sábado, 31 de outubro de 2020

Como estudar teleséries

 

Metodologia para narrativas audiovisuais

Marcelo Bolshaw Gomes1

  1. O percurso greimasiano

Geralmente apresenta-se Greimas como um teórico estruturalista que superou o estruturalismo, mas isso não é inteiramente verdade. Seu livro mais importante, Semântica estrutural (1973), pode ser lido de modo linguístico estruturalista, como um conjunto de regras para analisar a linguagem como narrativa. E os livros posteriores Semiótica das paixões (1993) e Da Imperfeição (2002) tratam de compreender as emoções e os efeitos de sentido do receptor e não mais da análise linguística das narrativas.

Porém, não há um corte epistemológico, uma ruptura entre duas formas distintas de pensar, e sim uma evolução dos conceitos. Na Semântica Estrutural, Greimas já considera as raízes psicológicas da linguagem e, nos últimos livros, ele não abandona inteiramente sua perspectiva estrutural e linguística.

A Semiótica das Paixões (1993) acredita que as emoções são o resultado de um jogo entre as modalidades do querer ser, do dever ser, do saber ser e do poder ser. Uma paixão/ação é fruto de arranjos modais entre esses quatro actantes (e não dos actantes-personagens da Semântica Estrutural). Por um lado, Greimas passa a se referenciar em sua própria narrativa; por outro, os efeitos de sentido passionais continuam sendo construções de linguagem derivadas de arranjos nodais provisórios.

Da imperfeição (2002) é um livro que lembra, em vários aspectos, Fragmentos do Discurso Amoroso (1981), último livro de Roland Barthes. A semelhança não reside apenas na passagem do estilo teórico estruturalista para uma abordagem mais artística, voltada para a análise literária e para as próprias percepções emocionais, mas, sobretudo, porque os textos extrapolam a experiência estética em busca de um sentido ético para a vida. São textos meta literários que discutem o impacto do narrado sobre o vivido.

Porém, em nenhum momento Greimas rompeu explicitamente com seu passado (como Barthes fez em sua aula inaugural no College de France2) e com o método narrativo elaborado na Semântica Estrutural. Para Greimas, a semiótica é a teoria da significação. Seu objeto são os sistemas semióticos narrativos (escritos, plásticos, musicais) e não os signos em si. A unidade mínima da linguagem também não é o signo, nem o discurso, mas o texto – seja ele escrito, visual ou sonoro. Os sistemas semióticos se constituem a partir de condições de enunciação (tecnologias do emissor) e das possibilidades linguísticas de enunciação (a linguagem e os pactos de sua leitura). Vistos do lado de dentro da narrativa, o sujeito da enunciação (o “alguém que diz”) e o sujeito enunciatário (para quem se fala) são equivalentes às categorias de ‘autor ideal’ e ‘leitor ideal’ elaboradas por Umberto Eco para traçar o limites entre a Interpretação e a Superinterpretação (1993)3. Apesar do reconhecer a importância da interpretação final do receptor, Eco destaca o peso das circunstâncias de enunciação e leitura e leva em conta o contexto do enunciador (ou as circunstâncias sócio históricas de transmissão e distribuição do discurso e os ‘pactos de leitura’ (os diferentes contextos de recepção). As estratégias de leitura textual (o autor modelo e os leitores modelos) seriam os limites da interpretação legítima. Enquanto, a semiose ilimitada absoluta endossa projeções indevidas, ‘usos’ arbitrários e ‘super-interpretações’.

  1. Breve história do sistema narrativo da TV

Há várias forma de contar a história da televisão. A maioria se perde entre fatos técnicos e eventos transmitidos. Entre as teorias sobre rupturas e marcos na história da TV, Eliseo Verón (2003, p. 15) cita duas, que considera mais relevantes: a semiótica (que trata da linguagem) e a tecnológica-industrial.

A Semiótica de Umberto Eco divide o desenvolvimento da linguagem televisiva em dois períodos distintos: a paleo-TV – em que o veículo falava do mundo objetivo, ao vivo, separando a informação da ficção/opinião; e a neo-TV, em que a televisão fala sempre de si mesma, misturando referências reais e simbólicas de múltiplos modos. A primeira fase é caracterizada pelo “olho no olho” (o apresentador garante a verdade da enunciação olhando dentro da câmera); a segunda, pelo olhar vago e descentrado dos entrevistados, pela narrativa ‘em off’, pelo desaparecimento do apresentador e do repórter ou, ao contrário, pela sua integração dentro de espaços ficcionais e/ou publicitários. Todos tornam-se personagens da narrativa televisiva, duplos ou fantoches icônicos das instituições e grupos sociais.

Classificação semelhante é sustentada por Casseti e Odin (VÉRON, 2003, p. 19), em que há uma fase “de massa” ou “pedagógica” (onde a TV é uma grande sala de aula) e uma segunda fase mais individualista (que coincidiu com o advento da TV a cabo no Primeiro Mundo), marcada pelo início da segmentação da audiência e pela interatividade do público, antecipando assim a Internet.

Assim, enquanto Eco analisa mais a mudança na linguagem do veículo, Casseti e Odin estudam as mudanças tecnológicas e mercadológicas da televisão. As duas abordagens não são excludentes e até se explicam. Além de proceder esta síntese, Verón apresenta ainda uma outra classificação mais abrangente, com três fases ao invés de duas (VERÓN, 2003, p. 22). De 1950 aos anos 70, a TV seria “uma janela para o mundo”, isto é, um enquadramento do contexto sócio institucional extra televisivo. O enunciador seria um mero ventríloquo, o interpretante seria o “Estado-Nação” ou o País. No Brasil, esse período corresponde à era da TV ao vivo, anterior à gravação em Vídeo. Nos anos 80, segundo Verón, a TV tornou-se a própria instituição interpretante e o videoclipe passou a ser sua unidade retórica. A televisão não espelha mais a realidade, recorrendo a cientistas para falar de ciência, a políticos para falar de política ou a artistas para falar de arte; o apresentador fala direta e legitimamente de tudo e a TV não é mais uma ‘janela’, mas sim um espaço de montagem de discursos. Verón (2003, p. 25) identifica ainda uma terceira fase, a partir da metade dos anos 90, caracterizada pelos reality-shows.

Tabela 1 – História da TV

LINGUAGEM

TECNOLOGIA

ANOS

JANELA DO MUNDO AO VIVO

Auge da TV de sinal aberto

1950

Surge o vídeo

60

MEIO-MENSAGEM, OBJETO-PRESENÇA DO SIMBÓLICO NO COTIDIANO

Transistor substitui a válvula

70

Transmissões via satélite e a cores

80

SEGMENTAÇÃO INTERATIVA

TV a cabo (fibra ótica)

90

TV digital (o microchip)

2000

Convergência com telefonia (microondas)

2010

Os anos 50 foram os ‘anos de ouro’ da televisão nos EUA. A TV, totalmente ao vivo, transmitia desde concertos de música, peça de teatro de Shakespeare, eventos esportivos e telejornais em tempo real. Aqui, a TV Tupi procurava reproduzir o ‘glamour’ das três principais redes americanas (ABC, CBS e NBS). O aparecimento das gravações em vídeo barateou bastante os custos de produção de TV, mas também fez com que houvesse uma grande queda no padrão de qualidade do conteúdo transmitido. No Primeiro Mundo, essa mudança da primeira para segunda fase de desenvolvimento da TV corresponde à TV a cabo e à segmentação do mercado consumidor; mas no Brasil, a mudança corresponde à progressiva hegemonia do “padrão Globo de produção” e a programação nacional colorida difundida em rede via satélite (o programa Fantástico, o show da vida, misturando informação e entretenimento, pode ser considerado o carro-chefe dessa estética, de auto referência institucional). Aqui, a terceira fase é que corresponde ao aparecimento dos canais fechados de TV a cabo e a diminuição drástica do nível cultural da programação de sinal aberto, ao aparecimento de novos ‘programas populares’ (ao vivo, de auditório, com cenas policiais voltadas para as classes C e D). Os anos 80 foram ‘uma década perdida’ para o desenvolvimento tecnológico da televisão4.

Há também várias formas de caracterizar o momento atual do desenvolvimento da televisão. O microchip e as micro-ondas aumentando a mobilidade dos meios. As telas LED/Cristal líquido miniaturizando os monitores. Veron enfatiza a linguagem dos ‘reality-shows’; Mitchell (2012, 2015), a cultura de séries; Jenkins (2009), a cultura participativa do público e a narrativas transmídias distribuídas em várias plataformas. Há várias características diferenciais e diferentes formas de descrevê-las. Mas, além das análises centradas na linguagem do discurso audiovisual e na história dos suportes tecnológicos, há também aspectos mais importantes a considerar para caracterizar esse terceiro momento da televisão: a segmentação e a interatividade.

A ideia da TV como uma mídia manipuladora e alienante foi um obstáculo para sua análise discursiva e narrativa como produto cultural. A televisão só passou a ser vista como ‘arte’ pela academia nos anos 80. Em 1987, Sara Ruth Kosloff (1992) apresenta uma abordagem estruturalista específica para análise da televisão, fundamentada nos pensamentos de Tzvetan Todorov, Roland Barthes e outros. A maioria dos estudos, no entanto, aplica à TV, os mesmos procedimentos analíticos utilizados nas narrativas cinematográficas (GAUDREAULT, 2017).

O folhetim, o rádio novelas, as histórias em quadrinhos e os seriados da televisão serializam as narrativas ficcionais. A serialidade é a fragmentação e a descontinuidade da linguagem, gerando rotinas discursivas através da repetição e da acumulação gradativa de elementos narrativos (CALEBRESE, 1987).

A linguagem da TV consolida o conteúdo serializado através de blocos, episódios e temporadas que são dispostos ao longo de dias, semanas e até anos.

O sistema narrativo da televisão incorpora os parâmetros dos sistemas narrativos teatral (cenográfico, figurino, dramaturgia), literário (roteiro, diálogos, narrador em off, legendas), cinematográfico (a fotografia, o enquadramento, a sonoplastia, a edição de imagens e seus efeitos) e radiofônico (a serialização em módulos, episódios e temporadas ao longo do tempo; e o tempo simultâneo ‘ao vivo’). As narrativas ficcionais eram literárias e teatrais no século XIX e se tornaram cinematográficas no século XX. O leitor e o espectador presencial do teatro foram substituídos pelo público consumidor de imagens técnicas – em vários contextos de recepção diferentes no espaço tempo.

O sistema narrativo da televisão assimilou os sistemas narrativos da literatura, teatro e cinema gerando um novo modelo narrativo, que está, durante o século XXI, sendo reinventado pelas redes e dispositivos móveis. As narrativas audiovisuais de ficção assimilaram as antigas estruturas e estão absorvendo as novas, reformulando-as em uma constante transformação, é a chamada ‘ecologia das mídias’.

Com a convergência (tecnológica e empresarial) das mídias, o sistema narrativo audiovisual em série transbordou as fronteiras da televisão, escorrendo pelos computadores e dispositivos móveis de telefonia.

  1. Cultura de séries

Porém, antes mesmo de desenvolvermos ferramentas analíticas específicas para o sistema narrativo da TV, o videogame e a internet tornam as narrativas audiovisuais ficcionais, além de seriadas e instantâneas, também interativas e segmentadas. Surgem novos modos narrativos: a complexidade narrativa de Mittell (2012; 2015) e a narrativa transmídia de Jenkins (2009).

