismo sistêmico, Habermas a interpretou como ação comunicativa em condicionamento estrutural econômico e político, Goffman a utilizou como estratégia cognitiva; mas para todos ela representa uma troca imediata, de curto prazo. Em oposição a noção de Interação Social, o termo ‘Relação Social’ aponta para trocas sociais recorrentes de longo prazo. As ‘relações sociais’ são políticas, religiosas, culturais. Em sociologia, as ‘relações’ são com atores coletivos e em contextos que partem da sociedade como um todo para entender o detalhe; enquanto, a antropologia, a psicologia social e outros olhares fazem o sentido oposto, vendo a sociedade como um conjunto de interações recorrentes e de relações consolidadas.

George Herbert Mead (1934) é o principal membro do interacionismo simbólico crítica às ideias de Skinner e ao comportamentalismo pedagógico. Ele considera a escola como um espaço protegido para o desenvolvimento do Self, a partir das interações entre o Eu e o Outro. Quando estabelecemos uma relação interpessoal com alguém, temos roteiros prontos que devem ser seguidos durante o processo.

Dependendo da reação do outro, alteramos o roteiro em função da interação (é o “role-taking”, um mecanismo de interação não proposital). Além do outro imediato da interação, considera-se também o Outro generalizado, correspondente ao grupo social como um todo, envolvendo os valores e comportamentos naturalizados na sociedade. Mead vê três instâncias de identidade: o I (eu), o me (mim) e o self (o si mesmo). O ‘Eu’ é o agente (sujeito do enunciado); o ‘Mim’ é o produto dos condicionamentos sociais (o sujeito da enunciação); e o Self é o resultado da relação entre o agente e o sujeito passivo. O aprendizado acontece (dentro e fora do entorno escolar) quando o indivíduo toma a si mesmo como objeto de reflexão das três instâncias simultaneamente: o Eu, o Self e o Outro generalizado, uma projeção de mim da qual permaneço parcialmente inconsciente (a sombra).

Vygotsky e seus seguidores (1988) também levam em conta o condicionamento do meio externo combinado ao aspecto cognitivo, através da mediação da escola e do professor e das interações dos alunos entre si. Sendo assim, tanto para ótica do interacionismo simbólico como para pedagogia socioconstrutivista, o objetivo principal da educação é aprender a se colocar no lugar dos outros - tanto no desenvolvimento pessoal intersubjetivo como na perspectiva intercultural.

Essas abordagens, no entanto, são ainda muito mais propensas ao aspecto cognitivo do aprendizado do que sua contextualização na dura realidade comportamental. Daí a necessidade de acréscimos com uma perspectiva estrutural à ótica fenomenológica ressaltando os ajustes (políticos e psicológicos) e os riscos emocionais da relação entre o Eu e o Outro.



Aprender & ensinar

O que significa ensinar? Transmitir informações, treinar comportamento, desenvolver competências, orientar o aprendizado? Cada uma dessa definições pressupõe uma teoria pedagógica. ‘Treinar comportamentos’ corresponde ao ponto de vista do behaviorismo (um adestramento corporal baseado em prêmios e castigos), mas também ao pensamento crítico de Foucault e Bourdieu – que denunciam, cada um de seu modo, o ensino tradicional como disciplina e adestramento do corpo e da mente.

Foucault (1987) apresenta a escola como uma instituição de confinamento da sociedade disciplinar, e, assim como a fábrica e o hospital, funciona sob o design modelo da instituição penitenciária, o panóptico, um regime de visibilidade em que o carcereiro vê todos os presos isolados. Essa centralidade do poder em relação aos dominados pode ser vista na imagem do professor falante diante de uma sala com filas de cadeiras de estudantes passivos. E o objetivo das instituições de confinamento é adestramento dos corpos em relação aos desejos; é impor rotinas de vida uniformizadas, produzindo o cotidiano como cultura. Nessa ótica, a escola é uma instituição de confinamento e disciplina.

Mesmo sem conhecerem a internet, Foucault (DELEUZE, 1998) decreta que estamos saindo da sociedade de disciplina para uma sociedade de controle “em redes a céu aberto”, baseada em cifras e senhas. Nesse modelo, as instituições de confinamento tendem a desaparecer do ponto de vista territorial e/ou a se transformar em novas organizações descentralizadas de interação à distância entre unidades autônomas.

