sábado, 31 de outubro de 2020

Como estudar teleséries

 

Metodologia para narrativas audiovisuais

Marcelo Bolshaw Gomes1

  1. O percurso greimasiano

Geralmente apresenta-se Greimas como um teórico estruturalista que superou o estruturalismo, mas isso não é inteiramente verdade. Seu livro mais importante, Semântica estrutural (1973), pode ser lido de modo linguístico estruturalista, como um conjunto de regras para analisar a linguagem como narrativa. E os livros posteriores Semiótica das paixões (1993) e Da Imperfeição (2002) tratam de compreender as emoções e os efeitos de sentido do receptor e não mais da análise linguística das narrativas.

Porém, não há um corte epistemológico, uma ruptura entre duas formas distintas de pensar, e sim uma evolução dos conceitos. Na Semântica Estrutural, Greimas já considera as raízes psicológicas da linguagem e, nos últimos livros, ele não abandona inteiramente sua perspectiva estrutural e linguística.

A Semiótica das Paixões (1993) acredita que as emoções são o resultado de um jogo entre as modalidades do querer ser, do dever ser, do saber ser e do poder ser. Uma paixão/ação é fruto de arranjos modais entre esses quatro actantes (e não dos actantes-personagens da Semântica Estrutural). Por um lado, Greimas passa a se referenciar em sua própria narrativa; por outro, os efeitos de sentido passionais continuam sendo construções de linguagem derivadas de arranjos nodais provisórios.

Da imperfeição (2002) é um livro que lembra, em vários aspectos, Fragmentos do Discurso Amoroso (1981), último livro de Roland Barthes. A semelhança não reside apenas na passagem do estilo teórico estruturalista para uma abordagem mais artística, voltada para a análise literária e para as próprias percepções emocionais, mas, sobretudo, porque os textos extrapolam a experiência estética em busca de um sentido ético para a vida. São textos meta literários que discutem o impacto do narrado sobre o vivido.

Porém, em nenhum momento Greimas rompeu explicitamente com seu passado (como Barthes fez em sua aula inaugural no College de France2) e com o método narrativo elaborado na Semântica Estrutural. Para Greimas, a semiótica é a teoria da significação. Seu objeto são os sistemas semióticos narrativos (escritos, plásticos, musicais) e não os signos em si. A unidade mínima da linguagem também não é o signo, nem o discurso, mas o texto – seja ele escrito, visual ou sonoro. Os sistemas semióticos se constituem a partir de condições de enunciação (tecnologias do emissor) e das possibilidades linguísticas de enunciação (a linguagem e os pactos de sua leitura). Vistos do lado de dentro da narrativa, o sujeito da enunciação (o “alguém que diz”) e o sujeito enunciatário (para quem se fala) são equivalentes às categorias de ‘autor ideal’ e ‘leitor ideal’ elaboradas por Umberto Eco para traçar o limites entre a Interpretação e a Superinterpretação (1993)3. Apesar do reconhecer a importância da interpretação final do receptor, Eco destaca o peso das circunstâncias de enunciação e leitura e leva em conta o contexto do enunciador (ou as circunstâncias sócio históricas de transmissão e distribuição do discurso e os ‘pactos de leitura’ (os diferentes contextos de recepção). As estratégias de leitura textual (o autor modelo e os leitores modelos) seriam os limites da interpretação legítima. Enquanto, a semiose ilimitada absoluta endossa projeções indevidas, ‘usos’ arbitrários e ‘super-interpretações’.

  1. Breve história do sistema narrativo da TV

Há várias forma de contar a história da televisão. A maioria se perde entre fatos técnicos e eventos transmitidos. Entre as teorias sobre rupturas e marcos na história da TV, Eliseo Verón (2003, p. 15) cita duas, que considera mais relevantes: a semiótica (que trata da linguagem) e a tecnológica-industrial.

A Semiótica de Umberto Eco divide o desenvolvimento da linguagem televisiva em dois períodos distintos: a paleo-TV – em que o veículo falava do mundo objetivo, ao vivo, separando a informação da ficção/opinião; e a neo-TV, em que a televisão fala sempre de si mesma, misturando referências reais e simbólicas de múltiplos modos. A primeira fase é caracterizada pelo “olho no olho” (o apresentador garante a verdade da enunciação olhando dentro da câmera); a segunda, pelo olhar vago e descentrado dos entrevistados, pela narrativa ‘em off’, pelo desaparecimento do apresentador e do repórter ou, ao contrário, pela sua integração dentro de espaços ficcionais e/ou publicitários. Todos tornam-se personagens da narrativa televisiva, duplos ou fantoches icônicos das instituições e grupos sociais.