Mittell associa a fusão dos formatos seriado e capitular à noção de complexidade narrativa, identificando-a como uma poética da narrativa televisiva. Jenkins vê a serialidade da TV como base da transmidiação, em que uma narrativa é distribuída em diferentes plataformas de forma desigual e combinada.

O consumo de narrativas audiovisuais de ficção seriada, produzido para televisão; é consumido fora da televisão (via DVDs, arquivos digitais ou streaming). Surgem também novas práticas culturais, como os fenômenos do bing-watching (prática de assistir a vários episódios de um mesmo programa, através de plataformas como o Netflix e/ou arquivos baixados pela internet) e do social TV (uso simultâneo da internet e da televisão pelos telespectadores, a experiência da ‘segunda tela’ e da utilização combinada dos hemisférios cerebrais)5.

Com a convergência das mídias; a televisão, o telefone e o computador se interligam através da internet das coisas. Embora a radiodifusão e a telefonia permaneçam distintas como negócios, vários ‘objetos inteligentes’ já superam essas barreiras tecnológicas. Trata-se agora de assistir as séries de ficção televisiva em canais fechados, plataformas como a Netflix e arquivos digitais. A TV aberta Broadcast como modelo de negócios já acabou (resta apenas a ferramenta de manipulação de massas), mas sua linguagem permanece viva como produto cultural artístico.

Existe quem acredita que ainda é muito cedo para decretar o fim da televisão. Argumenta que o velho modelo broadcast continua sendo hegemônico internacionalmente e que a segmentação interativa atendem mais ao desejo de auto representação das elites do que à democratizar a informação ao conjunto da população.

Mas não se discute o empoderamento do receptor nem a transformação da máquina hipnótica em um oráculo cognitivo – pois isso são sonhos.

Silva (2014) discute a existência de uma cultura das séries, a partir de três condições centrais: a sofisticação das formas narrativas, o contexto tecnológico que permite uma ampla circulação digital (online ou não) e os novos modos de consumo, participação e crítica textual. Com isso, as séries fomentam interesses que não se restringem ao envolvimento de comunidades de fãs com obras específicas, mas também indicam a formação de um repertório histórico em torno desses programas, de uma telefilia transnacional, de uma cultura das séries.

Figura 1: Diagrama de vetores dos elementos constituintes de uma cultura das séries.

Fonte: SILVA, 2017.

A nova ‘cultura de séries’ traz também uma nova geração de estudos sobre a televisão, não mais centrados no contexto social (como a Escola de Frankfurt e o funcionalismo) ou na linguagem (como o estruturalismo), mas sim nos contextos de recepção da TV. Por exemplo, nas classificações antigas, as narrativas de ficção seriada se subdividiam em novelas (de capítulos), seriados (de episódios) e teledrama (narrativas completas sobre um único tema). Com a fusão dos gêneros e a mudança da perspectiva para a recepção, as narrativas passaram a ser classificadas em: séries imóveis (ou fechadas - com começo, meio e fim predeterminados); e séries móveis, abertas ou evolutivas (ESQUENAZI, 2011, p. 93).

Dentre os subtipos mais comuns, destacamos o Sitcom (comédias de situação, baseadas na comicidade da personalidade de seus protagonistas), a Soap Opera (gênero em que não há um desenvolvimento real da narrativa, cada resolução de arco é sempre provisória como a vida) e as séries nodais (em que há estrutura interna de longo prazo encadeada com os episódios para montagem de uma narrativa complexa).

  1. Semiótica Narrativa

A metodologia para leitura de narrativas audiovisuais em série tem três momentos distintos: descrição, análise e interpretação. Para descrever a narrativa, sugerimos algumas categorias narrativas simples: enredo principal (e subenredos); narrador; espaço-tempo; ambiente; e personagens. Espera-se que, descrita através dessas categorias, o leitor possa entender a narrativa sem ter a assistido.

Há, em seguida, três níveis de análise: a linguística, a discursiva e a narrativa – que detalhamos adiante.

E, finalmente, há ainda a interpretação, em que se discute os elementos psicológicos universais da narrativa e se define sua mensagem simbólica, a chamada “moral da história”.

Tabela 1 – Descrição, análise e interpretação de narrativas

CATEGORIAS DESCRITIVAS

NÍVEIS DE ANÁLISE

INTERPRETAÇÃO

Enredo

Linguística – Semiótica (Texto, imagens, sons)

QUADRADO SEMIÓTICO NARRATIVO polarização dos elementos simbólicos

Narrador

Espaço Tempo

Análise Discursiva de conteúdo

Ambiente

Personagens

Análise Narrativa (Gênero, tipo, comparações narrativas)

Mensagem

Ferdinand Saussure, criador da linguística e do estruturalismo, estabeleceu o Signo como unidade mínima da linguagem e o subdividiu em dois aspectos indissociáveis: o Significante ou aspecto material (uma “imagem acústica”); e Significado ou aspecto mental (a ideia abstrata que o signo representa).

Enquanto Saussure elaborou uma linguística voltada para o estudo oral do idioma, Hjelmslev e a escola glossemática criaram uma linguística estruturalista voltada para o idioma escrito e duplicaram a dicotomia do signo em quatro níveis:

  1. Forma de Expressão (palavras, sons, imagens);

  2. Substância de Expressão (cores, notas musicais, sabores);

  3. Forma de Conteúdo (conceitos e enunciados); e

  4. Substância de Conteúdo (símbolos, universais do imaginários).

Tabela 2 – Saussure e Hjelmslev

SAUSSURE

GLOSSEMÁTICA

SIGNO

SIGNIFICANTE

Imagem acústica

Forma de Expressão

Ordem de elementos

Substância de Expressão

Morfemas elementos

SIGNIFICADO

Ideia abstrata

Forma de Conteúdo

Ordem estrutural

Substância de Conteúdo

Conceito puro

Para Greimas, todo texto pode ser analisado como uma narrativa. Por exemplo: o médico lê os sintomas de seu paciente (no plano das formas de expressão) extraindo daí um diagnóstico (no plano do conteúdo de substância) de sua enfermidade. Os sintomas são os significantes e o diagnóstico é o significado. Todo sistema semiótico narrativo é formado por uma semântica (estudo dos significados) e por uma sintaxe (estudo das relações estruturais entre os significantes).

Há, portanto, três estruturas sobrepostas: a estrutura linguística de superfície (as formas e as substâncias de expressão), a estrutura discursiva intermediária (as formas de conteúdo, os enunciados e conceitos); e a estrutura narrativa de profundidade (a substância de conteúdo, o simbólico, os universais do imaginário).

Figura 1 – Estruturas linguísticas por Greimas

Assim, a linguagem (ou a estrutura linguística de superfície) é: a) sincrônica e imediata, sendo explicada pela b) análise discursiva no plano das formas de conteúdo (pelos enunciados diacrônicos e lineares do pensamento) e c) pela análise da estrutura narrativa de profundidade, o arranjo dos elementos universais e inconscientes (que voltam a ser simultâneos).

Greimas afirma que o nível discursivo é uma enunciação do nível narrativo. E que, ainda no plano de conteúdo, as estruturas narrativas são anteriores e mais abrangentes do que as estruturas discursivas de um texto. No plano da expressão, os conteúdos narrativo e discursivo são manifestos tanto de forma verbal como de forma não verbal. O plano de conteúdo é mental, metalinguístico e representa a significação semântica em si; o plano da expressão é material, linguístico e formado por imagens, sons e palavras, em “estruturas de superfície”.

Greimas usa o modelo da glossemática para estudar narrativas.

Tabela 3 – Níveis de Análise Narrativa


DESCRIÇÃO

ANÁLISE

INTERPRETAÇÃO

SAUSSURE

SIGNO

SIGNIFICADO

SIGNIFICANTES

SIMBOLO

GLOSSEMÁTICA

Forma de expressão

Forma do Substância

Expressão do Conteúdo

Substância de conteúdo

GREIMAS

Análise linguistica

Análise discursiva

Análise narrativa

Quadrado semiótico

LEITURA CRÍTICA AUDIOVISUAL

Som, imagem, texto, tempo, sequências

Contexto sócio histórico de enunciação e a mensagem oculta

Comparação dos contextos socioculturais de recepção

Elementos Psicológicos, Universais do Imaginário, Sonhos

Segundo Greimas, a forma de expressão é a linguagem superficial, imediata, como a percebemos através dos sentidos. Ela é composta com palavras, imagens, sons, signos materiais. Já a substância de expressão é o significado imediato, temático, do conteúdo de cada signo: o que foi dito e onde/quando foi dito. A linguagem transforma-se em discurso, um conjunto de enunciados.

Os sintomas-significantes ‘seios inchados e doloridos, atraso na menstruação, enjoos, alterações no paladar’ no plano da forma de expressão nos leva a enunciar o diagnóstico-significado de ‘gravidez’ no plano da substância de expressão. 

A forma de conteúdo, por sua vez, implica em se observar o contexto de enunciação e os diversos contextos de recepção (os diferentes pactos de leitura da narrativa), fazendo assim uma crítica ideológica da narrativa. A forma de conteúdo também pode ser compreendida como uma crítica estética, destacando como a narrativa se coloca em relação a ouras narrativas semelhantes em gênero ou tipo, sê assimila enredos de outras estórias ou se traz elementos novos.

Para Greimas, nas narrativas no nível das formas de conteúdo, alguém (O SUJEITO) deseja alcançar algo (O OBJETO DE VALOR) e é atrapalhado por algo/alguém (O ANTI SUJEITO). Este modelo simples permite entender o gênero (que tipo de objeto de valor) e a ideologia (a identidade do anti sujeito) da narrativa. No caso da gravidez, o diagnóstico da substância de expressão: a mãe é o actante sujeito; a futura criança, o objeto de valor; e o anti sujeito, define o tipo de narrativa: gravidez de risco, gravidez indesejada, gravidez constrangedora.

E, finalmente, a substância de conteúdo se refere aos elementos simbólicos e psicológicos da narrativa, aos ‘universais do imaginário’, que combinados de diferentes modos formam a “mensagem” da narrativa. Greimas sugere a organização desses elementos em pares, representando os conflitos, relações complementares e contrapontos da narrativa, em modelo chamado de Quadrado Semiótico Narrativo.

Este modelo consiste em definir quatro actantes e organizá-los em seis pares de opostos: duas relações de contradição; duas relações de contrariedade; e duas relações de complementaridade – entre os quatro elementos simbólicos principais da narrativa. Essas estruturas profundas seriam lógicas e acrônicas, formadas por relações de contradição, oposição e contraponto (o quadrado semiótico).

  1. O Quadrado dos Actantes

E a esse conjunto de relações podem ser representados no esquema gráfico proposto por Greimas.

Figura 2 – Estrutura narrativa do inconsciente profundo



S1 - Sujeito: persegue o objeto

S2 - Ajudante: actante que dará auxílio

~S2 – Anti Sujeito: actante que cria obstáculos

~S1 - Objeto de valor: elemento central (desejo)

Destinador: remetente

Destinatário: quem recebe o objeto

Exemplo de Greimas (1973, p.): A Branca de Neve (sujeito) deseja ser feliz (objeto de valor) é ajudada pelos 7 anões (ajudantes) atrapalhada pela bruxa (anti sujeito) encontra o príncipe (destinador) e casa-se com ele (casamento/receptor).

