domingo, 20 de abril de 2025

A Onda (2008)

 


A Onda e a Seita


RESENHA:

DIE Welle (Original) A Onda (em Português). Direção de Dennis Gansel. Produção de Christian Becker e Martin Moszkowick. Intérpretes: Jürgen Vogel, Frederic Lau e outros. Roteiro: Dennis Gansel e Peter Thorwharth. Música: Heiko Maile. Alemanha: Constantin Film Produktion Gmbh e Rat Pac Filmproduktion Gmbhk, 2008. (107 min.), son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zG3TfjAhs30&ab_channel=ALuzMcOficial


A onda (2008) é um filme ficcional alemão que conta uma história real: o experimento social da Terceira Onda, realizado pelo professor de história Ron Jones nos anos 70 em Palo Alto, EUA. No filme, o professor colegial Rainer Wenger (Jürgen Vogel) é indicado para ministrar um curso sobre autarquia (e não de anarquismo, como estava acostumado). Para demonstrar a seus alunos (que não acreditavam na possibilidade da Alemanha moderna voltar a ser nazista), Rainer propõem um experimento para mostrar como fácil é manipular as massas.

O professor, então, exige ser tratado por "Herr Wenger", muda as carteiras de lugar, colocando todos de frente para ele e posicionando os alunos segundo suas notas, de modo que cada dupla seja formado por um estudante com notas ruins e outro com notas boas. A ideia é que uns aprendam com os outros. Além disso, todo aluno que quiser fazer alguma colocação deverá levantar a mão e se expressar de forma militar.  Para empoderar coletivamente os alunos, Rainer faz uma marcha sem sair do lugar fazendo com que se sintam parte de uma única entidade, incomodando a turma de anarquismo, que está na sala a baixo da deles. Continuando o experimento, Rainer então sugere que todos os alunos do grupo devem vestir uma camisa branca e calças jeans, para que não haja mais distinções entre os alunos. Mona (Amelie Kiefer), uma aluna relutante a fazer parte da proposta, diz que usar uniformes vai acabar com a individualidade de cada um (e mais tarde troca de turma e passa a integrar a classe de anarquismo). Outra aluna, Karo (Jennifer Ulrich) vai à aula do dia seguinte e descobre ser a única a não aderir ao uniforme. Após uma rápida eleição, o nome "A Onda" (Die Welle) é escolhido. Além do nome, o grupo cria uma forma de saudação, que consiste em imitar o movimento de uma onda com o braço direito em frente ao peito. Criam também um símbolo, que é pichado por toda a cidade, inclusive na fachada do prédio da prefeitura. Além disso, o grupo promove festas onde só membros do grupo podem entrar, e alguns começam a hostilizar os não-iniciados.

A união do grupo altera o comportamento de vários integrantes. Bomber (Maximilian Vollmar) é um badboy valentão que passa de assediador a protetor de seu colega Tim (Frederick Lau). Tim é um dos que mais envolvidos, pois pela primeira vez ele se sente aceito em um grupo. Ele queima todas as suas roupas de marca e mais tarde aparece na casa de Rainer, oferecendo-se para ser seu segurança. Apesar do professor recusar, o rapaz dorme no quintal de sua casa. Sua esposa, Anke (Christiane Paul), também uma professora da escola, acredita que a situação já foi longe demais e pede para Rainer encerre o experimento. Ele, no entanto, a acusa de estar com inveja por ele estar fazendo mais sucesso com os alunos do que ela. Ofendida, ela o abandona.

Em virtude de uma briga generalizada durante o jogo de polo aquático, Marco (Max Riemelt), briga com a namorada Karo e a acusa de ter causado a briga que levou ao cancelamento da partida. Durante o desentendimento, Marco bate em Karo e a faz sangrar. Percebendo o que fez, ele vai até a casa de Rainer, onde pede que ele acabe com o movimento. Rainer então convoca uma assembleia com todos os membros no auditório da escola. No encontro, Rainer fecha as portas e discursa para os alunos, exaltando a atuação da seita e enaltecendo suas chances mudar a Alemanha. Marco protesta e Rainer o acusa de trair a confiança do grupo, pedindo que o tragam para o palco para ser punido. Rainer então faz os alunos perceberem o quão longe foram e como estavam sendo manipulados.

Inesperadamente, no entanto, Rainer decreta o fim do experimento, afirmando que provou seu argumento principal: de que a Alemanha pode voltar a se tornar um regime autoritário, mas Tim saca um revólver, se recusa a aceitar que a seita acabe com medo de voltar a ser sozinho e atira em sua própria boca. O filme termina com Rainer sendo levado preso pela polícia, enquanto os alunos, seus pais e os professores (incluindo sua esposa) o observam.

O filme retrata fielmente o processo de formação de uma Seita. Uma história real, não apenas em relação ao experimento escolar de Palo Alto, mas também de vários outros grupos que se radicalizam em torno da construção de uma identidade coletiva, nos fazendo pensar sobre como abrimos mão da individualidade em troca da aceitação.