Classificação semelhante é sustentada por Casseti e Odin (VÉRON, 2003, p. 19), em que há uma fase “de massa” ou “pedagógica” (onde a TV é uma grande sala de aula) e uma segunda fase mais individualista (que coincidiu com o advento da TV a cabo no Primeiro Mundo), marcada pelo início da segmentação da audiência e pela interatividade do público, antecipando assim a Internet.

Assim, enquanto Eco analisa mais a mudança na linguagem do veículo, Casseti e Odin estudam as mudanças tecnológicas e mercadológicas da televisão. As duas abordagens não são excludentes e até se explicam. Além de proceder esta síntese, Verón apresenta ainda uma outra classificação mais abrangente, com três fases ao invés de duas (VERÓN, 2003, p. 22). De 1950 aos anos 70, a TV seria “uma janela para o mundo”, isto é, um enquadramento do contexto sócio institucional extra televisivo. O enunciador seria um mero ventríloquo, o interpretante seria o “Estado-Nação” ou o País. No Brasil, esse período corresponde à era da TV ao vivo, anterior à gravação em Vídeo. Nos anos 80, segundo Verón, a TV tornou-se a própria instituição interpretante e o videoclipe passou a ser sua unidade retórica. A televisão não espelha mais a realidade, recorrendo a cientistas para falar de ciência, a políticos para falar de política ou a artistas para falar de arte; o apresentador fala direta e legitimamente de tudo e a TV não é mais uma ‘janela’, mas sim um espaço de montagem de discursos. Verón (2003, p. 25) identifica ainda uma terceira fase, a partir da metade dos anos 90, caracterizada pelos reality-shows.

Tabela 1 – História da TV

LINGUAGEM

TECNOLOGIA

ANOS

JANELA DO MUNDO AO VIVO

Auge da TV de sinal aberto

1950

Surge o vídeo

60

MEIO-MENSAGEM, OBJETO-PRESENÇA DO SIMBÓLICO NO COTIDIANO

Transistor substitui a válvula

70

Transmissões via satélite e a cores

80

SEGMENTAÇÃO INTERATIVA

TV a cabo (fibra ótica)

90

TV digital (o microchip)

2000

Convergência com telefonia (microondas)

2010

Os anos 50 foram os ‘anos de ouro’ da televisão nos EUA. A TV, totalmente ao vivo, transmitia desde concertos de música, peça de teatro de Shakespeare, eventos esportivos e telejornais em tempo real. Aqui, a TV Tupi procurava reproduzir o ‘glamour’ das três principais redes americanas (ABC, CBS e NBS). O aparecimento das gravações em vídeo barateou bastante os custos de produção de TV, mas também fez com que houvesse uma grande queda no padrão de qualidade do conteúdo transmitido. No Primeiro Mundo, essa mudança da primeira para segunda fase de desenvolvimento da TV corresponde à TV a cabo e à segmentação do mercado consumidor; mas no Brasil, a mudança corresponde à progressiva hegemonia do “padrão Globo de produção” e a programação nacional colorida difundida em rede via satélite (o programa Fantástico, o show da vida, misturando informação e entretenimento, pode ser considerado o carro-chefe dessa estética, de auto referência institucional). Aqui, a terceira fase é que corresponde ao aparecimento dos canais fechados de TV a cabo e a diminuição drástica do nível cultural da programação de sinal aberto, ao aparecimento de novos ‘programas populares’ (ao vivo, de auditório, com cenas policiais voltadas para as classes C e D). Os anos 80 foram ‘uma década perdida’ para o desenvolvimento tecnológico da televisão4.

Há também várias formas de caracterizar o momento atual do desenvolvimento da televisão. O microchip e as micro-ondas aumentando a mobilidade dos meios. As telas LED/Cristal líquido miniaturizando os monitores. Veron enfatiza a linguagem dos ‘reality-shows’; Mitchell (2012, 2015), a cultura de séries; Jenkins (2009), a cultura participativa do público e a narrativas transmídias distribuídas em várias plataformas. Há várias características diferenciais e diferentes formas de descrevê-las. Mas, além das análises centradas na linguagem do discurso audiovisual e na história dos suportes tecnológicos, há também aspectos mais importantes a considerar para caracterizar esse terceiro momento da televisão: a segmentação e a interatividade.