O Quadrado Semiótico Narrativo de Greimas consiste na representação visual da articulação lógica de uma qualquer categoria semântica no plano de conteúdo. Nele, se situam os actantes: o Herói (S1), a Sociedade (S2), seu Ajudante (~S1) e seu Adversário (~S2). As linhas bidirecionais contínuas representam as relações de contradição; as bidirecionais tracejadas, as relações de contrariedade; e as linhas unidirecionais, as relações de complementaridade.

O próprio Greimas modificou os actantes do diagrama do quadrado narrativo na Semiótica das Paixões e em Da Imperfeição, indicando a necessidade de adaptação criativa de seu modelo. Na verdade, vários arranjos são possíveis, incluindo ou excluindo elementos simbólicos diferentes segundo as histórias e deve-se estar aberto para aprender a aperfeiçoar os conceitos com as narrativas novas, ao invés, de querer aplicar modelos analíticos de regras de forma inflexível.

Na presente perspectiva, o Herói da narrativa corresponde ao Ego projetado pelo narrador com o qual o leitor se identifica. E o Adversário corresponde à sombra psicológica, à carga de negatividade utilizada na estória. O Ajudante é composto por vários alter egos masculino (o Animus), o melhor amigo do protagonista; e a Sociedade pode ser substituída pelo Self, o Narrador/leitor ou ainda pelo Sagrado Feminino (ou a Anima) – que geralmente desempenhando o papel de 'par romântico'.

Tabela 4 – Quadrado Semiótico Narrativo

Posição

Elementos narrativos

RELAÇÕES DE CONFLITO

S1/~S2

Protagonista x Antagonista

S2/~S1

Narrador x Sagrado Feminino

RELAÇÕES DE OPOSIÇÃO

S1/S2

Protagonista e Narrador

~S1/~S2

Sagrado Feminino e Antagonista

RELAÇÕES DE CONTRAPONTO

S1/~S1

Protagonista + Sagrado Feminino

S2/~S2

Narrador + Antagonista

Os actantes de Greimas não são (necessariamente) personagens ou arquétipos psicológicos. Mas guardam grande semelhanças com essas categorias. Actantes são “os seres ou as coisas que, a título qualquer e de um modo qualquer, ainda a título de meros figurantes e de maneira mais passiva possível, participam do processo” (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 20). Assim, Actante para Greimas é “um tipo de unidade sintática, de caráter propriamente formal, anteriormente a qualquer investimento semântico e/ou ideológico” (2008, p. 21).

Greimas escreveu um texto específico (1983), em que explica as semelhanças e diferenças entre personagens, figuras e actantes. Aqui considera-se as categorias de protagonista e antagonista (tipos de personagens para Propp) como equivalentes aos actantes Sujeito e Anti Sujeito. Nas narrativas audiovisuais atuais, os personagens são quase sempre actantes. Embora seja possível que um protagonista narrativo seja um anti sujeito simbólico, como, por exemplo, uma história de Lúcifer. Mas, há também trabalhos mais sofisticados com protagonistas coletivos ou abstratos. Antagonistas também: adversidades, preconceitos, medos, tudo que for contrário ao protagonista. Hoje, o elemento feminino deixou de ser um objeto passivo e também protagoniza a narrativa, instaurando novos objetos de valor abstratos. Assim, o actante ‘Objeto de Valor’ foi associado ao arquétipo psicológico do ‘Sagrado Feminino’ assumindo diversas identidades narrativas: a natureza, a mulher, a sociedade.

E, no lugar do actante Ajudante, coloca-se aqui o Narrador, que corresponde ao Self (ou identidade da consciência) e deve ser entendido como uma mediação entre autor e leitor; e não como “narração”, um discurso da narrativa que “conta” a história. Onipresente e onisciente, ele é uma presença narrativa constante e invisível.

  1. Adaptações

Também alterou-se as relações de polaridade entre os actantes para Contradição, Contraste e Complemento – mais simples e mais abrangentes para análise de texto audiovisuais que as relações de Oposição, Contrariedade e Implicação originalmente propostas por Greimas, que são mais literárias e menos visuais.

Trabalha-se assim com uma adaptação criativa da proposta de Greimas e não com a aplicação rígida de sua metodologia.

Aliás, a definição dos elementos simbólicos (para o quadrado semiótico narrativo) é sempre arbitrária e subjetiva, pois trata-se de uma interpretação. A mensagem da história vai sempre depender de quem a lê, da definição dos elementos simbólicos de quem analisa a narrativa. Diferentes leitores podem identificar diferentes actantes da narrativa que leem; e chegar à conclusões morais diferentes.

Poder-se-ia dizer que se faz aqui uma leitura muito junguiana de Greimas, confundindo as noções de arquétipo com actante. De fato: a diferença entre as noções é apenas de contexto teórico, pois, enquanto o arquétipo é uma forma-modelo dentro de uma arqueologia; o actante é um universal do imaginário, dentro de uma narrativa.

Na narrativa A queda do Éden do Genesis há quatro elementos actantes e arquetípicos: Jeová (narrador/self), Adão (protagonista/ego), Eva (ajudante/anima) e a Serpente (antagonista/sombra). Tradicionalmente, os actantes combinam com os arquétipos, mas é possível contar a mesma história de outras formas.

Por exemplo, posso recontar a história com a serpente narradora e/ou com Eva como protagonista da narrativa. Isto mostraria os lados negativos de Adão e de Jeová (os actantes seriam destacados dos seus arquétipos de origem), abrindo novas possibilidades de leitura e interpretação da narrativa.

E por isso o primeiro elemento a ser definido é sempre o narrador, o Self, elemento consciencial da narrativa. Eu posso contar a história do ponto de vista de Adão, Eva ou da Serpente; transformando o arquétipo de Jeová em personagem actante da narrativa de um deles. O segundo passo é definir os actantes protagonista e antagonista entre os outros três arquétipos restantes. Resumindo: os arquétipos são elementos psicológicos e os actantes são dispositivos narrativos. Podem coincidir, reforçando a estrutura narrativa; ou não, desconstruindo narrativas tradicionais.

  1. Conclusão

Primeiro, descreveu-se sumariamente o percurso teórico de Greimas, ressaltando sua posição limítrofe entre o estruturalismo e o pensamento pós-moderno; acrescentando também algumas referências teóricas importantes para semiótica, como Eco e Barthes.

Depois apresentou-se uma brevíssima história da televisão, destacando nela três momentos de seu sistema narrativo: os anos de ouro ao vivo, a era da máquina hipnótica e o momento atual de transição, caracterizado pela interatividade relativa (sob controle) e pela segmentação crescente. A convergência dos meios está transformando a televisão em um oráculo cognitivo?

Observou-se, em seguida, que a ideia de que a TV é apenas uma mídia manipuladora e alienante (pela Escola de Frankfurt, por exemplo) se configura como um obstáculo para sua análise; e que o modelo de fluxo televisual da grade de programação, proposto por Raymond Williams, desestimulou a análise dos programas individualmente. A televisão se tornou uma espécie de ‘tabu’ epistemológico.

Finalmente, apresentou-se uma metodologia para leitura de textos audiovisuais em série, englobando parâmetros para descrição, análise e interpretação das tele séries.

Demorou até que se reconhece-se a TV como forma de arte e/ou como um produto cultural. O discurso televisivo passou a ser sempre visto como algo superficial, fragmentado, repetido, ampliando e sugerindo alguns aspectos em detrimento de outros, como um filtro da realidade social, como algo que não merece ser estudado – entre outras aversões. Agora, segundo vários teóricos e críticos contemporâneos estamos vivendo um terceiro momento, caracterizado pela convergência das mídias e pela segmentação interativa do público: a “segunda era de ouro da televisão” e um declínio do cinema. Atores, diretores, escritores estão migrando da sétima para décima segunda arte. Surge a nova competência artística de ‘redator-produtor’ da série. A (autoria da) arte no teatro é do escritor; no cinema, do diretor; e na TV, do produtor – diz o ditado. Mas, hoje percebemos que a arte está nos olhos de quem a vê. Que toda arte agora é do seu receptor. Daí a importância das interpretações criativas, principalmente daquelas que compreendam e contribuam para ampliar e expandir essa situação limítrofe entre consciência e linguagem, a interação entre o sujeito e os efeitos de sentido, a dialética entre a vida e a narrativa.

1 Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4792219T9 e email: marcelobolshaw@gmail.com

2 Inaugurando, no Collège de France, a 7 de janeiro de 1977, a cadeira de semiologia literária, Roland Barthes, ao considerar a língua como um código de linguagem engendrado pelo poder (e não como uma estrutura) rompe efetivamente com Saussure e aproxima-se de Foucault. A comparação entre Barthes e Greimas é interessante porque ambos passam a ser mais literários e críticos, como se não houvesse mais tempo para explicar suas ideias de forma analítica, sendo assim pedir ajuda a poética; e consequentemente passam a ser discutir as próprias emoções.

3 Pierce (2003) entendem que o sentido é produzido mais pela relação texto-receptor do que pela intenção do enunciador (psicanálise) e/ou do significado do texto em si (estruturalismo). A ‘semiose ilimitada’ a partir do interpretante significa que um signo não representa um objeto de referência e sim outro signo, que representa outro signo e assim indefinidamente. Mesmo aceitando a semiose ilimitada do receptor, Umberto Eco (1993) traça limites para interpretação. Para Eco, há textos abertos como a arte (polissêmicos, em que vários sentidos convergentes se encaixam) e textos fechados, dirigidos a públicos específicos. Quando o receptor imagina a referência, o texto é aberto e o discurso é lúdico; quando a referência é imposta pelo emissor, o texto é autoritário e discurso é uma paráfrase. A maioria dos textos é intermediário desses extremos, podendo haver diferentes gradações. Para entende-los, Eco propõem duas estratégias de interpretação textual: o autor-modelo (a imagem que o leitor faz de quem escreve) e o leitor-modelo (a imagem que o autor faz de quem lê). E observa que há vários níveis de competência do leitor e que o texto permite diversas leituras e vários leitores ideais.

4 Devido à defasagem do desenvolvimento da TV brasileira em relação ao contexto internacional, Verón (2003, p. 30) faz uma perigosíssima comparação entre a vitória de Lula em 2002 e a eleição de François Mitterrand, na França em 1981: para ele, o presidente francês foi eleito presidente pela primeira vez no início da segunda fase da televisão; e Lula, quando esta fase termina e uma terceira se inicia. Mas, nos dois casos, o autor acredita que a mídia impôs uma “economia de contato” aos atores sociais e políticos durante as eleições. Em ambas as situações, não é mais a televisão que fala a respeito dos candidatos aos seus eleitores, mas sim a TV que vende produtos políticos a consumidores segmentados.

5 Ler implica em concentração, em ‘entrar no livro’, através do hemisfério esquerdo; assistir televisão é deixar as imagens ‘entrarem em você’ através de um atenção dispersa pelo hemisfério direito. O computador é uma síntese do livro e da TV ao mesmo tempo e já tem um efeito de duplicar a cognição da linguagem. Na experiência de bing-watching, a dupla cognição é distribuída em duas telas, uma representando a TV e a percepção passiva; e a outra, o aspecto ativo e criativo da cognição.