Outra visão crítica importante é a de Bourdieu (2014). Para ele, a escolar tem uma dupla função: a) transmitir capital cultural entre as gerações e b) reproduzir e ampliar as desigualdades sociais entre as classes. A escola manifesta uma ‘indiferença às diferenças’ no processo de transmissão do capital cultural. Todos são tratados como ‘iguais’ embora sejam ‘diferentes’. Esse enquadramento simbólico de todos à igualdade é um fator violento de desqualificação da maioria. A uniformização das diferenças é uma violência simbólica. Ela é uma imposição subliminar dos dominantes diante da submissão semi voluntária dos dominados.

No caso da escola (pública e gratuita) francesa estudada, Bourdieu argumenta que transmissão primária de capital cultural é feita dentro da família e que a educação escolar é uma transmissão secundária que amplia o capital daqueles que os já detém e que desqualifica a maioria que dele carece.

Reforça-se culturalmente uma desigualdade social já existente. A transmissão de capital cultural através do entorno familiar desempenha um papel básico em relação à transmissão secundária através do entorno escolar, reforçando ainda mais a desigualdade social. E agora, a internet e a telefonia móvel também promovem uma renovação ampliada desta injustiça social, com a transmissão terciária de capital cultural através de mídias comunicacionais acessíveis a poucos.

Enquanto o ensino tradicional se preocupa em treinar comportamentos, 'transmitir informações’ representa o ensino moderno baseado na memorização. ‘Tornar-se uma pessoa melhor’ ou ‘desenvolver diversas competências, inclusive artísticas’ são objetivos das abordagens construtivistas. Esses três momentos do ensinar (o tradicional, o moderno e o contemporâneo) podem ser vistos como reflexos de três modos históricos de interação e aprendizado: antes, durante e pós-escrita (LEVI, 1984).

TABELA 3 – Ensino x Aprendizado

ENSINO

Tradicional

Moderno

Contemporâneo

Modo de interação

um-um

Um-muitos

Muitos-muitos,

Estrutura

Diálogo

Panóptico

rizoma, redes

Linguagem

Oral

Escrita

Audiovisual - Musical

Dimensão

Identidade local

Sujeito universal

Globalização, presencial a distância

Conteúdo

Expressão

Memorização

Interpretação

Prática social

Indisciplina selvagem

Disciplina obrigatória, sem foco, mecânica

Auto disciplina e foco de atenção de longo prazo

Tempo

Aqui e agora

história

Presente em movimento

Ação cognitiva

Trabalho artesanal

Treinamento e especialização

Criatividade e Sintaxe Holística

APRENDIZADO

Corporal

Abstrato

Afetivo

FONTE: Elaborado pelo próprio autor

E o que significa aprender? É a capacidade de se adaptar criativamente às interações de um sistema. Se adaptar criativamente significa ser resiliente, aceitando sem conformação aos estímulos positivos e negativos a que se é submetido. Aprender, assim, seria como lidamos com três tipos de interações: as interações corporais, imediatas e concretas que ‘entram’ no observador distraído (pelo lado direito do cérebro); as interações mentais e abstratas processadas com esforço e concentração (pelo hemisfério esquerdo); e as interações musicais, audiovisuais ou híbridas, capazes de combinar os dois aspectos anteriores. Além da dupla neuro-cognição lógico-simbólica, esse terceiro regime de aprendizado nos remete à música e ao audiovisual interativo por dois motivos: a semelhança estrutural de seus elementos e a necessidade de inteligência coletiva em sua produção em conjunto.

A música é formada por frequências sonoras, silêncios e os tempos (rítmico e de duração); e o audiovisual também é feito de frequências visuais e sonoras, vazios e das marcas do tempo no tempo (a narrativa). A harmonia musical corresponde à sincronia visual; a melodia, à sequência narrativa; e o ritmo, ao tempo de duração duplicado como tempo narrativo.

Mas, a grande semelhança reside no papel desempenhado pelo silêncio na música e pelo vazio entre dois fotogramas. Ambos são convites à participação do receptor, que se sente motivado a preencher o vazio ou o silêncio com sua imaginação, o vazio funciona assim como uma ‘forma ausente’, como estrutura inconsciente que dá sentido à narrativa manifesta.