A ideia da TV como uma mídia manipuladora e alienante foi um obstáculo para sua análise discursiva e narrativa como produto cultural. A televisão só passou a ser vista como ‘arte’ pela academia nos anos 80. Em 1987, Sara Ruth Kosloff (1992) apresenta uma abordagem estruturalista específica para análise da televisão, fundamentada nos pensamentos de Tzvetan Todorov, Roland Barthes e outros. A maioria dos estudos, no entanto, aplica à TV, os mesmos procedimentos analíticos utilizados nas narrativas cinematográficas (GAUDREAULT, 2017).

O folhetim, o rádio novelas, as histórias em quadrinhos e os seriados da televisão serializam as narrativas ficcionais. A serialidade é a fragmentação e a descontinuidade da linguagem, gerando rotinas discursivas através da repetição e da acumulação gradativa de elementos narrativos (CALEBRESE, 1987).

A linguagem da TV consolida o conteúdo serializado através de blocos, episódios e temporadas que são dispostos ao longo de dias, semanas e até anos.

O sistema narrativo da televisão incorpora os parâmetros dos sistemas narrativos teatral (cenográfico, figurino, dramaturgia), literário (roteiro, diálogos, narrador em off, legendas), cinematográfico (a fotografia, o enquadramento, a sonoplastia, a edição de imagens e seus efeitos) e radiofônico (a serialização em módulos, episódios e temporadas ao longo do tempo; e o tempo simultâneo ‘ao vivo’). As narrativas ficcionais eram literárias e teatrais no século XIX e se tornaram cinematográficas no século XX. O leitor e o espectador presencial do teatro foram substituídos pelo público consumidor de imagens técnicas – em vários contextos de recepção diferentes no espaço tempo.

O sistema narrativo da televisão assimilou os sistemas narrativos da literatura, teatro e cinema gerando um novo modelo narrativo, que está, durante o século XXI, sendo reinventado pelas redes e dispositivos móveis. As narrativas audiovisuais de ficção assimilaram as antigas estruturas e estão absorvendo as novas, reformulando-as em uma constante transformação, é a chamada ‘ecologia das mídias’.

Com a convergência (tecnológica e empresarial) das mídias, o sistema narrativo audiovisual em série transbordou as fronteiras da televisão, escorrendo pelos computadores e dispositivos móveis de telefonia.

  1. Cultura de séries

Porém, antes mesmo de desenvolvermos ferramentas analíticas específicas para o sistema narrativo da TV, o videogame e a internet tornam as narrativas audiovisuais ficcionais, além de seriadas e instantâneas, também interativas e segmentadas. Surgem novos modos narrativos: a complexidade narrativa de Mittell (2012; 2015) e a narrativa transmídia de Jenkins (2009).

Mittell associa a fusão dos formatos seriado e capitular à noção de complexidade narrativa, identificando-a como uma poética da narrativa televisiva. Jenkins vê a serialidade da TV como base da transmidiação, em que uma narrativa é distribuída em diferentes plataformas de forma desigual e combinada.

O consumo de narrativas audiovisuais de ficção seriada, produzido para televisão; é consumido fora da televisão (via DVDs, arquivos digitais ou streaming). Surgem também novas práticas culturais, como os fenômenos do bing-watching (prática de assistir a vários episódios de um mesmo programa, através de plataformas como o Netflix e/ou arquivos baixados pela internet) e do social TV (uso simultâneo da internet e da televisão pelos telespectadores, a experiência da ‘segunda tela’ e da utilização combinada dos hemisférios cerebrais)5.

Com a convergência das mídias; a televisão, o telefone e o computador se interligam através da internet das coisas. Embora a radiodifusão e a telefonia permaneçam distintas como negócios, vários ‘objetos inteligentes’ já superam essas barreiras tecnológicas. Trata-se agora de assistir as séries de ficção televisiva em canais fechados, plataformas como a Netflix e arquivos digitais. A TV aberta Broadcast como modelo de negócios já acabou (resta apenas a ferramenta de manipulação de massas), mas sua linguagem permanece viva como produto cultural artístico.