  1. Referências bibliográficas

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AMOR E MORTE

 


Amorteamo à luz dos Actantes

Carla Patrícia Oliveira de Souza1

  1. Introdução

A microssérie Amorteamo (2015) veiculada pela Rede Globo de Televisão em cinco episódios no período de maio e junho de 2015, as sextas-feiras no horário das 23:30horas, é uma criação de Newton Moreno, Guel Arraes e Cláudio Paiva. Com direção geral de Flávia Lacerda. O dramaturgo pernambucano Newton Moreno teve a ideia inicial inspirada no livro Assombrações do Recife Antigo de Gilberto Freyre de adaptar esta obra literária para um produto televisivo, já que o mesmo tinha adaptado essa obra para o teatro. A temática sobrenatural atravessa a narrativa de dois triângulos amorosos, habitantes da cidade de Recife da década de 1920.

Utiliza-se o termo ‘microssérie’ para designar Amorteamo neste trabalho, por se distinguir da ‘minissérie’ que apresenta uma quantidade maior de episódios. Balogh (2004) nos diz que o formato mais fechado do gênero, a minissérie, é estruturalmente mais coeso que a novela, por possuir as marcas da autoria no texto roteirizado. E que as marcas da autoria e o formato fechado da minissérie em relação aos outros produtos de ficção da televisão a tornam um meio propicio para as adaptações da literatura. Pois é o produto que menos segue os moldes da “estética da repetição”. As séries, seriados e novelas são caracterizadas por apresentar reiterações tanto no nível narrativo quanto no nível figurativo.

As minisséries oferecem traços de originalidade raros na ficção televisiva, até mesmo em um universo fictício já per se original como o da teledramaturgia brasileira (BALOGH,2004, p.96).

A minissérie como produto diferenciado, possui um horário de transmissão que costuma ser após as 22:00 horas, visando atingir um público mais seleto. No âmbito cultural, as minisséries transpostas da literatura representam um incentivo nas vendas das obras originais.

Pelo caráter estrutural da minissérie, a clausura poética do texto, já apontada, o formato se presta admiravelmente à transmutação de textos literários consagrados pela tradição cultural brasileira. Clássicos, enfim, que representam a maioria das minisséries realizadas. Clássicos considerados intransmutáveis, como Grande Sertão: Veredas foram traduzidos por Walter George Durst e Walter Avancini. Eça de Queiroz foi adaptado em duas minisséries primorosas: O Primo Basílio, com roteiro de Gilberto Braga, e Os Maias, com roteiro de Maria Adelaide Amaral. Érico Veríssimo foi transposto para a TV em O tempo e o Vento, com adaptação de Doc Comparato. A Muralha foi transposta da obra homônima de Dinhah Silveira de Queiroz por Maria Adelaide Amaral. [...] a maioria das facetas de nossa cultura plasmada na literatura se encontra representada no formato em termos de adaptações. (BALOGH, 2004, p.99)

Para um melhor entendimento sobre a passagem do texto literário ao televisual, buscamos a conceituação do termo adaptação, para podermos situar a relação da obra de Gilberto Freyre – Assombrações do Recife Antigo com a microssérie Amorteamo.

Este processo pressupõe a passagem de um texto caracterizado por uma substância da expressão homogênea – a palavra -, para um texto no qual convivem substâncias da expressão heterogênea, tanto no que concerne ao visual quanto ao sonoro” (BALOGH, 1996, p.37).

A autora cita Alvarez Garcia para explicar a divisão da matéria visual em: imagem fixa, imagem em movimento e palavra escrita; e a matéria sonora em música, ruído e palavra falada. Logo, o termo mais apropriado que Jakobson sugere para a tradução é ‘intersemiótica’, a passagem do literário ao sincrético é sua transmutação. A passagem de uma obra literária para uma fílmica implica uma operação intertextual especifica. Há algum tempo a semiótica vê a intertextualidade como objeto de estudo. As adaptações são nomeadas nos próprios créditos da obra como resultante de uma relação intertextual. Há inclusive o uso pelo cineasta tradutor da gradação da tradução intersemiótica realizada. “Na adaptação de Grande Sertão :Veredas, para Globo, as vinhetas de abertura dizem apenas “do livro de Guimarães Rosa” (BALOGH, 1996, p.38). Em alguns casos, os criadores optam pela liberdade de adaptação, não evidenciando nos créditos “a adaptação de” por se tratar de uma relação intertextual mais livre.

É o caso da microssérie Amorteamo, em que o processo de transmutação da obra de Gilberto Freyre foi bem sutil. Os criadores Newton Moreno, Cláudio Paiva e Guel Arraes absorveram a atmosfera sobrenatural do livro sobre as assombrações no Recife antigo, principalmente no intercambio dos vivos com os mortos. Primeiramente através das cenas que mostram o espirito liberto do corpo material, Chico (Daniel Oliveira) após ser assassinato já em sua forma espiritual faz companhia a amante Arlinda; e as assombrações na igreja realizadas pela forma espiritual do padre Lauro (Gilray Coutinho) que se enforcou no sino da igreja. E posteriormente, quando os mortos vivos Malvina (Marina Ruy Barbosa) e Chico (Daniel Oliveira) retornam para se vingar, estes assumem a personalidade má de algumas lendas como a judia Branca Dias e o Boca de Ouro retratadas no livro de Gilberto Freyre.

Este trabalho tem como objetivo fazer uma análise da narrativa da microssérie Amorteamo amparado pela teoria de Algirdas Greimas. Para tanto faz-se necessário um breve estudo da obra televisiva Amorteamo, bem como a gênese do livro Assombrações do Recife Antigo para uma melhor entendimento do processo de transmutação da literatura para a televisão.

Uma reflexão acerca da narrativa fantástica de Tzvetan Todorov e do conto maravilhoso de Vladimir Propp é essencial para situar a narrativa de Amorteamo, para finalmente interpretar a narrativa das personagens femininas da microssérie.

Selecionou-se cinco personagens femininas de Amorteamo, por considerá-las de grande importância para o entendimento da narrativa. E também para evidenciar a representação do papel feminino nas diferentes classes sociais da cidade do Recife na década de 1920.

Outro aspecto que merece atenção nas minisséries é a ênfase dada as heroínas, sejam produtos de biografias romanceadas ou uma visão fictícia de heroínas de nossa história, ou ainda uma aproximação, a mais fiel possível, ao real dentro do contexto da ficção (BALOGH,2004, p.100).

Diante da importância das heroínas retratadas nas minisséries, neste trabalho vamos também mostrar as ante heroínas, mulheres que pela infelicidade da sua trajetória de vida não conseguiram vislumbrar um destino melhor que a morte, caso da noiva suicida Malvina (Marina Ruy Barbosa) e da dona do prostíbulo Dora (Maria Luísa Mendonça). Além dessas personagens, analisa-se também Arlinda (Leticia Sabatella), Lena (Arianne Botelho) e Cândida (Guta Stresser).

  1. A microssérie Amorteamo

A microssérie Amorteamo é um melodrama2 segundo seus criadores, ambientada em Recife, cidade nordestina cortada pelas águas do rios Capibaribe e Beberibe, na década de 1920 e mostra a decadência financeira de uma família dona de engenho de açúcar, e também o declínio moral do casal protagonista Arlinda (Leticia Sabatella) e Aragão (Jackson Antunes). Há traições de ambos cônjuges, que resulta em um crime, e filhos bastardos. Após dezoito anos de uma convivência infeliz, uma maldição assola a cidade, provocada por essa família.

No site da Memória Globo3, a diretora Flávia Lacerda revela que associou as referências clássicas do audiovisual com as técnicas tradicionais do cinema e dos efeitos visuais contemporâneos, resultando em um audiovisual com uma estética romântica em uma atmosfera misteriosa. “O texto trabalha com elementos mais fantásticos e a gente se inspirou muito no que acontecia culturalmente no mundo no início do século XX”. E acrescenta que a história é um produto da linguagem do expressionismo, do cinema mudo e do teatro circense.

A trama principal de Amorteamo gira em torno de dois triângulos amorosos. O primeiro constituído por Aragão (Jackson Antunes), a esposa Arlinda (Letícia Sabatella), e o amante dela Chico (Daniel de Oliveira). O segundo triângulo é formado por Gabriel (Johnny Massaro) filho extraconjugal de Arlinda com Chico, mas que Aragão criou como filho legitimo; Lena (Arianne Botelho) filha da empregada do casarão de Arlinda com Aragão, o amor de infância de Gabriel; e Malvina (Marina Ruy Barbosa) a noiva abandonada por Gabriel que se suicida na ponte do Rio Capibaribe.

Gabriel se desespera após ter conhecimento do suicídio de Malvina, em um ato de arrependimento ele abre o túmulo de Malvina que retorna a vida, como uma morta viva, e a partir desse momento, uma maldição assola a cidade do Recife, e todas as pessoas que foram enterradas no cemitério da cidade retornam a vida, em busca de resgatar algo ou para se vingar.

A microssérie Amorteamo foi organizada em cinco episódios. No site da memória globo4 temos o título de cada episódio com uma síntese da narrativa.

No primeiro episódio, intitulado “Amor e revolta”, a história se desenvolve a partir do assassinato de Chico, Aragão o mata com um tiro ao flagrá-lo com sua esposa.

A esposa infiel Arlinda, grávida do amante é mantida presa no sótão até o nascimento de Gabriel. Após o perdão de Aragão todos voltam a se reunir como uma família. Desde pequeno Gabriel gosta de frequentar o cemitério e conversar com Zé Coveiro (Tonico Pereira). Gabriel também gosta da companhia de Lena, a filha da empregada, por quem se apaixona na fase adulta. A empregada do casarão, Zefa (Gheuza Sena), preocupada com o envolvimento da filha com Gabriel, pede a filha que se afaste do filho de Aragão pois ela é somente a filha da empregada, encobrindo a verdadeira paternidade dela. Várias intrigas ocorrem entre Lena e Gabriel, e este com Aragão. Inclusive o pai o expulsa de casa. Mas nada impede que Lena e Gabriel fiquem juntos. Quando Gabriel pede Lena em casamento a Zefa, o segredo da paternidade de Lena é revelado, e os dois se entristecem profundamente ao saber que são irmãos. Aragão não revela que Gabriel não é seu filho legitimo por temer ser exposto como marido traído na cidade.

Neste episódio também é mostrado o suicídio do padre Lauro logo após a chegada do padre substituto Joaquim, que chega para investigar as denúncias sobre a corrupção na igreja.

O segundo episódio chamado “O noivado” mostra a infelicidade de Gabriel de um lado, bebendo com os amigos no bar de Cândida (Guta Stresser) e Manoel (Aramis Trindade). E do outro, Lena que não perdoa a mãe por ter escondido a verdade sobre o seu pai. Arlinda adoece com a ausência de Gabriel em casa, Aragão manda Lena procurar Gabriel que o encontra no bar. Gabriel encontra a mãe muito doente, e o pai sem recursos financeiros para arcar com o tratamento médico. Por intermédio do advogado de Aragão, o judeu agiota da cidade, Isaac, é convidado para ir a casa de Aragão. Para não deixar a filha sozinha em casa Isaac leva Malvina a negociação. Aragão negocia um pedido de empréstimo a Isaac que pede garantias, como Aragão só tem uma engenho de açúcar falido e um casarão deteriorado, Aragão propõe um casamento entre as famílias. Ele proporcionaria um sobrenome tradicional já que o judeu era mal visto na cidade. Diante da afeição de Malvina por Gabriel, Isaac aceita o acordo, como também Gabriel com a única intenção de salvar a mãe. Fatos sinistros começam a ocorrer na igreja, como o sino que badala sozinho à noite. A população não frequenta mais a igreja, o padre Joaquim não consegue atrair os fiéis de volta a igreja, devido a fama de lugar mal assombrado.

