A Onda e a Seita
RESENHA:
DIE Welle
(Original) A Onda (em Português).
Direção de Dennis Gansel. Produção de Christian Becker e Martin Moszkowick.
Intérpretes: Jürgen Vogel, Frederic Lau e outros. Roteiro: Dennis Gansel e
Peter Thorwharth. Música: Heiko Maile. Alemanha: Constantin Film Produktion
Gmbh e Rat Pac Filmproduktion Gmbhk, 2008. (107 min.), son., color. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=zG3TfjAhs30&ab_channel=ALuzMcOficial
A onda (2008) é um filme ficcional alemão
que conta uma história real: o experimento social da Terceira Onda, realizado
pelo professor de história Ron Jones nos anos 70 em Palo Alto, EUA. No filme, o
professor colegial Rainer Wenger (Jürgen Vogel) é indicado para ministrar um
curso sobre autarquia (e não de anarquismo, como estava acostumado). Para
demonstrar a seus alunos (que não acreditavam na possibilidade da Alemanha
moderna voltar a ser nazista), Rainer propõem um experimento para mostrar como
fácil é manipular as massas.
O professor, então, exige ser tratado
por "Herr Wenger", muda as carteiras de lugar, colocando todos de
frente para ele e posicionando os alunos segundo suas notas, de modo que cada
dupla seja formado por um estudante com notas ruins e outro com notas boas. A
ideia é que uns aprendam com os outros. Além disso, todo aluno que quiser fazer
alguma colocação deverá levantar a mão e se expressar de forma militar. Para empoderar coletivamente os alunos, Rainer
faz uma marcha sem sair do lugar fazendo com que se sintam parte de uma única
entidade, incomodando a turma de anarquismo, que está na sala a baixo da deles.
Continuando o experimento, Rainer então sugere que todos os alunos do grupo
devem vestir uma camisa branca e calças jeans, para que não haja mais
distinções entre os alunos. Mona (Amelie Kiefer), uma aluna relutante a fazer
parte da proposta, diz que usar uniformes vai acabar com a individualidade de
cada um (e mais tarde troca de turma e passa a integrar a classe de
anarquismo). Outra aluna, Karo (Jennifer Ulrich) vai à aula do dia seguinte e
descobre ser a única a não aderir ao uniforme. Após uma rápida eleição, o nome
"A Onda" (Die Welle) é
escolhido. Além do nome, o grupo cria uma forma de saudação, que consiste em
imitar o movimento de uma onda com o braço direito em frente ao peito. Criam
também um símbolo, que é pichado por toda a cidade, inclusive na fachada do
prédio da prefeitura. Além disso, o grupo promove festas onde só membros do
grupo podem entrar, e alguns começam a hostilizar os não-iniciados.
A união do grupo altera o
comportamento de vários integrantes. Bomber (Maximilian Vollmar) é um badboy valentão
que passa de assediador a protetor de seu colega Tim (Frederick Lau). Tim é um
dos que mais envolvidos, pois pela primeira vez ele se sente aceito em um
grupo. Ele queima todas as suas roupas de marca e mais tarde aparece na casa de
Rainer, oferecendo-se para ser seu segurança. Apesar do professor recusar, o
rapaz dorme no quintal de sua casa. Sua esposa, Anke (Christiane Paul), também
uma professora da escola, acredita que a situação já foi longe demais e pede
para Rainer encerre o experimento. Ele, no entanto, a acusa de estar com inveja
por ele estar fazendo mais sucesso com os alunos do que ela. Ofendida, ela o
abandona.
Em virtude de uma briga generalizada
durante o jogo de polo aquático, Marco (Max Riemelt), briga com a namorada Karo
e a acusa de ter causado a briga que levou ao cancelamento da partida. Durante
o desentendimento, Marco bate em Karo e a faz sangrar. Percebendo o que fez,
ele vai até a casa de Rainer, onde pede que ele acabe com o movimento. Rainer
então convoca uma assembleia com todos os membros no auditório da escola. No
encontro, Rainer fecha as portas e discursa para os alunos, exaltando a atuação
da seita e enaltecendo suas chances mudar a Alemanha. Marco protesta e Rainer o
acusa de trair a confiança do grupo, pedindo que o tragam para o palco para ser
punido. Rainer então faz os alunos perceberem o quão longe foram e como estavam
sendo manipulados.
Inesperadamente, no entanto, Rainer decreta
o fim do experimento, afirmando que provou seu argumento principal: de que a
Alemanha pode voltar a se tornar um regime autoritário, mas Tim saca um
revólver, se recusa a aceitar que a seita acabe com medo de voltar a ser
sozinho e atira em sua própria boca. O filme termina com Rainer sendo levado preso
pela polícia, enquanto os alunos, seus pais e os professores (incluindo sua
esposa) o observam.
O filme retrata fielmente o processo
de formação de uma Seita. Uma história real, não apenas em relação ao
experimento escolar de Palo Alto, mas também de vários outros grupos que se
radicalizam em torno da construção de uma identidade coletiva, nos fazendo
pensar sobre como abrimos mão da individualidade em troca da aceitação.