Existe quem acredita que ainda é muito cedo para decretar o fim da televisão. Argumenta que o velho modelo broadcast continua sendo hegemônico internacionalmente e que a segmentação interativa atendem mais ao desejo de auto representação das elites do que à democratizar a informação ao conjunto da população.

Mas não se discute o empoderamento do receptor nem a transformação da máquina hipnótica em um oráculo cognitivo – pois isso são sonhos.

Silva (2014) discute a existência de uma cultura das séries, a partir de três condições centrais: a sofisticação das formas narrativas, o contexto tecnológico que permite uma ampla circulação digital (online ou não) e os novos modos de consumo, participação e crítica textual. Com isso, as séries fomentam interesses que não se restringem ao envolvimento de comunidades de fãs com obras específicas, mas também indicam a formação de um repertório histórico em torno desses programas, de uma telefilia transnacional, de uma cultura das séries.

Figura 1: Diagrama de vetores dos elementos constituintes de uma cultura das séries.

Fonte: SILVA, 2017.

A nova ‘cultura de séries’ traz também uma nova geração de estudos sobre a televisão, não mais centrados no contexto social (como a Escola de Frankfurt e o funcionalismo) ou na linguagem (como o estruturalismo), mas sim nos contextos de recepção da TV. Por exemplo, nas classificações antigas, as narrativas de ficção seriada se subdividiam em novelas (de capítulos), seriados (de episódios) e teledrama (narrativas completas sobre um único tema). Com a fusão dos gêneros e a mudança da perspectiva para a recepção, as narrativas passaram a ser classificadas em: séries imóveis (ou fechadas - com começo, meio e fim predeterminados); e séries móveis, abertas ou evolutivas (ESQUENAZI, 2011, p. 93).

Dentre os subtipos mais comuns, destacamos o Sitcom (comédias de situação, baseadas na comicidade da personalidade de seus protagonistas), a Soap Opera (gênero em que não há um desenvolvimento real da narrativa, cada resolução de arco é sempre provisória como a vida) e as séries nodais (em que há estrutura interna de longo prazo encadeada com os episódios para montagem de uma narrativa complexa).

  1. Semiótica Narrativa

A metodologia para leitura de narrativas audiovisuais em série tem três momentos distintos: descrição, análise e interpretação. Para descrever a narrativa, sugerimos algumas categorias narrativas simples: enredo principal (e subenredos); narrador; espaço-tempo; ambiente; e personagens. Espera-se que, descrita através dessas categorias, o leitor possa entender a narrativa sem ter a assistido.

Há, em seguida, três níveis de análise: a linguística, a discursiva e a narrativa – que detalhamos adiante.

E, finalmente, há ainda a interpretação, em que se discute os elementos psicológicos universais da narrativa e se define sua mensagem simbólica, a chamada “moral da história”.

Tabela 1 – Descrição, análise e interpretação de narrativas

CATEGORIAS DESCRITIVAS

NÍVEIS DE ANÁLISE

INTERPRETAÇÃO

Enredo

Linguística – Semiótica (Texto, imagens, sons)

QUADRADO SEMIÓTICO NARRATIVO polarização dos elementos simbólicos

Narrador

Espaço Tempo

Análise Discursiva de conteúdo

Ambiente

Personagens

Análise Narrativa (Gênero, tipo, comparações narrativas)

Mensagem

Ferdinand Saussure, criador da linguística e do estruturalismo, estabeleceu o Signo como unidade mínima da linguagem e o subdividiu em dois aspectos indissociáveis: o Significante ou aspecto material (uma “imagem acústica”); e Significado ou aspecto mental (a ideia abstrata que o signo representa).

Enquanto Saussure elaborou uma linguística voltada para o estudo oral do idioma, Hjelmslev e a escola glossemática criaram uma linguística estruturalista voltada para o idioma escrito e duplicaram a dicotomia do signo em quatro níveis:

  1. Forma de Expressão (palavras, sons, imagens);

  2. Substância de Expressão (cores, notas musicais, sabores);

  3. Forma de Conteúdo (conceitos e enunciados); e

  4. Substância de Conteúdo (símbolos, universais do imaginários).

Tabela 2 – Saussure e Hjelmslev

SAUSSURE

GLOSSEMÁTICA

SIGNO

SIGNIFICANTE

Imagem acústica

Forma de Expressão

Ordem de elementos

Substância de Expressão

Morfemas elementos

SIGNIFICADO

Ideia abstrata

Forma de Conteúdo

Ordem estrutural

Substância de Conteúdo

Conceito puro

Para Greimas, todo texto pode ser analisado como uma narrativa. Por exemplo: o médico lê os sintomas de seu paciente (no plano das formas de expressão) extraindo daí um diagnóstico (no plano do conteúdo de substância) de sua enfermidade. Os sintomas são os significantes e o diagnóstico é o significado. Todo sistema semiótico narrativo é formado por uma semântica (estudo dos significados) e por uma sintaxe (estudo das relações estruturais entre os significantes).

Há, portanto, três estruturas sobrepostas: a estrutura linguística de superfície (as formas e as substâncias de expressão), a estrutura discursiva intermediária (as formas de conteúdo, os enunciados e conceitos); e a estrutura narrativa de profundidade (a substância de conteúdo, o simbólico, os universais do imaginário).

Figura 1 – Estruturas linguísticas por Greimas

Assim, a linguagem (ou a estrutura linguística de superfície) é: a) sincrônica e imediata, sendo explicada pela b) análise discursiva no plano das formas de conteúdo (pelos enunciados diacrônicos e lineares do pensamento) e c) pela análise da estrutura narrativa de profundidade, o arranjo dos elementos universais e inconscientes (que voltam a ser simultâneos).

Greimas afirma que o nível discursivo é uma enunciação do nível narrativo. E que, ainda no plano de conteúdo, as estruturas narrativas são anteriores e mais abrangentes do que as estruturas discursivas de um texto. No plano da expressão, os conteúdos narrativo e discursivo são manifestos tanto de forma verbal como de forma não verbal. O plano de conteúdo é mental, metalinguístico e representa a significação semântica em si; o plano da expressão é material, linguístico e formado por imagens, sons e palavras, em “estruturas de superfície”.

Greimas usa o modelo da glossemática para estudar narrativas.

Tabela 3 – Níveis de Análise Narrativa


DESCRIÇÃO

ANÁLISE

INTERPRETAÇÃO

SAUSSURE

SIGNO

SIGNIFICADO

SIGNIFICANTES

SIMBOLO

GLOSSEMÁTICA

Forma de expressão

Forma do Substância

Expressão do Conteúdo

Substância de conteúdo

GREIMAS

Análise linguistica

Análise discursiva

Análise narrativa

Quadrado semiótico

LEITURA CRÍTICA AUDIOVISUAL

Som, imagem, texto, tempo, sequências

Contexto sócio histórico de enunciação e a mensagem oculta

Comparação dos contextos socioculturais de recepção

Elementos Psicológicos, Universais do Imaginário, Sonhos

Segundo Greimas, a forma de expressão é a linguagem superficial, imediata, como a percebemos através dos sentidos. Ela é composta com palavras, imagens, sons, signos materiais. Já a substância de expressão é o significado imediato, temático, do conteúdo de cada signo: o que foi dito e onde/quando foi dito. A linguagem transforma-se em discurso, um conjunto de enunciados.

Os sintomas-significantes ‘seios inchados e doloridos, atraso na menstruação, enjoos, alterações no paladar’ no plano da forma de expressão nos leva a enunciar o diagnóstico-significado de ‘gravidez’ no plano da substância de expressão. 

A forma de conteúdo, por sua vez, implica em se observar o contexto de enunciação e os diversos contextos de recepção (os diferentes pactos de leitura da narrativa), fazendo assim uma crítica ideológica da narrativa. A forma de conteúdo também pode ser compreendida como uma crítica estética, destacando como a narrativa se coloca em relação a ouras narrativas semelhantes em gênero ou tipo, sê assimila enredos de outras estórias ou se traz elementos novos.

Para Greimas, nas narrativas no nível das formas de conteúdo, alguém (O SUJEITO) deseja alcançar algo (O OBJETO DE VALOR) e é atrapalhado por algo/alguém (O ANTI SUJEITO). Este modelo simples permite entender o gênero (que tipo de objeto de valor) e a ideologia (a identidade do anti sujeito) da narrativa. No caso da gravidez, o diagnóstico da substância de expressão: a mãe é o actante sujeito; a futura criança, o objeto de valor; e o anti sujeito, define o tipo de narrativa: gravidez de risco, gravidez indesejada, gravidez constrangedora.