Esse terceiro momento 'musical', além das interações físicas de comportamento (a liberdade do camelo) e da interações cognitivas individuais (a liberdade do leão), nos leva a pensar em outras interações (a redescoberta da dimensão lúdica).



Semiótica das interações


A teoria sócio semiótica de Eric Landowski (2014) é formada por quatro regimes distintos de interações: a) a programação ou operação (a interação sempre constante e contínua, um algoritmo objetivo); b) a manipulação ou estratégia (a interação inconstante e contínua em que a intencionalidade se superpõe ao causal, o efeito do narrado sobre o vivido, por exemplo); c) a interação de ajuste (constante e descontínua); e o fator imprevisível das interações (o aspecto inconstante e descontínuo). Cada regime corresponde a uma lógica semiótica distinta. A programação corresponde à regularidade. A manipulação é regida pela intencionalidade. O ajustamento funciona por sensibilidade. E o acidente corresponde à aleatoriedade.

Um exemplo do próprio Landowski de como regimes de interação funcionam juntos de ‘modo desigual e combinado’ é o das eleições contemporâneas (2014, 35-37). Os votos fisiológicos (regionais, setoriais) e os votos ideológicos (em partidos de direita ou esquerda) são previsíveis. Porém o sentimento de insegurança crônica promovido pela mídia faz com que eleitores de esquerda votem na direita e vice-versa. O medo ou mesmo a agressividade recorrente contra objetos de ódio grupal, a interação por contágio emocional, passou a ser decisiva em relação à defesa dos interesses naturais de cada um ou às suas preferências políticas. As eleições alimentam o sentimento de risco e são por ele alimentadas.

Gomes (2020) aplica a teoria dos regimes de interação ao processo de ensino-aprendizado. Seguindo Landowski, considera que os dois regimes de programação e manipulação não existem de forma independente, que estão sempre intricados um no outro, mas os distingue metodologicamente como modos de interpretar, como a combinação de um modelo estrutural determinista como uma abordagem fenomenológica da intencionalidade; do condicionamento social do comportamento corporal com o desenvolvimento da autonomia subjetiva dos atores. Em termos de educação, há a oposição de abordagens entre Skinner e a Nova Escola.

Essa duplicidade complementar das perspectivas comportamentais e cognitivas pode ser observada de vários modos no campo educacional. De modo geral, pode-se dizer que a estrutura escolar, o projeto pedagógico, o programa de disciplinas, as ementas, os planos de aula e os professores automatizados foram o aspecto regular, algorítmico; enquanto a motivação e curiosidade dos alunos formam o aspecto fenomenológico do aprendizado nesse modelo. Além disso essa duplicidade de abordagens produz conceitos gêmeos: há duas regularidades, dois tipos de motivação, duas sensibilidades e até dois tipos acaso. Então, chega-se a esses oito tipos de interações ideais presentes no processo de ensino-aprendizagem: a regularidade causal; a reprodução cultural; a disciplina automatizada pela responsabilidade; o entusiasmo da criatividade; a interação cinestesia; a interatividade pessoal; a capacidade de corrigir os próprios erros; e, finalmente, a habilidade de viver a vida como uma aventura empoderante, de se qualificar através de riscos e superações, de se tornar protagonista da sua história em comunidade e de conquistar autonomia integrada à inteligência coletiva.

Tabela 4 - Tipologia ideal das interações de Landowski


ESTRUTURA

FENÔMENO

REGULARIDADE

Causal ou Algoritmia

(Tempo contínuo)

Reprodução sócio cultural

(Tempo narrativo)

MOTIVAÇÃO

Aprender a aprender

Responsabilidade

Autoprogramação

Entusiasmo criativo

SENSIBILIDADE

Homem x Máquina

Cinestesia reativa

Homem x homem

Empatia afetiva

ACASO

Acidente programado

O aleatório ou sorte/azar

Acidente motivado

O ruído ou risco

Fonte: elaborado pelo autor

No entanto, do confronto dessas velhas formas de pensar e de ensinar, emergem novas formas de aprender, relacionadas à liberdade da criança.

Aprendizado existencial

A teoria dos regimes de interação é interessante para pensar as relações sociais do lado de dentro. Aqui a proposta é utilizada para pensar o aprendizado existencial e a relação pedagógica através das interações. Como e o que aprendemos.

