CARTOGRAFIA DAS LÁGRIMAS
Elementos Narrativos do Dorama
Marcelo Bolshaw Gomes
Resumo: Quais são os elementos simbólicos e narrativos que definem o dorama asiático, principalmente o melodrama coreano? O objetivo deste texto é explorar, através de uma pesquisa documental qualitativa, como aplicar as ferramentas e modelos dos estudos narrativos a esse conjunto de séries audiovisuais. O resultado é uma breve cartografia do estilo e de seus subgéneros segundo seus elementos narrativos principais.
Palavras_chave: Estudos Narrativos1; Séries audiovisuais2; Melodrama coreano3;
1. Introdução
Definir o Dorama como forma narrativa esbarra em uma série de problemas conceituais e de classificação. ‘Dorama’ é um termo genérico de narrativa audiovisual seriada asiática. Há variações culturais: j-drama é japonês, c-drama é chinês e o K-drama, coreano. E esses tipos nacionais de dorama espelham as diferenças culturais entre esses países. Os K-dramas costuma ter final inconcluso e “agridoce”, semelhantes à vida que nunca se encerra; os J-dramas têm finais trágicos e “amargos”, duros e irreversíveis como a vida é - contrastando com os melodramas ocidentais (novelas mexicanas e brasileiras) de ‘happy end’. Ou seja: ao mesmo tempo que as produções audiovisuais asiáticas contemporâneas tem características em comum frente a outras narrativas seriadas, elas também têm diferenças culturais significativas entre si, impercetíveis para o público ocidental.
Além das diferenças culturais em relação ao conteúdo, há também diferentes contextos de produção: os c-dramas são novelas de mais de 40 capítulos feitos para o público interno da China; os j-dramas geralmente são mini-séries de 8 a 12 partes; os k-dramas normalmente são seriados de 16 episódio - ambos voltados para um público global apesar do foco local.
O melodrama ocidental têm personagens arquetípicos: o herói, o vilão e a vítima; enquanto o dorama deseja desconstruir essa relação. O protagonismo é coletivo e o vilão é o destino do qual todos somos vítimas. O antagonista é a fatalidade, ou “han”, uma emoção cultural coreana que reflete tristeza, ressentimento e sofrimento acumulado. O tratamento dado aos personagens é mais complexo e realista, eles não são ‘actantes’ fixos, encarnando ‘funções narrativas’, são quase-pessoas com qualidades e defeitos.
Outra característica muito comum e conhecida dos doramas é a inversão da depreciação de género, uma perspectiva anti-misógena sem ser explicitamente feminista. Nos filmes do passado, principalmente nos de Hollywood, as mulheres eram desqualificadas como ‘tontas’ e incapazes. No K-drama ou melodrama coreano acontece o contrário: os homens têm suas falhas de caráter expostas e as mulheres são representadas com personalidades fortes e bem sucedidas.
Também é importante ressaltar que, do ponto de vista contextual, o K-drama faz parte da “la Hallyu’ (a onda coreana), uma expansão comercial da cultura sul coreana baseada em quatro pilares: culinária, música pop, séries audiovisuais e cosméticos. Essas quatro indústrias interagem entre si, dentro e fora das telas, com várias simbioses e intercessões.
O objetivo deste texto é explorar, através de uma pesquisa documental qualitativa, como aplicar as ferramentas e modelos dos estudos narrativos a esse conjunto de séries audiovisuais. Quais são os elementos simbólicos e narrativos que definem o dorama asiático, principalmente o melodrama coreano? E nossa metodologia narrativa audiovisual (Gomes, 2019)) tem três momentos distintos: descrição, análise (do contexto social e das formas simbólicas) e interpretação - em que se discute os elementos psicológicos universais da narrativa e se define sua mensagem simbólica, a “moral da história”.
2. Metodologia
Não existe uma metodologia universal para análise fílmica (Aumont & Marie, 1999). Cada filme exige um conjunto singular de métodos e técnicas diferentes de análise. Analisar é sinónimo de decompor, dividir em partes - sejam segmentos (análise textual), elementos semânticos (análise de conteúdo), formas de linguagem (o texto, a imagem e o som) ou até efeitos de sentido (na análise poética).