E, finalmente, a substância de conteúdo se refere aos elementos simbólicos e psicológicos da narrativa, aos ‘universais do imaginário’, que combinados de diferentes modos formam a “mensagem” da narrativa. Greimas sugere a organização desses elementos em pares, representando os conflitos, relações complementares e contrapontos da narrativa, em modelo chamado de Quadrado Semiótico Narrativo.

Este modelo consiste em definir quatro actantes e organizá-los em seis pares de opostos: duas relações de contradição; duas relações de contrariedade; e duas relações de complementaridade – entre os quatro elementos simbólicos principais da narrativa. Essas estruturas profundas seriam lógicas e acrônicas, formadas por relações de contradição, oposição e contraponto (o quadrado semiótico).

  1. O Quadrado dos Actantes

E a esse conjunto de relações podem ser representados no esquema gráfico proposto por Greimas.

Figura 2 – Estrutura narrativa do inconsciente profundo



S1 - Sujeito: persegue o objeto

S2 - Ajudante: actante que dará auxílio

~S2 – Anti Sujeito: actante que cria obstáculos

~S1 - Objeto de valor: elemento central (desejo)

Destinador: remetente

Destinatário: quem recebe o objeto

Exemplo de Greimas (1973, p.): A Branca de Neve (sujeito) deseja ser feliz (objeto de valor) é ajudada pelos 7 anões (ajudantes) atrapalhada pela bruxa (anti sujeito) encontra o príncipe (destinador) e casa-se com ele (casamento/receptor).

O Quadrado Semiótico Narrativo de Greimas consiste na representação visual da articulação lógica de uma qualquer categoria semântica no plano de conteúdo. Nele, se situam os actantes: o Herói (S1), a Sociedade (S2), seu Ajudante (~S1) e seu Adversário (~S2). As linhas bidirecionais contínuas representam as relações de contradição; as bidirecionais tracejadas, as relações de contrariedade; e as linhas unidirecionais, as relações de complementaridade.

O próprio Greimas modificou os actantes do diagrama do quadrado narrativo na Semiótica das Paixões e em Da Imperfeição, indicando a necessidade de adaptação criativa de seu modelo. Na verdade, vários arranjos são possíveis, incluindo ou excluindo elementos simbólicos diferentes segundo as histórias e deve-se estar aberto para aprender a aperfeiçoar os conceitos com as narrativas novas, ao invés, de querer aplicar modelos analíticos de regras de forma inflexível.

Na presente perspectiva, o Herói da narrativa corresponde ao Ego projetado pelo narrador com o qual o leitor se identifica. E o Adversário corresponde à sombra psicológica, à carga de negatividade utilizada na estória. O Ajudante é composto por vários alter egos masculino (o Animus), o melhor amigo do protagonista; e a Sociedade pode ser substituída pelo Self, o Narrador/leitor ou ainda pelo Sagrado Feminino (ou a Anima) – que geralmente desempenhando o papel de 'par romântico'.

Tabela 4 – Quadrado Semiótico Narrativo

Posição

Elementos narrativos

RELAÇÕES DE CONFLITO

S1/~S2

Protagonista x Antagonista

S2/~S1

Narrador x Sagrado Feminino

RELAÇÕES DE OPOSIÇÃO

S1/S2

Protagonista e Narrador

~S1/~S2

Sagrado Feminino e Antagonista

RELAÇÕES DE CONTRAPONTO

S1/~S1

Protagonista + Sagrado Feminino

S2/~S2

Narrador + Antagonista

Os actantes de Greimas não são (necessariamente) personagens ou arquétipos psicológicos. Mas guardam grande semelhanças com essas categorias. Actantes são “os seres ou as coisas que, a título qualquer e de um modo qualquer, ainda a título de meros figurantes e de maneira mais passiva possível, participam do processo” (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 20). Assim, Actante para Greimas é “um tipo de unidade sintática, de caráter propriamente formal, anteriormente a qualquer investimento semântico e/ou ideológico” (2008, p. 21).