TABELA 5 – Interações Pessoais


INTERAÇÕES ALGORITMICAS

INTERAÇÕES CONDICIONADAS

REGIME DE PROGRAMAÇÃO

O CAPITAL SIMBÓLICO

O INCONSCIENTE

REGIME DE MANIPULAÇÃO

MEDO E DOR

CULPA E VERGONHA

REGIME DE AJUSTE

RELAÇÕES DE FORÇA

SUJEIÇÃO/RESISTÊNCIA

REGIME DE RISCOS

A PERDA

O LUTO

FONTE: Elaborado pelo próprio autor

Do ponto de vista dos regimes de programação, o aprendizado existencial tem duas situações objetivas estruturais, que se alternam, mas que sempre permanecessem presentes: a) a aquisição de capital cultural; e b) o adestramento corporal, a inibição dos instintos e sentimentos formando o inconsciente. A dádiva (a herança cultural) e a dívida (o recalcamento do corpo e seus afetos).

Em outra ocasião (GOMES, 2013) chamamos essas duas situações estruturais de ‘Capital’ e de ‘Inconsciente’ – colocando-as como epicentros da sociabilidade grupal. Assim, um grupo é (mais e menos que) a soma dos seus componentes. O trabalho coletivo é mais que a soma dos trabalhos individuais gerando um excedente, o resto que sobra do todo menos as partes (o Capital, que passaremos a chamar de 'Dádiva'). Porém, o grupo também é menos que a soma das suas partes e recalca as qualidades de seus componentes. A esse déficit inibido das partes através do todo, chamamos 'Dívida' (ou Inconsciente). A disputa pelo excedente simbólico do grupo e o recalque da energia psíquica é representado pelo duplo regime de programação. Também define os papeis de Pastor (ou macho-alfa) como gerente e representante do capital do grupo; de Lobo (ou xamâ) para elemento expressivo do inconsciente do rebanho; e das Ovelhas, elementos passivos que oscilam entre os dois líderes para controlá-los. Seguindo esses parametros, todos os grupos ou rebanhos, tem elementos que desempenham essas funções. Na sala de aula também existem pastores, lobos e ovelhas reproduzindo esse jogo interacional biológico. Seria interessante se cada indivíduo experimentasse todos os papeis.

A dádiva é o conhecimento, a aquisição de linguagem e sua memorização em esquemas cada vez mais abstratos e abrangentes. O saber para diminuir as incertezas, para controlar o ambiente, para encantar aos pares. E a dívida é formada na repetição para automatizar e otimizar ações de curto prazo. A transmissão do capital cultural e o treinamento/recalcamento corporal têm uma mediação primária na família, uma mediação escolar e uma mediação midiática, através de um ambiente formado por vários suportes comunicacionais. O aprendizado interacional do Eu através do Outro tem três campos para comparação (a família, a escola e a cultura/mídia). E é aqui (na definição analógica dos ganhos e perdas) que começa o regime de manipulação. A regime de manipulação duplica o de programação. A culpa e a vergonha são utilizadas para que os indivíduos se sintam 'em dívida' com o social e/ou grupal; e o medo de exclusão é um instrumento de coesão do coletivo frente ao imprevisível.



Manipulação e estratégias de motivação

O homem nasce puro e é corrupido pela sociedade” – disse Rousseau. A socialização, no entanto, que corrompe o homem não é o conhecimento, mas sim o recalque do corpo, a depreciação cognitiva, a manipulação da inconsciência e o sequestro da motivação. Se há algo errado com o ser humano (e há), trata-se da existência do regime de manipulação.

Pode parecer cinismo falar de manipulação em se tratando de interações pedagógicas. A educação deve ensinar a cada um a pensar com independência e não a incultir intepretações. Mas, a verdade é que ainda existem táticas de manipulação de reforço (elogios e gratificação) e de pressão (a intimidação e a chantagem emocional). Geralmente, a manipulação através de reforços positivos é mais eficaz que a antiga de castigos e punições. Porém, sem o medo (de reprovação ou de uma avaliação negativa) e sem a vergonha/culpa (de não retribuir ao tempo investido em si por todos) o aprendizado raramente acontece.