Análise também nos remete à analogia, à comparação externa de elementos simbólicos e técnicos do objeto analisado com outros com os quais tenha semelhanças e diferenças. Para Penafria, o “objetivo da análise é, então, o de explicar/esclarecer o funcionamento de um determinado filme e propor-lhe uma interpretação” (2009, p. 01).
Interpretar significa compreender os diferentes significados, o que o filme nos ensina do ponto de vista ético, quais valores morais e culturais representa. A Interpretação, portanto, não se refere, como pensa o senso comum, a apontar a qualidade ou os defeitos do trabalho, mas a observar se o filme realiza adequadamente aquilo a que se propôs. Se as partes analisadas contribuem para proposta do conjunto, se a narrativa ‘funciona’ ou não.
Saussure estabeleceu o Signo como unidade mínima da linguagem e o subdividiu em: Significante ou aspecto material (uma “imagem acústica”); e Significado ou aspecto mental (a ideia abstrata que o signo representa). A análise textual consiste nessa distinção entre a forma material do conteúdo mental.
Hjelmslev duplicou a dicotomia em quatro níveis: Forma de Expressão, Substância de Expressão, Forma de Conteúdo e Substância de Conteúdo. Pode-se dizer que agora, além das formas linguísticas, estuda-se também a semântica e seus conteúdos.
Greimas (1976) utiliza o modelo dos quatro níveis da linguagem para estudar narrativas. A partir de seu modelo, desenvolveu-se (GOMES, 2019) uma metodologia específica para o estudo de narrativas audiovisuais.
Tabela 1 – Saussure, Hjelmslev e Greimas
SAUSSURE | HJELMSLEV | GREIMAS | METODOLOGIA AUDIOVISUAL | |
SIGNO | SIGNIFICANTE Imagem acústica | Forma de Expressão | DESCRIÇÃO | texto, imagem e som |
Substância de Expressão | ANÁLISE DISCURSIVA E NARRATIVA | Comparação entre o contexto enunciado e o contexto do enunciador | ||
SIGNIFICADO Ideia abstrata | Forma de Conteúdo | Comparação entre diferentes contextos de recepção (pactos de leitura) | ||
Substância de Conteúdo | INTERPRETAÇÃO | Universais do imaginário, elementos psicológicos e simbólicos. |
Fonte: elaborado pelo autor com ajuda de IA
David Bordwell (2013a, 2013b) reconhece duas teorias narrativas do cinema: a mimética (ou poética) e a diegética (ou interpretativa). As teorias diegéticas são as abordagens do estruturalismo e da hermenêutica, análises externas à narrativa fílmica em si. Já a teoria mimética é uma abordagem imediata, simultânea como ...
... um ato de visão: um objeto de percepção apresentado aos olhos do observador. Bordwell mostra que a tradição mimética no cinema se realizou no sentido de constituir uma unidade de visão do filme que ele chama de observador invisível (um filme representa eventos de uma história por uma visão, do ponto de vista de uma testemunha invisível). Este podia ser encarnado na câmera ou identificado com o narrador (Santiago Jr, 2004, p. 02).
O método de análise fílmica de David Bordwell foca na estrutura e funcionamento do filme através de processos cognitivos do espectador. Ele analisa os elementos da narração, o uso da mise-en-scène, cinematografia, som e edição para entender como o filme direciona a atenção do espectador e cria significados .
A análise considera como a mente do espectador processa as informações do filme, desde a atenção direcionada a detalhes importantes até a forma como os filmes constroem no subconsciente uma visão coerente da história. A narração é um processo dinâmico na mente do espectador (e não na mente do autor e/ou na linguagem como acredita o estruturalismo), sendo fundamental para a construção de múltiplos significados. O espectador “bordwelliano” não é um leitor ideal (como em Eco), mas uma entidade hipotética que elabora uma metanarrativa fora da representação visual do filme.
O espectador hipotético é o Visualizador (viewer) sensorial e cognitivo: o cérebro constrói julgamentos perceptivos por inferências sensoriais não-conscientes; inferências recorrentes geram mapas cognitivos e regras internalizadas; que reforçam e reconfiguram o visualizador.