O terceiro episódio intitulado de “Noiva Cadáver” mostra o suicídio de Malvina após ser abandonada por Gabriel na Igreja. Arlinda inconformada por seu único filho casar sem amor, revela toda a verdade a Gabriel, que desiste de casar e vai atrás de Lena. Malvina retorna a vida como morta viva após ter o seu túmulo violado por Gabriel, e com ela todos os mortos retornam em busca de resgatar algo.

No quarto episódio chamado de “Sede de Vingança”, Gabriel se arrepende mais uma vez, agora por ter trazido Malvina à vida. Ela indignada com a sua condição de morta, procura seu pai e se surpreende ao saber que sua mãe está viva. E que passou 18 anos sendo enganada por acreditar na morte da mãe no parto. Ao saber que foi comprada ainda bebe pelo pai, se revolta e mata os dois. Chico, o ex amante de Arlinda também retorna com sede de vingança, convence Arlinda a denunciar Aragão por assassinato, e mesmo com Aragão detido na cela, Chico o assombra todas as noites enlouquecendo Aragão. O padre Lauro também retorna a igreja para assumir sua posição de pároco, deixando padre Joaquim perplexo além de Cândida e Manoel que presenciam a cena.

Os donos do bar se assustam mais uma vez ao chegar no seu estabelecimento e encontrar o falecido Jeremias, primeiro marido de Cândida e irmão de Manoel. Jeremias quer reatar o casamento com a esposa, a sua peruca e o bar que o irmão Manoel tomou posse.

No último episódio intitulado “Final Feliz?” é mostrado a trajetória final de Malvina e dos outros mortos vivos na cidade. Malvina impulsionada pelo amor por Gabriel tenta matá-lo para enfim ficarem juntos, mas é impedida por Zé Coveiro. Depois de muitas tentativas de atrair Gabriel para junto de si, sem retorno, Malvina decide se jogar novamente da ponte. Enquanto isso Chico tenta matar Aragão mas Arlinda o protege recebendo a bala fatal. O padre Lauro reza uma missa junto com o padre Joaquim para os fies mortos vivos, antigos frequentadores da igreja. E Jeremias tenta conquistar a esposa e seus bens. Assim que Malvina é finalmente enterrada no cemitério por Gabriel, a maldição termina e todos os mortos vivos retornam para seus túmulos. Gabriel se casa com Lena, mas uma questão fica no ar se eles realmente serão felizes.

Para compreender melhor a inspiração sobrenatural na narrativa de Amorteamo, no tópico a seguir faremos um breve estudo sobre as motivações que levaram Gilberto Freyre a pesquisar as assombrações recifenses e a importância que essas lendas folclóricas possuem na história cultural da cidade, lendas que surgiram desde a época da colonização.

  1. A gênese das Assombrações do Recife Antigo

Em 1928, a pedido do governador de Pernambuco, Estácio Coimbra, o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre aceita o convite de dirigir o jornal A Província em Recife. Época em que o jornal acolhe a colaboração de novos escritores do Brasil. Freyre publica artigos e caricaturas sob a assinatura de diferentes pseudônimos, como: Esmeraldino Olímpio, Antônio Ricardo, J. Rialto e outros. Nesse mesmo período, Gilberto Freyre é nomeado professor da Escola Normal do Estado de Pernambuco, na primeira cadeira de sociologia que se instala no Brasil com a mais atual orientação antropológica e com as respectivas pesquisas de campo, conforme Fonseca (2008).

Durante a passagem de Freyre na direção A Província, jornal de José Mariano e José Maria, de Joaquim Nabuco e Carneiro Vilela, precisamente em 1929, Gilberto Freyre é procurado por um assinante fiel do jornal com o objetivo de conseguir o apoio do chefe da polícia para investigar o sobrado no bairro de São José, que segundo o leitor, estava repleto de assombrações.

Estávamos na época em que se atribuía ao Presidente da República, aliás brasileiro honrado e homem de bem, o critério de considerar toda a agitação brasileira de operários contra as explorações de patrões, simples questão de polícia. O diretor d’A Província tinha diante de si, naquela noite de 1929, um cidadão igualmente honrado que, acreditando em espíritos maus e zombeteiros, acreditava ao mesmo tempo em solução policial para as assombrações da sua casa. Não admitia que fossem obras de ladrões. Nem de malandros. (FREYRE, 2008, p.28-29).

Freyre, ao mesmo tempo em que aconselha o leitor procurar um psiquiatra, começa a pesquisar o tema. Para tal investigação, convoca o repórter policial do jornal Oscar de Melo, para averiguar nos arquivos e nas tradições policiais da cidade tudo sobre casas mal-assombradas e casos de assombração. Todas as denúncias realizadas na polícia contra ruídos de almas e afins deviam ser copiadas. Antes dos primeiros dados sobre as denúncias de assombração colhidas na polícia chegar, Freyre começa a publicar uma série de artigos sobre o tema, que a princípio geraram um certo ruído mas apenas restrito a província. O poeta Manuel Bandeira, colaborador do jornal A província, escreve do Rio de Janeiro parabenizando o diretor do jornal pela série de artigos sobre o sobrenatural do passado recifense. A Província organizou as reportagens sobre as assombrações como uma série sobre Crimes célebres em Pernambuco, conforme nos explica Freyre (2008), assim o jornal contribuiu para a história íntima da cidade. Foi realizado uma pesquisa não apenas jornalística mais também histórica, na qual o diretor foi auxiliado pelo repórter investigativo e demais fontes da cidade.

Dos artigos sobre assombrações organizados a partir do ano 1929 no jornal A Província, ao lançamento do livro em 1951 sobre essa mesma temática, muitas outras histórias foram coletadas, a maioria diretamente de fontes orais dos moradores da cidade. Sendo assim, o livro foi elaborado a partir de três fontes: os arquivos da polícia, com as denúncias de casas mal assombradas; dos relatos dos cronistas da cidade no período do império; e através dos contadores, como: preto José Pedro, Josefina Minha-fé, preto velho Manoel Santana, Dona Maroquinha, Velho Brotherhod, Dr. Alfredo Freyre e outros.

Sustentado na tradição oral da cultura popular, o livro quer nos aproximar dessas figuras sobre-humanas, fantasmas mestiços com seus testemunhos sobre a construção deste país. [...] Um povo se conhece pelos seus mortos. A perspicácia de Gilberto está no seu entendimento de Recife, como um amálgama de influências contraditórias que vai se harmonizando, como nas releituras de mães d’água, caboclas, como a Iara, africanas como oxum e iemanjá, ou como o fantasma da judia, chamada branca, que emergia das águas do Capibaribe para assombrar. No livro, surgem os diabos negros, os exus pertencentes aos escravos africanos, na mesma medida em que outros demônio de cabelo em fogo e vermelhos assustavam recifenses à época da invasão holandesa. Metáfora implícita do fantasma do demônio colonizador. (MORENO, 2008, p.11)

Freyre (2008) relata vários episódios em que alguns moradores da cidade do Recife expõem suas experiências com fatos sobrenaturais, ou ainda alguns desses contadores relembram as histórias que circulam na cidade cortada por rios.

Uma dessas histórias, é sobre um sitio que se tornou conhecido pelo nome de Encanta-moça, devido uma mulher bonita ter se encantado nos mangues, após ter fugido do marido ciumento. Essa mulher surge aos homens em noites de lua, enfeitiçando-os com sua nudez branca. Mas que se desmancha quando alguém tenta se aproximar, deixando apenas um ar gélido como sinal de sua presença. A lembrança desse mistério nomeou o local chamado de Encanta-Moça. Mas que após o transporte aéreo ter chegado aquela localidade, o Instituto Arqueológico concordou na mudança de nome para o de Santos Dumont. O nome Encanta-moça não tinha nenhum valor histórico para permanecer nomeando aquela localidade. Encanta-moça não significava nada para a história da cidade porque era uma lenda.

Argumento de quem nunca leu aquela página de Chesterton em que o ensaísta inglês lembra que uma lenda é obra de muitos e como tal deve ser tratada com mais respeito do que um livro de história: obra de um único homem. E antes de Chersterton já dizia a sabedoria francesa: Une legende ment parfois moins qu’um document. (FREYRE, 2008, p.42-43)

A seguir, discute-se a narrativa fantástica e maravilhosa a partir da contribuição dos linguistas russos Todorov e Propp para compreender a narrativa da microssérie Amorteamo.

  1. A narrativa fantástica e maravilhosa

Em um mundo materialista em que habitamos, onde figuras ou fatos sobrenaturais não podem ser explicados pelas leis deste mundo, nomeia-se esses acontecimentos como um produto da imaginação. Neste caso, as leis deste mundo continuam inalteradas, ou então procura-se verificar se esse acontecimento ocorre realmente; e, se sim, deve ser regido por leis desconhecidas para nós.

Ou o diabo é um ser imaginário, uma ilusão, ou então existe realmente, como os outros seres vivos, só que o encontramos raramente. O fantástico ocupa o tempo dessa incerteza; assim que escolhemos uma ou outra resposta, saímos do fantástico para entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que não conhece as leis naturais, diante de um acontecimento aparentemente natural (TODOROV, 2006, p.148).

O Manuscrito Encontrado em Saragossa, de Jan Potocki, é o livro que inaugura as narrativas fantásticas. No início da narrativa, as leis da natureza são respeitadas, o máximo que ocorre são acontecimentos estranhos e coincidências raras. Porém, um primeiro acontecimento sobrenatural surge “as duas moças formosas se transformam em cadáveres podres”, mesmo diante desse fato o protagonista continua não acreditando na existência de forças sobrenaturais, o que teria acabado com a hesitação e assim o fantástico não existiria.

Os acontecimentos que sucedem não retiram as dúvidas do protagonista, ele tenta encontrar uma explicação racional para os fatos esquisitos, porém outro evento surge para confundi-lo mais ainda. E isso se reproduz tantas vezes até ele confessar que “quase cheguei a acreditar ...” E essa sentença é a formula que sintetiza melhor o espirito do fantástico.” A fé absoluta, como a incredulidade total, nos levam para fora do fantástico, é a hesitação que lhe dá vida” (TODOROV, 2006, p.150).

Para que o fantástico se instale, é necessário a existência de um fato estranho que provoque uma hesitação tanto no protagonista como também no leitor. A narrativa fantástica pressupõe três condições. Primeiro, o leitor deve se convencido de que o mundo das personagens é um mundo de pessoas vivas, e deve haver a hesitação entre um esclarecimento natural e um esclarecimento sobrenatural sobre os fatos. Segundo: essa hesitação deve ser sentida também por um dos personagens. E finalmente, o papel do leitor é confiado a uma personagem, a hesitação é representada na narrativa e é um dos temas desta. “O gênero fantástico é pois definido essencialmente por categorias que dizem respeito às visões na narrativa; e, em parte, por seus temas” (TODOROV, 2006, p.151).