A Seita é ‘uma manada que se destaca do rebanho’, incluindo a maioria e excluindo alguns como “bodes expiatórios”, despersonalizando os indivíduos em nome de uma identidade coletiva e de um líder carismático. Há seitas religiosas, políticas e com temas culturais específicos. Uma igreja dissidente, uma tendência de partido político, uma parte da torcida esportiva podem degenerar para o fanatismo identitário e se tornar uma seita.

As duas principais características das seitas são: a liderança carismática-autoritária e as crenças exclusivistas (as seitas frequentemente afirmam uma verdade singular que as diferencia do resto da sociedade).

  Há crenças explícitas e implícitas. Uma seita budista declara a crença nas quatro nobres verdades e na senda óctupla, mas suas crenças não declaradas (a impermanência, o “grande vazio”, a não existência do eu) é que vão diferenciar sua identidade. Da mesma forma, poucos adeptos da Biodanza leem Rolando Toro, mas todos acreditam que a prática é capaz de “dissolver suas couraças”. A Bíblia e o Capital de Marx são livros muito pouco lidos, mas muitos acreditam em vencer na vida pagando dízimo ou que a revolução é uma fatalidade histórica. “Vestir a camisa” da Seita é abraçar suas crenças não declaradas e até inconscientes. As crenças explícitas são apenas para propaganda externa.

Outras duas características secundárias importantes são o isolamento físico e psicológico dos membros (da família e dos amigos que não participam da Seita) e o controle rígido sobre comportamento, pensamento e até emoções, popularmente chamado de “lavagem cerebral”.  

Deste último ponto, é possível também destacar alguns elementos simbólicos importantes: os rituais (iniciações e celebrações) e as várias práticas distintivas: o acolhimento afetivo como tática de recrutamento; a culpa e a cobrança de gratidão como forma de manipulação permanente; e a visão dicotômica do mundo dividido entre "nós" e "eles" (ZAGO, 2022) [1].

No entanto, a característica mais visível é a exploração econômica dos membros. Em muitos casos, há demandas por tempo, dinheiro ou trabalho excessivo em benefício do grupo e do líder, às vezes sob a justificativa de um propósito maior. Na linguagem cotidiana, "seita" muitas vezes carrega um tom pejorativo, associado a grupos manipuladores que exploram seguidores emocionalmente, financeiramente ou até fisicamente. A exploração, muitas vezes voluntária dos adeptos, leva a todo tipo de abuso moral, sexual e a um regime de trabalho próximo ao da servidão. Essas características (vistas no seu conjunto) variam em intensidade e nem todas estão presentes em todos os grupos chamados de seitas.

Pela lógica tribalização/destribalização/retribalização de McLuhan (1972), o ‘bando’ é pré-histórico; o grupo de indivíduos regrados e disciplinados corresponde ao aspecto convencional da modernidade; e a Bolha é a tribo virtual. Ser um indivíduo é uma conquista da modernidade e a Seita é um passo atrás, um retorno ao bando.

O filme A Onda tem pelo menos duas contribuições importantes para uma teoria da Seita: 1) minimiza o sistema de crenças explícito, a ideologia, como fator de radicalização do processo de formação da identidade coletiva da Seita; e 2) também minimiza a importância à exploração econômica da servidão voluntária dos membros aos líderes e à organização.

Assim, o filme não considera relevante justamente as duas características mais visíveis ao senso comum. Ao invés de enfatizar a exploração, há referências ao empoderamento pessoal resultante do trabalho coletivo, em que o resultado conjunto é superior à soma das capacidades individuais graças ao papel do líder, gerente do capital grupal. Já em relação às crenças inconscientes, destaca-se o papel do “bode expiatório”, do inimigo externo ou do traidor. Aqui, ao contrário da situação anterior, o resultado é menor que a soma das partes, pois são inibidos e represados emoções, instintos e sentimentos. Assim, mais do que lucro ou ideias, o importante é que haja um objeto de ódio para ser detestado e um objeto de culto para ser amado.

Nessa perspectiva, os grupos operam em dois regimes distintos: o diurno ou do grupo de trabalho (e de cooperação consciente) e o regime noturno da emergência dos “pressupostos básicos” do inconsciente arcaico estabelecendo sentimentos comuns aos indivíduos do grupo. “Pressupostos Básicos” (BION, 1975) são padrões de comportamento coletivo – situações emocionais arcaicas – que tendem a evitar a frustração inerente à aprendizagem por experiência, quando esta implica em dor, esforço ou sofrimento.

Bion identifica três tipos: dependência; acasalamento; e ataque e defesa diante do inimigo. No pressuposto de dependência, o sentimento de proteção e de adoração em relação aos líderes ou às divindades é representado pela relação autocrática do professor com os alunos em sala de aula. O pressuposto do acasalamento aparece nas festas e no sentimento de esperança no futuro da comunidade.  E, no pressuposto de ataque e fuga diante do inimigo, os sentimentos de medo e de raiva, são utilizados para constituição de objetos de ódios e para formar uma unidade coesa no grupo.