Santiago Junior (2004) considera Bordwell um “estudioso neoformalista, que pode ser associado a corrente analítica cognitiva dos estudos de cinema contemporâneos”. Bordwell é um contraponto às teorias discursivas da narrativa, trocando a linguagem pela experiência sensorial da imagem e do som.
Porém, embora a grande contribuição do americano para teoria narrativa seja sua análise poética e mimética, Bordwell também desenvolve um modelo de análise interpretativa diegética. Os quatro níveis de significado propostos por Bordwell são o significado referencial, que descreve o enredo e o contexto da história; o significado explícito, que é a mensagem principal declarada abertamente; o significado implícito, que é a interpretação mais profunda das relações entre os elementos do filme; e o significado sintomático, que liga o filme a ideias e valores culturais mais amplos, como os da época em que foi produzido.
Não há como não lembrar dos quatro níveis de significado propostos pelo estruturalismo: forma de expressão, substância de expressão, forma de conteúdo e substância de conteúdo. Sendo que nessa versão, os níveis mais profundos de sentido seriam psicológicos e universais; enquanto o modelo de Bordwell é relativista, equiparando a interpretação à opinião individual.
E esta é a contribuição metodológica de Bordwell: fornecer novos parâmetros de análise, ressaltando o filme como objeto de análise. Um modelo epistemológico de caráter cognitivo que organiza o visual e a linguagem em narrativas sem as teorias linguísticas do discurso.
Sua teoria, porém, possuem limites: a cegueira do “pano de fundo cultural” e a não interatividade do receptor. O visualizador apenas vê. Não tem afetividade, nem participa de comunidades interpretativas, pactos de leitura ou outras formas de observação intersubjetiva. Como também a dicotomia radical entre imagem e linguagem também perde o sentido com a interatividade digital ou no RPGs.
Penafria (2009) faz uma distinção importante entre crítica cinematográfica, que pensa o audiovisual a partir de seus contextos externos; e a análise fílmica, que foca na decomposição dos elementos internos do filme. Segundo essa lógica, existem quatro tipos de análise, que combinam fatores internos e externos:
Tabela 2 - Tipos de Análise
| Descritivo | Interpretativo |
Externo | Análise Textual | Análise Poética |
Interno | Análise de Conteúdo | Análise Fílmica |
Fonte: elaborado pelo autor com ajuda de IA
Assim, é possível conceber uma análise híbrida, mimética e diegética, integrada hermeneuticamente, semelhante aos 4 níveis de sentido do estruturalismo e de Bordwell, sem no entanto, pender nem para a superinterpretação teórica nem para a mera descrição cognitiva.
l A análise textual considera o filme como um texto, dividido em segmentos (unidades dramáticas/sintagmas). É descritiva e Diegética, pois contextualiza a referência. Pode-se dizer que corresponde a distinção entre o significante (forma material) e o significado (conteúdo mental).
l A análise de conteúdo é uma decomposição temática do filme, dividindo a narrativa por assuntos, objetos, imagens, metáforas - tanto do ponto de vista quantitativo como do qualitativo, de como o tema é tratado. É descritiva e Mimética, pois busca como os sentidos internos atingem o espectador.
l A análise fílmica (ou da imagem e do som) vê o filme como um meio de expressão. A decomposição da imagem (fotografia, enquadramento, composição, ângulo) e do som (trilha musical, sonoplastia, áudio off e in) se completam na definição da estrutura do filme (planos, cenas, sequências). Em nossa ótica, essa forma de análise distingue três códigos integrados e é mimética e interpretativa.
l A análise poética. Esta análise entende o filme como uma programação/criação de efeitos de sentido. É uma análise diegética e interpretativa.
Após uma pesquisa exploratória de meses das séries audiovisuais do K-drama, de observação assistemática de um recorte aleatória, identifica-se elementos narrativos nos quatro níveis de interpretação :
Tabela 3 - Análise e elementos narrativos
Níveis | Elementos simbólicos-narrativos |
Análise textual | o conteúdo temático multi-género |
Análise de conteúdo | o foco e a invisibilidade |
Análise fílmica | o roteiro alternando contemplação e ação e trilha de áudio como forma de imersão emocional na narrativa |
Análise poética | o protagonismo coletivo e a adversidade como antagonista |
Fonte: elaborado pelo autor com ajuda de IA
Vejamos cada uma dessas características.