O fantástico permanece apenas durante o tempo da hesitação, esta que é comum ao leitor e à personagem. Se no fim da narrativa, o leitor senão a personagem opta por uma decisão e fazendo assim sai do fantástico. Se ele acredita nas leis da realidade e explica o fenômeno, a obra pertence ao gênero do estranho. Porém, se ele aceita as novas leis da natureza, para explicar o fenômeno, então a narrativa entra no gênero do maravilhoso. Percebe-se que há narrativas do gênero fantástico, estranho e maravilhoso, e em cada um, há subgêneros transitórios (entre o fantástico e o estranho; e entre o fantástico e o maravilhoso). Esses subgêneros contem obras que permanecem durante um determinado tempo na hesitação fantástica mas que acabam sendo direcionadas para o maravilhoso ou o estranho.

No fantástico-estranho, os acontecimentos tem ares de sobrenatural durante o decorrer da história porém finaliza com uma explicação racional. Nada de sobrenatural ocorreu, tudo é resultado de uma imaginação desregrada (loucura, sonho ou drogas).

O fantástico-maravilhoso trata das narrativas que se iniciam como fantásticas e que atingem o sobrenatural.

São essas as narrativas mais próximas do fantástico puro, pois este, pelo próprio fato de não ter sido explicado, racionalizado, nos sugere a existência do sobrenatural. O limite entre os dois será portanto incerto; entretanto, a presença ou a ausência de certos pormenores nos permitirá sempre decidir. (TODOROV, 2006, p 158).

A introdução de elementos sobrenaturais é um modo de impedir a reprovação da sociedade para determinados temas, como por exemplo a loucura. A função do sobrenatural é deduzir o texto à ação da lei, e a partir disso transgredi-la. Em relação a função literária do sobrenatural, há uma coincidência peculiar entre os autores que trabalham com temas sobrenaturais e os que na obra estão atentos principalmente para o desenvolvimento da ação.

As primeiras narrativas que contém elementos do sobrenatural são os contos de fada. As obras A odisseia, o Decameron e Don Quixote possuem em diferentes níveis elementos maravilhosos. Na época moderna, autores como Balzac, Mérimee, Hugo, Flaubert e Maupassant possuem também contos fantásticos.

Para entender a coincidência entre os diversos autores que trabalham com as narrativas fantásticas, é importante questionar a própria natureza da narrativa. Em toda narrativa há um movimento entre dois equilíbrios análogos mas não idênticos. No início da narrativa, sempre temos uma situação estável, com personagens que constituem uma configuração que pode ser móvel porém com determinados traços fundamentais. A narrativa básica é composta por dois tipos de episódio: a descrição do estado de equilíbrio ou do desequilíbrio e a descrição do acesso de um a outro. Toda narrativa possui esse esquema tradicional, as vezes é difícil de identificar porque pode-se eliminar o começo ou o fim, intercalar digressões ou outras narrativas. Um bom exemplo segundo Todorov (2006) para entender o lugar dos elementos sobrenaturais nesse esquema é a História dos amores de Camaralzaman das Mil e Uma Noites.

Este Camaralzaman é o filho do rei da Pérsia e é o mais inteligente e mais belo rapaz do reino e mesmo para além das fronteiras. Um dia, seu pai decide casá-lo; mas o jovem príncipe descobre de repente ter uma aversão insuportável pelas mulheres, e recusa categoricamente a obedecer-lhe. Para puni-lo, seu pai o fecha numa torre. Eis uma situação (de desequilíbrio) que poderia bem durar dez anos. Mas é nesse momento que o elemento sobrenatural intervém. A fada Maimune descobre um dia, em suas peregrinações, o belo rapaz e dele se encanta; ela encontra em seguida um gênio, Danhasch, que conhece a filha do rei da China, que é evidentemente a mais bela princesa do mundo; além disso, esta se recusa obstinadamente a casar-se. Para comparar a beleza dos dois heróis, a fada e o gênio transportam a princesa adormecida ao leito do príncipe adormecido; depois os despertam e os observam. Segue-se uma longa série de aventuras, em que o príncipe e a princesa vão procurar reunir-se, depois desse fugidio e noturno encontro; por fim, formam uma nova família (TODOROV, 2006, p.162).

Nesse exemplo, há o equilíbrio inicial e o final em consonância com o realismo. Os acontecimentos sobrenaturais rompem com o desequilíbrio mediano, e geram a extensa demanda do segundo equilíbrio. O sobrenatural entra no encadeamento de episódios, que mostram a passagem de um estado a outro. A transgressão da lei provoca uma mudança célere, então é necessário que as forças sobrenaturais intervenham para impedir que a narrativa se torne lenta. É o elemento maravilhoso que modifica a situação precedente, rompe o equilíbrio ou desequilíbrio. A função social e literária do sobrenatural é transgredir a lei da vida social e/ou da narrativa, a interferência do elemento maravilhoso forma uma ruptura no sistema de regras preestabelecidas.

O folclorista russo Vladimir Propp (1984) estuda a morfologia do conto maravilhoso comparando seus enredos. Após a comparação de determinados tipos de contos de magia, classificados no índice de Aarne5, foi identificado elementos constantes e variáveis. Propp conclui que o que muda são os nomes e os atributos dos personagens, e o que permanece são as suas ações ou funções. Daí a conclusão de que o conto maravilhoso atribui ações iguais a personagens diferentes e nos permite estudar os contos a partir das funções dos personagens.” (1984, p.25).

Faz-se necessário identificar em que nível as funções representam as grandezas constantes, que são tantas vezes repetidas em um conto maravilhoso. Por isso que a questão “De quantas funções pode abarcar um conto maravilhoso?” nos ajuda a entender a importância da repetição das funções nesses tipos de conto. Os personagens do contos maravilhoso mesmo os mais distintos executam comumente as mesmas ações. O meio em que a função é realizada pode alterar, pois é uma grandeza variável, porém a função é uma grandeza constante. Nas pesquisas de Propp sobre o conto maravilhoso o que importa é identificar o que fazem os personagens.

As funções dos personagens representam as partes constituintes que podem tomar o lugar dos motivos de Vesselóvski, ou dos elementos de Bédier. Lembremos que a repetição de funções por personagens diferentes foi observada há bastante tempo pelos historiadores das religiões nos mitos e nas crenças, mas não pelos historiadores do conto maravilhoso. Assim como as propriedades e funções dos deuses se deslocam de uns para outros, chegando finalmente até os santos do cristianismo, as funções de certos personagens dos contos maravilhosos se transferem para outros personagens. Antecipando, podemos dizer que existem bem poucas funções, enquanto que os personagens são numerosíssimos (PROPP, 1984, p.26).

Pode-se entender o duplo aspecto do conto maravilhoso, que se caracteriza pela grande diversidade de contos, o caráter variado e a sua repetibilidade. Sendo as funções dos personagens as partes essenciais do conto maravilhoso, vale destacar algumas considerações acerca das funções, como: o personagem que executa a função é menos importante que ação, e esta deve ser definida por um substantivo (proibição, fuga etc.). O significado de uma determinada função deve ser observado no desenvolvimento da ação. “Por função, compreende-se o procedimento de um personagem, definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação” (PROPP,1984, pag.26). Os personagens para Propp (1984) devem ser estudados de acordo com suas funções, a sua divisão em categorias, e a sua entrada em cena. A partir desse estudo chegamos ao problema geral dos personagens do conto maravilhoso. Logo, faz-se necessário diferenciar dois objetos de estudo: os autores das ações e as próprias ações.

São grandezas variáveis do conto, a nomenclatura e os atributos dos personagens. Conceituamos como atributos, a reunião de todas as qualidades dos personagens: a idade, sexo, posição social, caraterização física. São esses atributos que conferem o encanto do conto.

Mas no conto, como vimos, um personagem pode facilmente tomar o lugar de outro. Estas trocas têm suas próprias causas por vezes muito complexas. A vida real cria sempre figuras novas, brilhantes, coloridas, que se sobrepõem aos personagens imaginários; o conto sofre a influência da realidade histórica contemporânea, do epos dos povos vizinhos, e também da literatura e da religião, tanto dos dogmas cristãos como das crenças populares locais. O conto guarda em seu seio traços do paganismo mais antigo, dos costumes e ritos da antiguidade. (PROPP, 1984, p.81)

O conto aos poucos vai se transformando devido as múltiplas influências que absorve, gerando uma grande diversidade de formas. Apesar disso, o seu estudo é possível porque a constância dos contos está nas funções, o que permite a análise dos elementos que circundam as funções. Para o estudo dos atributos dos personagens deve-se considerar a aparência e nomenclatura, as características da aparição em cena e o habitat. Pode-se agregar também uma série de elementos auxiliares que apesar de não ter tanta relevância nos ajudar a contextualizar a narrativa.

Assim, os traços característicos de Baba-Iagá são: seu nome, sua aparência (perna descarnada, o nariz que sobe ao teto, etc.), a casinha que gira sobre patas de galinha; e seu modo de entrar em cena: a chegada num almofariz voador, sempre acompanhada de silvos e ruídos (PROPP, 1984, p.82).

O personagem pode também ser definido através do ponto de vista das funções, pode ser um doador ou um auxiliar, etc. E a partir daí pode se fazer um estudo das diferentes rubricas. Todas as informações de uma rubrica pode ser analisadas independentemente de toda a diversidade de contos. As formas que mais se destacam representam um determinado cânone. E estes podem ser de âmbito internacional, nacional, regional. Há também as formas que definem determinadas categorias sociais (militares, rurais, urbanos). É importante acrescentar que um elemento que representa uma rubrica pode aparecer em outra de uma forma inesperada. Um personagem pode assumir um papel de doador-conselheiro por exemplo. Esses deslocamentos fazem parte da constituição das formações de um conto, que apesar de aparentar ter um novo enredo na verdade foi derivado de um antigo transformado.

Propp (1984) nos apresenta informações iniciais sobre as funções das personagens dos contos maravilhosos, estes nos ajudam a refletir juntamente com Greimas as personagens femininas da Microssérie Amorteamo.

  1. De Propp a Greimas

O linguista Algirdas Greimas (1973) atualizou a obra Morfologia do conto maravilhoso de Propp, principalmente em relação ao modelo atuacional e ao inventário reduzido de funções. “Após ter definido o conto popular como uma extensão de suas 31 funções sobre a linha temporal, Propp se coloca a questão dos atuantes, ou dos dramatis personae, como ele os chama” (GREIMAS, 1973, p.228).

Greimas (1973) diz que a concepção de Propp sobre os atuantes é funcional, os personagens são definidos por “esferas de ação” das quais praticam, e estas são formadas pela atribuição de funções. Ele observou uma invariância ao comparar os contos-ocorrências do corpus, percebeu que as “esferas de ação” atribuídas às personagens, são variáveis de um conto ao outro. Greimas nomeia as personagens de atores, e a partir de uma análise em um esquema simples, onde ele relaciona as funções, a esfera de atividade e os atores, constatou que.