A Seita é ‘uma manada que se destaca do rebanho’,
incluindo a maioria e excluindo alguns como “bodes expiatórios”,
despersonalizando os indivíduos em nome de uma identidade coletiva e de um
líder carismático. Há seitas religiosas, políticas e com temas culturais
específicos. Uma igreja dissidente, uma tendência de partido político, uma parte
da torcida esportiva podem degenerar para o fanatismo identitário e se tornar
uma seita.
As duas principais
características das seitas são: a liderança carismática-autoritária e as
crenças exclusivistas (as seitas frequentemente afirmam uma verdade singular
que as diferencia do resto da sociedade).
Há crenças explícitas e implícitas. Uma seita
budista declara a crença nas quatro nobres verdades e na senda óctupla, mas
suas crenças não declaradas (a impermanência, o “grande vazio”, a não
existência do eu) é que vão diferenciar sua identidade. Da mesma forma, poucos
adeptos da Biodanza leem Rolando Toro, mas todos acreditam que a prática é
capaz de “dissolver suas couraças”. A Bíblia e o Capital de Marx são livros
muito pouco lidos, mas muitos acreditam em vencer na vida pagando dízimo ou que
a revolução é uma fatalidade histórica. “Vestir a camisa” da Seita é abraçar
suas crenças não declaradas e até inconscientes. As crenças explícitas são
apenas para propaganda externa.
Outras duas
características secundárias importantes são o isolamento físico e psicológico dos
membros (da família e dos amigos que não participam da Seita) e o controle
rígido sobre comportamento, pensamento e até emoções, popularmente chamado de
“lavagem cerebral”.
Deste
último ponto, é possível também destacar alguns elementos simbólicos
importantes: os rituais (iniciações e celebrações) e as várias práticas
distintivas: o acolhimento afetivo como tática de recrutamento; a culpa e a
cobrança de gratidão como forma de manipulação permanente; e a visão dicotômica
do mundo dividido entre "nós" e "eles" (ZAGO, 2022) [1].
No entanto, a característica mais
visível é a exploração econômica dos membros. Em muitos casos, há demandas por
tempo, dinheiro ou trabalho excessivo em benefício do grupo e do líder, às
vezes sob a justificativa de um propósito maior. Na linguagem cotidiana,
"seita" muitas vezes carrega um tom pejorativo, associado a grupos
manipuladores que exploram seguidores emocionalmente, financeiramente ou até
fisicamente. A exploração, muitas vezes voluntária dos adeptos, leva a todo
tipo de abuso moral, sexual e a um regime de trabalho próximo ao da servidão. Essas
características (vistas no seu conjunto) variam em intensidade e nem todas
estão presentes em todos os grupos chamados de seitas.
Pela lógica tribalização/destribalização/retribalização
de McLuhan (1972), o ‘bando’ é pré-histórico; o grupo de indivíduos regrados e
disciplinados corresponde ao aspecto convencional da modernidade; e a Bolha é a
tribo virtual. Ser um indivíduo é uma conquista da modernidade e a Seita é um
passo atrás, um retorno ao bando.
O filme A Onda tem pelo menos duas contribuições importantes para uma
teoria da Seita: 1) minimiza o sistema de crenças explícito, a ideologia, como
fator de radicalização do processo de formação da identidade coletiva da Seita;
e 2) também minimiza a importância à exploração econômica da servidão
voluntária dos membros aos líderes e à organização.
Assim, o filme não considera
relevante justamente as duas características mais visíveis ao senso comum. Ao
invés de enfatizar a exploração, há referências ao empoderamento pessoal
resultante do trabalho coletivo, em que o resultado conjunto é superior à soma
das capacidades individuais graças ao papel do líder, gerente do capital
grupal. Já em relação às crenças inconscientes, destaca-se o papel do “bode
expiatório”, do inimigo externo ou do traidor. Aqui, ao contrário da situação
anterior, o resultado é menor que a soma das partes, pois são inibidos e
represados emoções, instintos e sentimentos. Assim, mais do que lucro ou
ideias, o importante é que haja um objeto de ódio para ser detestado e um
objeto de culto para ser amado.
Nessa perspectiva, os grupos operam em dois
regimes distintos: o diurno ou do grupo de trabalho (e de cooperação
consciente) e o regime noturno da emergência dos “pressupostos básicos” do
inconsciente arcaico estabelecendo sentimentos comuns aos indivíduos do grupo. “Pressupostos
Básicos” (BION, 1975) são padrões de comportamento coletivo – situações
emocionais arcaicas – que tendem a evitar a frustração inerente à aprendizagem
por experiência, quando esta implica em dor, esforço ou sofrimento.
Bion
identifica três tipos: dependência; acasalamento; e ataque e defesa diante do
inimigo. No pressuposto de dependência, o sentimento de proteção e de adoração
em relação aos líderes ou às divindades é representado pela relação autocrática
do professor com os alunos em sala de aula. O pressuposto do acasalamento
aparece nas festas e no sentimento de esperança no futuro da comunidade. E, no pressuposto de ataque e fuga diante do
inimigo, os sentimentos de medo e de raiva, são utilizados para constituição de
objetos de ódios e para formar uma unidade coesa no grupo.
