segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Central do Brasil

 

Anderson Figueredo


Uma orquestração densa, uma melodia melancólica e um piano determinado são prenúncios de uma obra delicada, emotiva e, ao mesmo tempo, grandiosa deixados pelos compositores Antônio Pinto e Jaques Morelenbaum na trilha sonora de Central do Brasil. Logo ao sermos introduzidos às cartas e histórias dos personagens coadjuvantes no início do longa dirigido por Walter Salles, a música e a fotografia já nos deixam a par de que estamos diante de um grande clássico do cinema brasileiro.

E há jeito melhor do que começar uma história sobre família do que com relatos sobre entes queridos que não só estão separados pela distância, mas também pelo analfabetismo, pobreza e impossibilidade de comunicação à distância? Fernanda Montenegro em sua brilhante e premiada performance nos confirma que possivelmente não. Sua personagem, Dora, nos mostra o quanto a ausência da família e a necessidade de carinho pode criar uma pessoa dual que demonstra apatia, mas que no fundo é extremamente humana e empática.

É a partir dessa empatia que somos levados à história de Josué (Vinícius de Oliveira) e sua aventura junto à Dora em busca de seu pai no nordeste após a morte de sua mãe próximo à estação Central do Brasil no Rio de Janeiro. Dora é uma ex-professora que trabalha na estação escrevendo cartas para pessoas analfabetas com a promessa de enviá-las para os familiares desejados, o que nem sempre acontece. Em um desses trabalhos ela conhece Josué que termina abandonado na estação e com a necessidade de conhecer o pai, missão assumida por Dora após muita relutância e tentativa de apatia.

Durante a viagem, ao mesmo tempo que delicadamente o roteiro nos mostra um desenvolvimento bastante coeso, emotivo e até divertido da relação entre os protagonistas, o roteiro e a direção escolhem nos mostrar a possibilidade de criação de fortes laços afetivos entre pessoas desconhecidas que provavelmente nunca mais se encontrarão na vida de novo e quão importantes eles ainda podem ser apesar de curtos. Essa é com certeza a mensagem principal deixada pelo filme para os espectadores.

Durante esse desenvolvimento, é interessante notar marcas da transição do cinema, a partir da fotografia da obra. Na primeira metade do filme, é possível remetermos esteticamente aos filmes do início dos anos 2000 no fim do Cinema da retomada como os filmes chamados de "filmes de favela" como "Cidade de Deus" de Fernando Meirelles e Kátia Lund através dos cenários da urbanização. Do meio para o final de Central do Brasil, por sua vez, somos levados a uma atmosfera semelhante às dos filmes do Cinema novo, como o "Santo Guerreiro contra o dragão da maldade" do Glauber Rocha a partir das paisagens do sertão nordestino, ainda que se trabalhe com estereótipos como a iluminação quente.

Todas essas características denotam uma obra singular que merece o nível de reconhecimento que tem. Os pontos negativos se apagam perante a beleza narrativa, visual, musical e de interpretações presentes nesta obra de 1998.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Operação plástica


Giovana Gurgel de Góis

Sob direção e roteiro de Carito Cavalcanti, o curta-metragem natalense “Operação plástica com Flávio Freitas”, mostra o artista que leva o nome do título em seu ofício diário: Ser um grande pintor e desenhista. O guitarrista Edu Gomez é o responsável pela trilha sonora, que me atrevo a opinar como interessante, até porque Flávio também a compõe, no trompete . Um detalhe bacana da história por trás da produção do curta deve-se ao fato de que o próprio Flávio convidou Carito para filmar, segundo matéria publicada sobre o tema no site do jornal Tribuna do Norte, as palavras dele foram: "um documentário pode funcionar muito bem com um recorte", e a partir daí, ideias começaram a ser anotadas no papel. O "timing" da filmagem + créditos são de exatos 10:51, tempo excelente que conseguiu passar muito bem o que eles pretendiam: mostrar um dia de trabalho de Flávio em seu ateliê no bairro da Ribeira, Natal/RN. 

A primeira imagem do curta é do fusca dirigido por Flávio, que possui um adesivo de lagarto ou algum animal parecido. Depois desse fato, o segundo elemento que notei foi a película/filtro utilizado na lente para que a cor da filmagem se modificasse, chegando a um tom meio amarelado claro, dourado… O começo acabou desenrolando de forma bastante ligeira, geralmente não aprecio tantos cortes. Contando dos primeiros momentos, onde aparece o carro, até a cena dos 0:11 segundos, onde o veículo já anda pelas ruas, são totais 13 cortes. São rápidos, práticos de certa maneira, essa parte não me agradou tanto, os considero necessários em apenas alguns casos "de vida ou morte", aqui fala uma fã de plano sequência. As cenas seguintes ocorrem de maneira bem dinâmicas, precisa estar atento para não perder nenhum detalhe, cheguei a verificar se não havia colocado em uma velocidade de reprodução mais acelerada. 

O sequencial é bastante interessante de se assistir, mostra um passo a passo minucioso da rotina dele, é como se estivéssemos, também pela maneira em que se posiciona a câmera, junto presencialmente com a estrela potiguar durante esse período. O curta foi lançado em janeiro de 2012, me entristece imaginar que hoje poderia ser considerado por muitos um simples "vlog" de 24h, devido a pobre cultura do YouTube, presente nos dias atuais, coisa que ainda tomava os primeiros passos no ano que houve o lançamento. Provavelmente se fosse lançado nos dias de hoje, não teria sido reconhecido e não teria recebido os muitos prêmios que ganhou, como o Troféu Cultura 2012 como melhor audiovisual de 2011 do RN.

O curta do Praieira Filmes mostra de perto o processo de criação das obras de Flávio, ele está à vontade durante o tempo filmado, bem confortável. Em alguns trechos, que predominam o bom e velho preto e branco, são escritas na tela frases que pertencem a sua autoria, uma delas é: "Na minha vida de poucos anos, uma coisa que eu aprendi é que a disciplina é a mãe de todas as coisas boas. Eu não consigo ver a minha vida sem ser produtiva, realizadora, sem ter a coragem, um processo disciplinado". Todas as vezes em que Flávio fala, fica preto e branco, recurso bem pensado que deu um toque especial à obra. A proposta intimista se mostra presente 100% do tempo, todos os espectadores são "de casa". Uma das minhas partes preferidas é quando o artista pinta na tampa do sanitário "passagem secreta para o Rio Potengi", famoso rio da cidade, considerei de uma criatividade e irreverência tamanhas. 

É conjuntamente bem pensada a cena que ocorre em 5:06 onde o pintor olha através do espelho a câmera, enquanto trabalha em um desenho, gerando um recorte de grande sensibilidade. E por falar nela, sensibilidade não falta na mente de Flávio, que constrói um novo mundo particular cada vez que começa uma nova pintura. O curta também mostra detalhes sobre o ateliê, não apenas sua estrutura, mas consoante a isso explica detalhes da fundação, como por exemplo, quando o artista tomou a iniciativa de montá-lo, "é a realização de um sonho" - explica no filme. 

Perto do cabo da filmagem, vê-se cenas do fim da tarde, cortes belíssimos de muito bom gosto que mostram ruas da Ribeira e outras paisagens da mais encantadora capital do Brasil, a potiguar. Com toda certeza é um curta-metragem que merece destaque não somente pelos filhos do Rio Grande do Norte, mas também por todos aqueles que são pertencentes ao Brasil como um todo. É realmente um panorama interessante.