Greimas escreveu um texto específico (1983), em que explica as semelhanças e diferenças entre personagens, figuras e actantes. Aqui considera-se as categorias de protagonista e antagonista (tipos de personagens para Propp) como equivalentes aos actantes Sujeito e Anti Sujeito. Nas narrativas audiovisuais atuais, os personagens são quase sempre actantes. Embora seja possível que um protagonista narrativo seja um anti sujeito simbólico, como, por exemplo, uma história de Lúcifer. Mas, há também trabalhos mais sofisticados com protagonistas coletivos ou abstratos. Antagonistas também: adversidades, preconceitos, medos, tudo que for contrário ao protagonista. Hoje, o elemento feminino deixou de ser um objeto passivo e também protagoniza a narrativa, instaurando novos objetos de valor abstratos. Assim, o actante ‘Objeto de Valor’ foi associado ao arquétipo psicológico do ‘Sagrado Feminino’ assumindo diversas identidades narrativas: a natureza, a mulher, a sociedade.

E, no lugar do actante Ajudante, coloca-se aqui o Narrador, que corresponde ao Self (ou identidade da consciência) e deve ser entendido como uma mediação entre autor e leitor; e não como “narração”, um discurso da narrativa que “conta” a história. Onipresente e onisciente, ele é uma presença narrativa constante e invisível.

  1. Adaptações

Também alterou-se as relações de polaridade entre os actantes para Contradição, Contraste e Complemento – mais simples e mais abrangentes para análise de texto audiovisuais que as relações de Oposição, Contrariedade e Implicação originalmente propostas por Greimas, que são mais literárias e menos visuais.

Trabalha-se assim com uma adaptação criativa da proposta de Greimas e não com a aplicação rígida de sua metodologia.

Aliás, a definição dos elementos simbólicos (para o quadrado semiótico narrativo) é sempre arbitrária e subjetiva, pois trata-se de uma interpretação. A mensagem da história vai sempre depender de quem a lê, da definição dos elementos simbólicos de quem analisa a narrativa. Diferentes leitores podem identificar diferentes actantes da narrativa que leem; e chegar à conclusões morais diferentes.

Poder-se-ia dizer que se faz aqui uma leitura muito junguiana de Greimas, confundindo as noções de arquétipo com actante. De fato: a diferença entre as noções é apenas de contexto teórico, pois, enquanto o arquétipo é uma forma-modelo dentro de uma arqueologia; o actante é um universal do imaginário, dentro de uma narrativa.

Na narrativa A queda do Éden do Genesis há quatro elementos actantes e arquetípicos: Jeová (narrador/self), Adão (protagonista/ego), Eva (ajudante/anima) e a Serpente (antagonista/sombra). Tradicionalmente, os actantes combinam com os arquétipos, mas é possível contar a mesma história de outras formas.

Por exemplo, posso recontar a história com a serpente narradora e/ou com Eva como protagonista da narrativa. Isto mostraria os lados negativos de Adão e de Jeová (os actantes seriam destacados dos seus arquétipos de origem), abrindo novas possibilidades de leitura e interpretação da narrativa.

E por isso o primeiro elemento a ser definido é sempre o narrador, o Self, elemento consciencial da narrativa. Eu posso contar a história do ponto de vista de Adão, Eva ou da Serpente; transformando o arquétipo de Jeová em personagem actante da narrativa de um deles. O segundo passo é definir os actantes protagonista e antagonista entre os outros três arquétipos restantes. Resumindo: os arquétipos são elementos psicológicos e os actantes são dispositivos narrativos. Podem coincidir, reforçando a estrutura narrativa; ou não, desconstruindo narrativas tradicionais.

  1. Conclusão

Primeiro, descreveu-se sumariamente o percurso teórico de Greimas, ressaltando sua posição limítrofe entre o estruturalismo e o pensamento pós-moderno; acrescentando também algumas referências teóricas importantes para semiótica, como Eco e Barthes.

Depois apresentou-se uma brevíssima história da televisão, destacando nela três momentos de seu sistema narrativo: os anos de ouro ao vivo, a era da máquina hipnótica e o momento atual de transição, caracterizado pela interatividade relativa (sob controle) e pela segmentação crescente. A convergência dos meios está transformando a televisão em um oráculo cognitivo?

Observou-se, em seguida, que a ideia de que a TV é apenas uma mídia manipuladora e alienante (pela Escola de Frankfurt, por exemplo) se configura como um obstáculo para sua análise; e que o modelo de fluxo televisual da grade de programação, proposto por Raymond Williams, desestimulou a análise dos programas individualmente. A televisão se tornou uma espécie de ‘tabu’ epistemológico.