Entre
os objetos de ódio, a configuração grupal arcaica mais importante é comumente
chamada de ‘bode expiatório’. É a “lata de lixo” emocional do grupo, em vários
níveis de intensidade. O mais leve é o ‘ajuste de conduta’ quando todos do
grupo debocham de um elemento em relação a algo em particular. Porém, quando o
indivíduo não se enquadra no comportamento do grupo começa um segundo nível de
ódio, em que, ao invés de forçar a inclusão da diferença pela adequação, deseja
excluí-la. É a ‘produção do transgressor’. O complexo de bode expiatório chega
ao seu ápice, o terceiro estágio, quando o grupo decide culpar o transgressor
de todas as adversidades pelas quais os outros elementos do grupo passam e,
então, o sacrificam para se purificarem de seus erros. E isso acontece muito
mais comum do que se imagina.
Outra
contribuição preciosa do filme é que a formação da ‘Onda’ oscila entre a Equipe
(os aspectos positivos) e a Gangue, quando a Seita comete crimes, como acontece
nas cenas da torcida organizada no jogo de polo aquático – e, em uma oitava
maior, durante toda narrativa. A Equipe (Goffman, 2021[2])
está ligada a alguma forma de performance coletiva (jogo, arte, trabalho), seus integrantes
desenvolvam certas habilidades psicológicas e competências subjetivas (além da
excelência das qualidades técnicas e artísticas), tais como: afinidade
emocional, capacidade de sincronia intuitiva, criatividade coletiva, improviso
em conjunto, tolerância com erros secundários e gentileza nas correções
necessárias. Essas mesmas habilidades também são necessárias para a produção
colaborativa em rede que envolvem vários tipos de artistas e técnicos.
A diferença entre o ‘grupo’
e a ‘equipe’ é que a última ultrapassa a soma das habilidades de seus
integrantes através da inteligência coletiva, da capacidade de interagir
criativamente em conjunto. Tanto a Gangue quanto a Equipe partilham da cumplicidade emocional das Seitas.
A lealdade emocional acima das regras, apesar de antidemocrática e
antirrepublicana, é o cimento da sociabilidade. A diferença da Equipe em
relação à Seita e à Gangue é o papel da família, das amizades e da comunidade.
Na equipe, a lealdade não implica no abandono das relações familiares e de
amizade.
A
comunidade é uma estrutura formada a partir da cooperação entre famílias. Não
se deve confundi-la com a horda ou com rebanho. Ao contrário, a família tem interesses
próprios e entra em oposição com a estrutura centralizadora e desigual da
seita. A comunidade provavelmente surgiu da institucionalização sedentária da
defesa dos interesses das crianças, mulheres e dos idosos em relação aos
objetivos nômades do rebanho. Então, desde o começo da sociabilização existiu
um conflito estrutural entre a família e os grupos formados por participação
voluntária.
Descrevemos o filme A Onda,
apontamos as principais características das seitas (o líder carismático, a
doutrina, as crenças inconscientes, o isolamento, o mundo dicotômico e a
exploração econômica). Ao contrário do senso comum, que vê a seita como um
conjunto de alienados explorados, detalhamos o processo de formação real,
oscilando entre o empoderamento de união e a administração dos objetos de ódio;
entre a excelência cooperativa das equipes e o uso criminoso da violência das
gangues.
Também ressaltamos a oposição estrutural entre a Família/Comunidade
e a Seita, pois mesmo que a última absorva a primeira, os interesses
sedentários se oporiam à mobilidade dos objetivos táticos do grupo.
Todos temos um sentimento de
incompletude, um desejo de união a algo maior que a soma dos esforços isolados,
uma compulsão gregária pela Utopia. Fazer parte de alguma coisa significativa,
que faça a diferença, empodera e dá segurança. Mas também exige cuidado e
controle, pede que sejamos menos do que somos – o que cria um inconsciente
grupal cheio de resistências fraternas, inimigos externos e traidores.
Referências
BION, W. R. Experiências com
grupos. Rio de Janeiro: Imago; São Paulo: EDUSP, 1975.
GOFFMAN,
Erving. Manicômios, Prisões e Conventos.
Tradução de Dante Moreira. Leite. 7ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
MCLUHAN,
Marshall. A galáxia de Gutenberg. A
formação do homem tipográfico. São Paulo: Cia Ed. Nacional e EDUSP, 1972
[1]
Para aprofundar no estudo dos abusos psicológicos em seitas e seu tratamento,
v.: https://rayhannezago.com/a-psicologia-das-seitas/
[2]
Outro conceito correlato é o de ‘Instituição Total”, organização fechada de
confinamento de um grande número de pessoas em que todos os aspectos da vida
social (aprendizado, trabalho, residência) ocorrem no mesmo local. Há seitas
que nascem de propostas de instituições totais em que a sustentação econômica,
a representação política e a vida cultural coincidem na mesma organização.