Resulta daí que, se os atores podem ser instituídos dentro de um conto-ocorrência, os atuantes que são classes de atores, não podem sê-lo senão a partir do corpus de todos os contos: uma articulação de atores constitui um conto particular; uma estrutura de atuantes, um gênero. Os atuantes possuem, pois um estatuto metalinguístico em relação aos atores; pressupõem acabada, além disso, isto é, a constituição de esferas. (GREIMAS,1973, p.229).

A organização dos atores pela descrição de suas funções e a diminuição das classes de atores à das atuantes do gênero, propiciaram a Propp constituiu um inventário dos atuantes. Esse inventário dos personagens do conto popular russo é definido como uma narrativa de 7 personagens, que são: o vilão, o doador, o ajudante, a pessoa procurada, o mandante, o herói e o falso herói.

Greimas (1973) faz uma crítica a pesquisa de Propp e diz que [...]

[...] definir um gênero apenas pelo número de atuantes, fazendo abstração de todo o conteúdo, é situar a definição num nível formal excessivamente elevado; apresentar os atuantes sob a forma de um simples inventário, sem se interrogar sobre as relações possíveis entre eles, é renunciar muito cedo à análise, deixando a segunda parte da definição, seus traços específicos, num nível de formalização insuficiente (GREIMAS,1973, p.230-231).

Greimas (1973) também se opõe a Propp em relação às categorias atuacionais “destinador” versus “destinatário”, devido a manifestação sincrética usual dos atuantes, identificada no nível da sintaxe e da repetição constatada de dois atuantes em um só ator. E exemplifica, em uma narrativa de uma história de amor simples que seu desfecho se dá com o casamento sem a interferência dos pais. O sujeito é também o destinatário, e o objeto é ao mesmo tempo o destinatário do amor. Ele ≈ sujeito + Destinatário / Ela ≈ objeto + destinatário. “No caso, os quatro atuantes são simétricos e invertidos, mas sincretizados sob a forma de dois atores” (GREIMAS, 1973, p.232).

Em uma narrativa como a da Procura do Santo Graal, temos quatro atuantes bem diferentes, dispostos em duas categorias. Sujeito ≈ herói/objeto ≈ Santo Graal/Destinador ≈ Deus/Destinatário ≈ Humanidade. Esta descrição é de E. Souriau6, e Greimas não identificou nenhuma dificuldade, diferentemente do primeiro exemplo de Propp que o destinatário deve estar articulado em dois atores, sendo o primeiro confundido com o objeto do desejo (a pessoa procurada – pai dela).

No conto popular russo, o campo de atividade do destinatário se funde com o sujeito-herói. O que gera um questionamento “[...] é saber se tais fusões podem ser consideradas como critérios pertinentes para as divisões de um gênero em subgêneros” (GREIMAS,1973, p.233). O que se percebe é que as duas categorias atuacionais parecem formar um modelo básico, edificado sobre o objeto, este que é simultaneamente objeto de desejo e objeto de comunicação.

Greimas (1973) reconhece facilmente duas esferas de atividade, e cada uma com duas funções bem distintas. A primeira tem como objetivo auxiliar, age no sentido do desejo, ou promove a comunicação. A segunda, age no sentido oposto, cria empecilhos, opõe-se na consumação do desejo. Essas duas funções antagônicas podem ser atribuídas a dois atuantes diferentes, chamados de adjuvante e oponente.

O termo oponente foi trazido por Souriau e o temo adjuvante foi introduzido por Guy Michaud por intermédio de Soriau. Para Propp, o termo oponente é denominado vilão, e o termo adjuvante abarca dois personagens o ajudante e o doador.

  1. As personagens femininas

No universo mítico, esta oposição entre o advujante e o oponente pode ser visto como um espetáculo projetado em uma tela axiológica, e que nós podemos perceber atuantes sendo representados por forças benfazejas e malfazejas do mundo. São as encarnações do anjo e do diabo do drama medieval.

Na manifestação mítica, que nos preocupa, entendemos que o adjuvante e o oponente não são senão projeções da vontade de agir e resistências imaginárias do próprio sujeito, julgadas benéficas ou maléficas em relação ao seu desejo. Esta interpretação vale o que é. Tenta explicar o aparecimento nos dois inventários, ao lado de verdadeiros atuantes, dos circunstantes e dar conta de seu estatuto sintático e semântico, ao mesmo tempo. (GREIMAS, 1973, p.235).

Esse modelo pode ser usado para análise de manifestações míticas, devido a sua simplicidade operacional. A simplicidade reside no fato de ser totalmente fundado sobre o objeto do desejo do sujeito, e colocado como objeto de comunicação entre o destinador e o destinatário. O desejo do sujeito é modulado em projeções do adjuvante e do oponente. “Diríamos assim que as particularizações eventuais do modelo deveriam incidir inicialmente sobre a relação entre os atuantes “sujeito vs objeto”, e manifesta-se com uma classe de variáveis constituída de investituras suplementares” (GREIMAS,1973, p.236).

O autor exemplifica esse método de análise com a pequena narrativa de um sábio filosofo da época clássica que tinha o desejo de descobrir quem era os atuantes do seu espetáculo de conhecimento. Sendo assim, o sujeito = filósofo, objeto = mundo, destinador = Deus, Destinatário = humanidade, oponente =matéria, adjuvante= Espirito.

As principais forças temáticas dessas narrativas passíveis de serem analisadas com esse método, são: o amor (sexual ou fraterno), inveja, ciúme, raiva, desejo de vingança de riqueza, de beleza dentre outros.

Pode-se seguir esse modelo de análise para interpretar a narrativa da microssérie Amorteamo, focando principalmente nas personagens femininas. A trama de Amorteamo é desenvolvida a partir de dois triângulos amorosos na capital de Pernambuco, Recife, na década de 1920. Há também os tramas paralelos que se desenvolvem de forma simultânea, como os que ocorrem na igreja da cidade, no bar e no prostibulo.

O primeiro triângulo amoroso é formado por Arlinda (Leticia Sabatella) mulher casada que no início da narrativa, vivia como uma senhora de posses, proprietária de um casarão iluminado, conforme fotogramas 01 e 02. O esposo Aragão (Jackson Antunes) tinha um engenho de açúcar prospero. É no cenário do seu quarto de casada com tudo o que havia de mais belo e bom em termos de decoração e cuidados com a beleza, que seu amante Chico (Daniel Oliveira) aparece para seduzi-la. Como que saindo de uma tela à óleo, Aragão aparece cavalgando e adentra o casarão armado, entra no quarto e flagra os dois. Ele mata o amante Chico, e prende a esposa infiel no sótão escuro e empoeirado. Lá acompanhada do espirito do amante descobre que está grávida, e durante os noves meses da gestação tem como companhia o espirito de Chico que só a deixa após Arlinda dá a luz a um menino, e prometer ao marido traído que vai esquecer o amante. Ela coloca o nome do filho de Gabriel, nome do pai do marido, e volta para o quarto do casal. Quando Gabriel (Johnny Massaro) ainda é criança, a família vai ao cemitério para o enterro do padre suicida Lauro, e Gabriel corre entre os túmulos. Ela vai em seguida e acaba encontrando o tumulo do ex amante, de onde canta uma música para o amante, o marido ciumento vê e só não a bate por causa de Gabriel que a defende. Como castigo por não ter esquecido o amante volta para o sótão. Dezoito anos se passam, o casarão já todo deteriorado guarda a esposa triste e maltrapilha, o marido que passa a maior parte do tempo bêbado no prostibulo, o filho Gabriel, um poeta boêmio que tem um amor de infância pela filha da empregada, e que adora ir ao cemitério.

Arlinda, uma mulher infeliz, que a cada dia adoece cada vez mais, piora com uma briga de Aragão e Gabriel. Como Aragão não tem mais recursos financeiros para tratar a esposa, recorre a um agiota Judeu chamado Isaac que tem uma casa de penhores, como não tem nada de valor para colocar como garantia, negocia o casamento entre o filho que nunca trabalhou com a filha de Isac, uma moça depressiva chamada Malvina que possui um fascínio pela morte.

Arlinda vê a angustia do filho que não quer se casar sem amor, já que ele é apaixonado por Lena, filha da empregada com Aragão, que ele pensa ser sua irmã. Então, no dia do casamento Arlinda revela a verdade sobre a paternidade de Gabriel, que não casa, deixa a noiva no altar e foge com Lena. Por esse ato, Aragão abandona a esposa no prostibulo da cidade para ela se prostituir. Seu primeiro e único cliente foi um amigo de Gabriel. Quando ela pensa que chegou no fundo, eis que uma maldição assola a cidade, e os mortos ressurgem com ânsia de vingança. Chico é um desses que aparece para resgatar Arlinda e se vingar de Aragão. Chico induz Arlinda denunciar Aragão por assassinato. Ele é preso, e Chico morto vivo vai viver com Arlinda no casarão, mas como voltou com muito ódio, enferniza Aragão na cadeia que enlouquece. Arlinda percebe a maldade de Chico morto vivo, e retira queixa contra Aragão. Coloca ele no sótão para tratá-lo, mas mesmo assim Chico continua indo lá assombrá-lo, e em um momento de muita raiva por Arlinda não aceita-lo mais, atira contra Aragão. Porém Arlinda fica na frente do esposo enlouquecido e morre.

Fotograma 01: Arlinda e Chico dançam no quarto do casarão

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.

Fotograma 02:Aragão e Arlinda na fase da decadência

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.

A narrativa de Arlinda pode ser analisada pelo método desenvolvido por Greimas do modelo atuacional. “O sujeito-herói” dessa narrativa é a própria personagem de Arlinda que deseja viver o amor com o amante Chico. “O objeto de valor” é a salvação da relação amorosa de Arlinda com Chico. “O oponente” aparece representado por dois personagens: Aragão, marido traído que assassina Chico pois se sentiu ameaçado pelo rival. E a dona do prostibulo Dora, que amava Chico e revelou o caso deles para o marido Aragão. O “adjuvante” ou ajudante é o amor pelo filho Gabriel que a mantém viva durante todo a vida de Arlinda no sótão. “O destinador” é o amante Chico. “O destinatário” é a segunda oportunidade de Arlinda ser feliz com Chico, mas como ele retorna com tanto ódio, o amor não poderá sobreviver, e ela prefere morrer para salvar o marido enlouquecido.

A narrativa de Lena (Arianne Botelho), ver fotogramas 03 e 04, se desenvolve a partir do momento em que Aragão leva uma mãe com uma filha de colo para morar e trabalhar no casarão. Pois Arlinda não tem leite para amamentar Gabriel. Como a mãe de Lena, Zefa (Gheuza Sena) tem muito leite materno, ela amamenta Gabriel. Lena e Gabriel crescem juntos e se apaixonam. A revelação que Lena é filha de Aragão, deixa Lena e Gabriel impossibilitados de levar esse amor adiante. Com o casamento arranjado de Gabriel e Malvina, ela decide deixar a cidade. Arlinda revela ao filho que os dois não são irmãos, então Gabriel desiste do casamento e vai atrás de Lena. Os dois se entregam ao amor, porém no dia seguinte Gabriel descobre que Malvina se suicidou. Enlouquecido de remorso, viola o túmulo de Malvina, que desperta do mundo dos mortos para casar com Gabriel. Nesse período em que Gabriel está confuso, Malvina descobre que foi por Lena que Gabriel desistiu de casar e manda ele escolher, ou salva Lena ou morre para que os dois fiquem juntos. Quando Malvina percebe que nunca terá o amor de Gabriel, se joga novamente da ponte do rio Capibaribe, e assim livres de Malvina morta viva, Gabriel e Lena se casam.