Finalmente, apresentou-se uma metodologia para leitura de textos audiovisuais em série, englobando parâmetros para descrição, análise e interpretação das tele séries.

Demorou até que se reconhece-se a TV como forma de arte e/ou como um produto cultural. O discurso televisivo passou a ser sempre visto como algo superficial, fragmentado, repetido, ampliando e sugerindo alguns aspectos em detrimento de outros, como um filtro da realidade social, como algo que não merece ser estudado – entre outras aversões. Agora, segundo vários teóricos e críticos contemporâneos estamos vivendo um terceiro momento, caracterizado pela convergência das mídias e pela segmentação interativa do público: a “segunda era de ouro da televisão” e um declínio do cinema. Atores, diretores, escritores estão migrando da sétima para décima segunda arte. Surge a nova competência artística de ‘redator-produtor’ da série. A (autoria da) arte no teatro é do escritor; no cinema, do diretor; e na TV, do produtor – diz o ditado. Mas, hoje percebemos que a arte está nos olhos de quem a vê. Que toda arte agora é do seu receptor. Daí a importância das interpretações criativas, principalmente daquelas que compreendam e contribuam para ampliar e expandir essa situação limítrofe entre consciência e linguagem, a interação entre o sujeito e os efeitos de sentido, a dialética entre a vida e a narrativa.

1 Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. CV Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4792219T9 e email: marcelobolshaw@gmail.com

2 Inaugurando, no Collège de France, a 7 de janeiro de 1977, a cadeira de semiologia literária, Roland Barthes, ao considerar a língua como um código de linguagem engendrado pelo poder (e não como uma estrutura) rompe efetivamente com Saussure e aproxima-se de Foucault. A comparação entre Barthes e Greimas é interessante porque ambos passam a ser mais literários e críticos, como se não houvesse mais tempo para explicar suas ideias de forma analítica, sendo assim pedir ajuda a poética; e consequentemente passam a ser discutir as próprias emoções.

3 Pierce (2003) entendem que o sentido é produzido mais pela relação texto-receptor do que pela intenção do enunciador (psicanálise) e/ou do significado do texto em si (estruturalismo). A ‘semiose ilimitada’ a partir do interpretante significa que um signo não representa um objeto de referência e sim outro signo, que representa outro signo e assim indefinidamente. Mesmo aceitando a semiose ilimitada do receptor, Umberto Eco (1993) traça limites para interpretação. Para Eco, há textos abertos como a arte (polissêmicos, em que vários sentidos convergentes se encaixam) e textos fechados, dirigidos a públicos específicos. Quando o receptor imagina a referência, o texto é aberto e o discurso é lúdico; quando a referência é imposta pelo emissor, o texto é autoritário e discurso é uma paráfrase. A maioria dos textos é intermediário desses extremos, podendo haver diferentes gradações. Para entende-los, Eco propõem duas estratégias de interpretação textual: o autor-modelo (a imagem que o leitor faz de quem escreve) e o leitor-modelo (a imagem que o autor faz de quem lê). E observa que há vários níveis de competência do leitor e que o texto permite diversas leituras e vários leitores ideais.

4 Devido à defasagem do desenvolvimento da TV brasileira em relação ao contexto internacional, Verón (2003, p. 30) faz uma perigosíssima comparação entre a vitória de Lula em 2002 e a eleição de François Mitterrand, na França em 1981: para ele, o presidente francês foi eleito presidente pela primeira vez no início da segunda fase da televisão; e Lula, quando esta fase termina e uma terceira se inicia. Mas, nos dois casos, o autor acredita que a mídia impôs uma “economia de contato” aos atores sociais e políticos durante as eleições. Em ambas as situações, não é mais a televisão que fala a respeito dos candidatos aos seus eleitores, mas sim a TV que vende produtos políticos a consumidores segmentados.

5 Ler implica em concentração, em ‘entrar no livro’, através do hemisfério esquerdo; assistir televisão é deixar as imagens ‘entrarem em você’ através de um atenção dispersa pelo hemisfério direito. O computador é uma síntese do livro e da TV ao mesmo tempo e já tem um efeito de duplicar a cognição da linguagem. Na experiência de bing-watching, a dupla cognição é distribuída em duas telas, uma representando a TV e a percepção passiva; e a outra, o aspecto ativo e criativo da cognição.


  1. Referências bibliográficas

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