As pedagogias construtivistas acreditam em uma educação sem medo baseada na responsabilidade; e as psicopedagogias cognitivo-comportamentais (Bandura, por exemplo) ressaltam o lado positivo do medo e da culpa no aprendizado automotivado. A manipulação sempre se justifica pela necessidade de atividades desagradáveis ao corpo (ficar muitas horas sentado, permanecer concentrado continuamente, adestramento caligráfico, disciplina em relação aos horários e às rotinas). Até mesmo expedientes como a gamificação, que engaja com alta motivação voluntária, prescinde de prêmio simbólico para o vencedor e punição moral para o derrotado.

Ao invés de tentar manipular a programação, o professor mediador deve propor estratégias de aprendizado (jogos, desafios, campanhas) voltadas para motivação. Porém, só há manipulação porque há exclusão do conhecimento comum. A raiz de todas as manipulações é a existência de informações privilegiadas. Hoje vivemos em regime em que as ideias são engavetadas, em salas fechadas, em prédios-caixotes, em cidades formigueiros. A informação está escondida e supervalorizada. Há um jogo de poder constante pela crença em informações inacessíveis. 



Interação de ajuste

Enquanto o segundo regime de interação (as formas de manipulação) emerge da disputa de poder e de capital simbólico, a interação por ajuste se refere à inibição do Eu e à antecipação das ações do Outro. O ajuste é a “auto-eco-organização” do sujeito, a autopoesis, a capacidade de reestruturação sintática do aprendizado, ampliação da autonomia em relação ao ambiente. O ajuste é entre a teoria e a prática, entre o ser e o querer ser, o fim de uma dissonância cognitiva.

O ajustamento não representa a contextualização social do enunciador e do destinatário dos discursos, nem pode simplesmente ser reduzida à adaptação recíproca entre o eu e o outro. Ele também não corresponde ao conceito de ‘ação comunicativa’ de Habermas (uma vez que as racionalidades instrumental e estratégica se assemelham aos dois primeiros regimes de interação). É “a capacidade de sentir reciprocamente” (LANDOWSKI, 2014, 50). A guerra e a dança, entre outras atividades exigem que o eu antecipa as reações do outro são exemplos de processos envolvendo os três regimes de interação, com ênfase no ajustamento e de na sensibilidade.

Os ajustes são o resultado (e a superação) do que Vygostki chamou de “dissonância cognitiva” entre o saber e o ser. Imagine que alguém disse que você machista sob algum aspecto ou mesmo que você leu uma informação sobre qualquer coisa. Você sabe de alguma coisa superficialmente e em breve irá esquecer. No entanto, para tornar uma informação incorporada ao seu comportamento, você terá que memorizá-la no corpo. No caso de nosso exemplo, durante algum tempo, você poderá ser uma pessoa que condena o machismo, mas que continua tendo comportamentos machistas. Só aos poucos, a pessoa conseguirá “colocar as ideias na vida e a vida nas ideias”.

As dissonâncias entre 'o que se fala' (ou 'se pensa') e 'o que se é' (ou 'o que se faz') são típicas da educação tradicional baseada na memorização e na hipocrisia cultural, não percebendo as próprias ambiguidades nem a dos outros. Por outro lado, a teoria na prática e a prática na teoria,a práxis do aprendizado, acontece quando há um interação de ajustamento entre ser (a interação algorítimica com o mundo) e saber (o programa cultural que estamos processando para compreender o mundo).

O ajuste e o risco funcionam como regimes em que a programação algorítima e a motivação manipulada passam por adequações. O regime de interação por ajustamento é constante e descontinuo. É gradativo do ponto de vista quantitativo e dá saltos aparentmente repentinos de qualidade. Estamos sempre sentindo, mas em intensidade e durações variadas. O regime de interação de risco é descontínuo e inconstante, é o oposto completo da regularidade da vida. Os dois produzem um ao outro. As Interações de Motivação e Ajuste também são transversais, mas secundárias em relação ao drama central entre o ser e o não-ser.



Interações de Risco

A noção de 'sociedade de risco' (BECK; LASH; GIDENS, 1997) estabelece que nossa cultura promove o máximo de autonomia dos indivíduos. Desafiamos a morte (a grande descontinuidade constante) para nos tornarmos pessoas melhores, com corpos capacitados e mentes disciplinadas.

Se fosse pensar o aleatório relacionado aos dois primeiros regimes de interação, diria que há o risco objetivo de morte e das perdas (ou de fim da regularidade); e o risco de não ser amado (e/ou de não ser manipulado). No de nossa aplicação ao aprendizado, o risco é o perigo de colapso de vida, a perda da confiança em si, a evasão escolar, a naturalização do subdesenvolvimento.