Entre os objetos de ódio, a configuração grupal arcaica mais importante é comumente chamada de ‘bode expiatório’. É a “lata de lixo” emocional do grupo, em vários níveis de intensidade. O mais leve é o ‘ajuste de conduta’ quando todos do grupo debocham de um elemento em relação a algo em particular. Porém, quando o indivíduo não se enquadra no comportamento do grupo começa um segundo nível de ódio, em que, ao invés de forçar a inclusão da diferença pela adequação, deseja excluí-la. É a ‘produção do transgressor’. O complexo de bode expiatório chega ao seu ápice, o terceiro estágio, quando o grupo decide culpar o transgressor de todas as adversidades pelas quais os outros elementos do grupo passam e, então, o sacrificam para se purificarem de seus erros. E isso acontece muito mais comum do que se imagina.

Outra contribuição preciosa do filme é que a formação da ‘Onda’ oscila entre a Equipe (os aspectos positivos) e a Gangue, quando a Seita comete crimes, como acontece nas cenas da torcida organizada no jogo de polo aquático – e, em uma oitava maior, durante toda narrativa. A Equipe (Goffman, 2021[2]) está ligada a alguma forma de performance coletiva (jogo, arte, trabalho), seus integrantes desenvolvam certas habilidades psicológicas e competências subjetivas (além da excelência das qualidades técnicas e artísticas), tais como: afinidade emocional, capacidade de sincronia intuitiva, criatividade coletiva, improviso em conjunto, tolerância com erros secundários e gentileza nas correções necessárias. Essas mesmas habilidades também são necessárias para a produção colaborativa em rede que envolvem vários tipos de artistas e técnicos.

A diferença entre o ‘grupo’ e a ‘equipe’ é que a última ultrapassa a soma das habilidades de seus integrantes através da inteligência coletiva, da capacidade de interagir criativamente em conjunto. Tanto a Gangue quanto a Equipe partilham da cumplicidade emocional das Seitas. A lealdade emocional acima das regras, apesar de antidemocrática e antirrepublicana, é o cimento da sociabilidade. A diferença da Equipe em relação à Seita e à Gangue é o papel da família, das amizades e da comunidade. Na equipe, a lealdade não implica no abandono das relações familiares e de amizade. 

A comunidade é uma estrutura formada a partir da cooperação entre famílias. Não se deve confundi-la com a horda ou com rebanho. Ao contrário, a família tem interesses próprios e entra em oposição com a estrutura centralizadora e desigual da seita. A comunidade provavelmente surgiu da institucionalização sedentária da defesa dos interesses das crianças, mulheres e dos idosos em relação aos objetivos nômades do rebanho. Então, desde o começo da sociabilização existiu um conflito estrutural entre a família e os grupos formados por participação voluntária.

Descrevemos o filme A Onda, apontamos as principais características das seitas (o líder carismático, a doutrina, as crenças inconscientes, o isolamento, o mundo dicotômico e a exploração econômica). Ao contrário do senso comum, que vê a seita como um conjunto de alienados explorados, detalhamos o processo de formação real, oscilando entre o empoderamento de união e a administração dos objetos de ódio; entre a excelência cooperativa das equipes e o uso criminoso da violência das gangues.

Também ressaltamos a oposição estrutural entre a Família/Comunidade e a Seita, pois mesmo que a última absorva a primeira, os interesses sedentários se oporiam à mobilidade dos objetivos táticos do grupo.

Todos temos um sentimento de incompletude, um desejo de união a algo maior que a soma dos esforços isolados, uma compulsão gregária pela Utopia. Fazer parte de alguma coisa significativa, que faça a diferença, empodera e dá segurança. Mas também exige cuidado e controle, pede que sejamos menos do que somos – o que cria um inconsciente grupal cheio de resistências fraternas, inimigos externos e traidores.

 

 

Referências

BION, W. R. Experiências com grupos. Rio de Janeiro: Imago; São Paulo: EDUSP, 1975.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. Tradução de Dante Moreira. Leite. 7ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

MCLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg. A formação do homem tipográfico. São Paulo: Cia Ed. Nacional e EDUSP, 1972

ZAGO, Rayhanne Simon Dardengo.  A psicologia das seitas. 1 de setembro de 2022. https://rayhannezago.com/a-psicologia-das-seitas/


[1] Para aprofundar no estudo dos abusos psicológicos em seitas e seu tratamento, v.: https://rayhannezago.com/a-psicologia-das-seitas/

[2] Outro conceito correlato é o de ‘Instituição Total”, organização fechada de confinamento de um grande número de pessoas em que todos os aspectos da vida social (aprendizado, trabalho, residência) ocorrem no mesmo local. Há seitas que nascem de propostas de instituições totais em que a sustentação econômica, a representação política e a vida cultural coincidem na mesma organização.


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