Fotograma 03: Lena ajuda a sua mãe na cozinha do Casarão

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.

Fotograma 04: Lena e Malvina na ponte

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.

A narrativa de Lena pode ser analisada através do modelo atuacional de Greimas, o sujeito-herói é Lena, o objeto de valor é o a amor de Gabriel, nessa jornada ela apenas recebe ajuda da mãe de Gabriel que revela ao filho que os dois não são irmãos. O maior oponente é Malvina, que tentou ficar com Gabriel quando estava viva e morta viva. O destinador é o momento em que Malvina morre pela última vez, deixando Lena e Gabriel livres para se amar e se casar. E finalmente o destinatário, é Gabriel.

Malvina, só aparece no segundo episódio da microssérie. Ver fotogramas 05 e 06. Quando é mostrado que Aragão não tem como arcar com as despesas medicas da esposa. E o advogado dele sugere pedir um empréstimo com Isaac (Isio Guelman) o judeu, comerciante de uma loja de penhores. Como Aragão não tem nenhum imóvel em bom estado para dar como garantia, o advogado fala da filha de Isaac, uma moça estranha, e que poderia se casar com Gabriel. Aragão faz o acordo a Isaac que aceita porque viu que Malvina gostou de Gabriel. Este é receptivo a Malvina. Eles noivam, mas no dia do casamento Gabriel não aparece. Malvina não aguenta tanta dor, e se joga no rio Capibaribe, pois é uma moça depressiva que já tinha tentado o suicídio várias vezes, tem uma obsessão pela morte, porque desde pequena o pai dela fala que a mãe morreu no parto e ela se sente culpada pela morte da mãe. Após Gabriel descobrir o suicídio de Malvina, desespera-se e desenterra o tumulo de Malvina, que desperta do mundo dos mortos com a personalidade má. Ela retorna a casa do pai, e descobre que a mãe não morreu, tudo foi uma encenação. O pai de Malvina a comprou quando ela era um bebe da sua mãe que era uma prostituta de rua.

Malvina, primeiramente assassina o pai, pela mentira e tenta matar a mãe, que é levada ao hospital. Quando Esmeralda (Fabiana Gugli) está se recuperando Malvina entra discute com a mãe e a mata. Malvina tenta se casar com Gabriel, mas o padre foge com medo, então Malvina tenta matar Gabriel para levá-lo, porém Gabriel consegue ser salvo e decide que terá que enterra-la novamente para a maldição acabar. Gabriel e o coveiro (Tonico Pereira) até conseguem enterrá-la mas ela desperta e mata o coveiro e vai atrás de Lena. Malvina pedi para Gabriel escolher entre a vida dele ou a de Lena. Ele decide pela de Lena, é quando ela percebe que Gabriel nunca irá amá-la, ela se joga novamente da ponte. Morre definitivamente, e Gabriel a enterra. O pai de Malvina, Isaac como morto vivo, mostra todo seu amor pela filha no momento da despedida. Assim encerra a maldição e todos os mortos vivos retornam aos seus túmulos.

Fotograma 05: Malvina como morta viva

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.

Fotograma 06: Malvina morta viva tenta se casar com Gabriel na igreja

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.

A narrativa fantástica de Malvina pode ser analisada pelo modelo atuacional de Greimas. Sendo assim, o sujeito-herói é Malvina, apesar dela ser considerada a vilã da microssérie Amorteamo. Ela deseja ser feliz com Gabriel (objeto de valor), nessa jornada ela só tem o amor do pai (advujante). O oponente de Malvina é principalmente Lena, mas Gabriel e o coveiro também são seus opositores. Em busca do amor, ela encontra a morte (destinador) duas vezes, até ela finalmente encontrar a paz (Destinatário).

Outra personagem que também se suicida é Dora (Maria Luísa Mendonça), a dona do prostibulo da cidade, ver figuras 07 e 08. Ela aparece logo no primeiro episódio da microssérie, na cena em que o corpo de Chico boia no rio. Ela juntamente com as outras garotas do prostibulo circulam pela cidade, vão ao enterro do padre Lauro, mas não são aceitas no bar de Cândida. O prostibulo tem apresentações musicais, onde ela recebe os homens poderosos da cidade. Aragão é um frequentador assíduo. Por trás da vestimenta e cabelo extravagante, existe uma mulher melancólica, fria e vingativa. Apaixonada pelo galanteador Chico, revela a Aragão o caso extraconjugal de sua esposa, em uma carta anônima, logo ela também é culpada pela morte de Chico. Ela aceita Arlinda no prostibulo e a manipula para a se prostituir.

Quando Chico retorna a vida como morto vivo, ele visita o prostibulo, é então que percebemos todo amor e ódio que ela sente por ele. A dor maior de Dora foi descobrir que sua melhor amiga Maria (Lívia Falcão) também se relaciona com Chico. Em um momento de muita tristeza e decepção se suicida na frente da amiga.

Fotograma07: Dora no seu prostibulo

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.

Fotograma 08: Dora lamenta por não ter ninguém que vá sofrer a sua morte


Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.

Segundo o modelo atuacional de Greimas, na narrativa de Dora, ela é o sujeito, a protagonista da sua história que tem como objeto o amor de Chico, a sua maior oponente é Arlinda. A sua adjuvante é Maria, sua melhor amiga até o dia em que ela descobre a traição. Ela chama a morte (destinador), e o destinatário seria a sua ilusória fuga do mundo de sofrimentos.

A última personagem a ser analisada é Cândida (Guta Stresser), ver fotogramas 09 e 10. Cândida é a dona do bar, onde Gabriel bebe com os amigos, e o padre Joaquim (Gustavo Falcão) frequenta somente para beber água.

Cândida é a fofoqueira da cidade. Ela frequenta todos os eventos sociais, de casamentos a velórios. Foi ela quem fez a denúncia de corrupção do padre Lauro (Gilray Coutinho) que acabou se suicidando no sino da igreja. Quando os mortos retornam a vida. O seu falecido marido Jeremias (Bruno Garcia) volta em busca da esposa, do bar e da peruca. O irmão de Jeremias, Manoel (Aramis Trindade) casou com a cunhada, tomou posse do bar e da peruca.

O conflito se instala, Cândida fica balançada e propõe ficar casada com os dois. O clima de ciúmes entre os irmãos foi apaziguado pelo chamamento dos mortos vivos, logo após Malvina ser enterrada no cemitério, uma voz chama todos para retornar. Cândida se despede amorosamente do seu primeiro marido e volta para o segundo marido que era o seu cunhado.

Fotograma 09:Cândida e Manoel ao descobrir que Malvina estava morta

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda.

Fotograma 10: Cândida na dúvida entre os dois maridos: Jeremias ou Manoel

Fonte: A microssérie Amorteamo, 2015, dir. Flávia Lacerda

Interpretando a narrativa de Cândida com o modelo atuacional de Greimas, percebe-se o sujeito como Cândida, o objeto é ser feliz no amor não importando com qual dos irmãos. O Adjuvante na narrativa de Cândida é o seu marido Manoel, que está junto dela em todas as situações, inclusive atendendo ao pedido do padre Joaquim para ver as assombrações na igreja. Não foi identificado nenhum oponente humano a felicidade no amor de Cândida, logo a sua principal barreira pode ser a dúvida de qual irmão escolher. O destinador é o marido Manoel, e o destinatário é o casamento feliz e a parceria no bar.

6. Considerações Finais

A microssérie Amorteamo (2015) foi inspirada na obra Assombrações do Recife Antigo, de Gilberto Freyre. Principalmente no que diz respeito a convivência dos seres espirituais com os seres vivos do mundo material. Essa informação sobrenatural é o que caracteriza a narrativa fantástica maravilhosa.

A hesitação está presente na microssérie. Somos indagados o tempo todo sobre as leis que regem essa narrativa. Principalmente quando mostra cenas do espirito de Chico ajudando Arlinda presa no sótão. Partilhamos da experiência do sobrenatural com os personagens.

O folclorista russo Propp foi de fundamental importância para os estudos dos contos maravilhosos, ele alicerçou as pesquisas principalmente sobre as funções dos personagens para pesquisadores como Greimas que nos forneceu um modelo de análise para interpretar não somente as narrativas míticas. Tornando possível entender os atuantes como herói, opositor, adjuvante, objeto de desejo, destinador e destinatário.

Selecionamos cinco personagens femininas de Amorteamo para interpretar de acordo com o modelo atuacional de Greimas. Dessas cinco personagens, percebemos similitudes principalmente no objeto de desejo que é o amor. Todas as personagens querem se realizar no amor, mas somente duas conseguem, Lena e Cândida.

Lena, a heroína da microssérie, sofreu os cincos episódios por Gabriel, só encontrando a felicidade no desfecho da microssérie com o casamento. Na cena final, é colocado uma dúvida no telespectador quando mostra cenas do casamento de Arlinda e Aragão, eles casaram por amor também. Mas a trajetória de vida desse casal teve mais oponentes que apoiadores, então o objeto do desejo se modificou.

Malvina a anti-heroína de Amorteamo, tem na sua narrativa vários aspectos que poderíamos considera-la como uma heroína, porém ela foi a oponente ao amor de Gabriel e Lena que desencadeou o estado de desequilíbrio da narrativa. A morte está presente em todas as narrativas femininas. O Amor e a morte podem ser consideradas duas forças antagônicas na microssérie Amorteamo. O amor como adjuvante dessas personagens e a morte como principal oponente.


1 Mestra e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4357183A8 e email: carlasouza@supercabo.com.br

2 Martin-Barbeiro (2009) nos explica que o melodrama surgiu em 1790 na França e na Inglaterra como um espetáculo popular que se assemelhava ao teatro. É um tipo de espetáculo encenado em feiras e com narrativas cujas temáticas vêm da literatura oral onde prevalece os contos de medo, mistério e terror.

5 Antti Aarne é um dos fundadores da escola finlandesa. Ele elaborou uma lista de contos observando um elenco de enredos. Essa lista teve circulação internacional, e contribuiu para o estudo do conto maravilhoso, tornando possível numerar os contos.

6 E. Souriau é o autor da obra 200 000 Situations Dramatiques, onde formulou o catálogo das funções dramáticas.


Referências Bibliográficas

BALOGH, Anna Maria. Conjunções, disjunções, transmutações: Da literatura ao cinema e à TV. São Paulo: Annablume: ECA-USP,1996.

__________Anna Maria. Minisséries: La créme de la créme da ficção na tv. Disponível em: http://www.usp.be/revistausp/61/09=annamaria.pdf Acesso em: 07/06/2013

FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho: Algumas notas históricas e outras tantas folclóricas em torno do sobrenatural no passado recifense. Prefácio de Newton Moreno; bibliografia de Edson Nery da Fonseca.6ed.São Paulo: Global,2008.

GREIMAS, A.J. Semântica estrutural. São Paulo: Cultrix & Edusp,1976.

MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia.6ed.Rio de Janeiro: Editora UFRJ,2009

PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária,1984.

TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva,2006.