'Aprender a perder' é parte importante da formação ética universal e é ensinado através de jogos em diferentes culturas. Porém, é sempre importante estabelecer os limites e as salvaguardas para garantir a segurança.

Atualmente, o aprendizado está se 'gamificando', isto é, tornando-se lúdico e competitivo. As antigas disciplinas estão se tornando 'narrativas seriadas', em que cada aula é um episódio (representando um conteúdo específico) e um capítulo de um arco narrativo maior (correspondendo a um estágio de um conjunto de conteúdos cumulativos). As avaliações são desafios para que o aluno assimile o conteúdo específico e avance em relação ao conjunto de conhecimentos sequenciais. A gamificação representa a inserção do risco controlado – a incerteza lúdica - no aprendizado e na própria vida. Para tanto, não é preciso muita tecnologia. Basta viver feliz e consciente das próprias limitações, mas sempre buscando por desafios que possibilitem ampliá-las, sempre jogando o jogo.



Conclusão: A incerteza lúdica

A vida é um jogo? A vida é algo que disputamos, em que há vencedores e perdedores? Acredito que não. Mesmo se pensarmos em competição de gens e em 'seleção natural', o critério evolucionista de Darwin da sobrevivência do 'mais forte' já foi substituido pelo critério da capacidade de adaptação e resiliência (como propôs Lamarck). A vida seleciona os mais flexíveis e resistentes.

Mas, também compreendo que a vida vem se tornando uma competição. A vida moderna é uma aventura. Somos todos heróis a procura do grande amor e da realização no mundo. Por isso, tornamos nossas vidas narrativas de risco. Risco de vida, risco de não sermos amados, de não sermos bem sucedidos. Risco do fracasso dos perdedores.

A vida está se tornando um jogo.

Nesse contexto, estamos vivendo um processo de 'Gamificação' das relações sociais e das interações: a aplicação das estratégias e do design competivivo dos jogos em outras práticas sociais, com o objetivo de aumentar o engajamento dos participantes. A gamficação das relações se dá a nível estrutural, como disputas entre instituições sociais; como se a sociedade se tornasse um imenso mercado. Já a gamificação das interações se dá no micro espaço do cotidiano, acirrando a competição entre as pessoas em torno diferentes objetos de disputa, como “se a vida fosse um jogo”.

Na educação, a gamificação é defendida como um artíficio de engajamento motivacional – na maioria dos casos adaptada ao ensino tradicional. Já as abordagens construtivistas, recusam a gamificação porque ela enfatiza a competição e não a cooperação. Raramente, se pergunta sobre o aprendizado existencial dos jogos em si. Por que jogar? Jogar ensina a viver, a perder, a ganhar, a lidar com as emoções, a ser ético - independentemente do conteúdo que está sendo ensinado de forma colateral. Como formar protagonistas, desenvolvendo competências e habilidades socioemocionais através de jogos? E, do ponto de vista social: os jogos podem, ao contrário do que se pensa, contribuir para construção de sua sociedade mais solidária e menos competitiva? E ainda, em uma perspectiva pessoal: Como transformar a própria vida em uma aventura criativa?

Chegamos ao final com mais perguntas do que respostas, com mais dúvidas do que certezas. Como transformar a própria vida em uma aventura criativa? Como inserir a 'incerteza lúdica' em nossas vidas de modo decolonial e criativo? E como ensinar isso? E ainda, estamos a caminho da utopia tecno-lúdica, origem e destino da jornada do espírito em metamorfose?

A vida não é um jogo entre máquinas calculadoras programadas com objetivos variados. Somos tão irracionais que essa metáfora não nos cai bem. Além disso, nem todas disputas são amistosas. Em um jogo, o objetivo é vencer o adversário. Em uma luta, o objetivo é derrotar e até destruir o inimigo. A vida não é um jogo. Os jogos é que são simulações da vida. A grande diferença entre a vida e o jogo são seus riscos. Na vida, há o risco de morre e de perdas irreversíveis. No jogo, o perigo é não ser amado, perder a confiança em si, as posses, a naturalização da inferioridade, a honra. A vida não é um jogo, mas está se tornando um. E como será, dependerá de nossa própria capacidade de jogar.





Referências

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