3. Conteúdo temático multi género
Análise textual significa distinguir o Significante (aspecto material do Signo) do Significado (seu conteúdo mental). E, nesse aspecto, há uma diferença bem marcante. O dorama é sempre ‘sobre algo’, com um tema dramático específico, com historias de amor trágicas, conflitos familiares, segredos de nascimento, enfermidades terminais e dilemas morais. Esses temas interpessoais dramáticos coexistem com sub-gêneros: séries históricas, ambientadas em nichos esportivos (esgrima, arquearia, futebol), séries sobre o ambiente escolar. Algumas séries visitam um mesmo universo narrativo. Joseon, por exemplo, é uma dinastia, um reino, um período histórico, mas, sobretudo, um espaço mítico, como o sertão ou o velho oeste. A ilha de Jeju, destino turístico tradicional, também é um lugar comum entre doramas românticos ambientados no cotidiano atual.
No ocidente chamamos de ‘narrativa de vingança’ às histórias em que o personagem principal sofre uma injustiça e retorna para se vingar - como no romance do Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Nos doramas, no entanto, uma narrativa de vingança é uma história que discute a vingança (o “olho por olho, dente por dente”) como um tema, vendo como vários personagens lidam com ela, quando a vingança é legítima e quando não, etc - como nas séries The Glory (2022) e Revenge of Others (2022).
Pode-se inclusive pensar uma classificação dos quatorze (14) melodramas coreanos assistidos por tema.
Tabela 4 - Classificação de melodramas coreanos por tema
TIPO | ELEMENTO PRINCIPAL | EXEMPLOS |
Romántico | Género que prioriza a jornada do casal em um mundo repleto de adversidades, | A Thousand Days' Promise (2011); Winter Sonata (2002); I'm Sorry, I Love You (2004). |
Familiar | Com ênfase nas relações familiares entre pais e filhos, mães, irmãs e em personagens órfãos. | The Real Has Come! (2023); e Smile, You (2010). |
Makjang | Género misto com a comédia popular, com heróis virtuosos versus vilões malvados; tramas exageradas, viradas dramáticas e situações de alto impacto emocional. Passam na TV de sinal aberto todos os dias, com atores menos conhecidos. | The Penthouse (2020-2021): The World of the Married (2020). The Second Husband (2021) |
Melodrama Sageuk | Género romântico misto com filmes históricos, podendo ter elementos de viagens no tempo e mudanças de corpos entre os personagens. | Mr. Sunshine (2018); The Red Sleeve (2021). |
Melodrama Médico | Género que combina romances com mortes e perdas clínicas em ambientes hospitalares. Vários tem ‘easter eggs’ sobre doenças e cirurgias ultra-realistas. | Scent of a Woman (2011) Dr. Romantic (2016-2023). |
Melodrama de Venganza | Género que enfatiza a luta entre os personagens e se combina com outros elementos | The Glory (2022); Revenge of Others (2022). |
Fonte: elaborado pelo autor com ajuda de IA
Feita essa análise geral do Kdrama como texto, o segundo passo é a análise da ocorrências e recorrência de conteúdo, isto é, identificar os elementos que se repetem nos diferentes enredos e, pelo lado contrário, aqueles que nunca são expostos, mas que existem, os que são “invisibilizados”. É claro que, para uma análise apurada de conteúdo, cada um das 14 séries deveria ser analisada isoladamente, mas como se trata de um estudo preliminar, destacou-se apenas as características mais gerais do conjunto.
4. Focos e invisibilidades
Muitos atribuem o sucesso do melodrama coreano a falta de cenas de sexo em sua narrativa romântica. É verdade que, principalmente após os anos 60 com a contra-cultura, as narrativas tornaram-se mais eróticas e sexuais. E também que as novas gerações, em resposta a essa saturação pornográfica provocada pela libertação de séculos de repressão, preferem as narrativas românticas que enfatizam a afetividade e os sentimentos. Mas, essa é apenas uma parte da verdade. A ênfase na afetividade tem um efeito de sentido terapêutico para mulheres e pedagógico para os homens através das inversões em relação aos modelos ideológicos de dominação de género. Mulheres fortes em posição de poder fazem par com homens inseguros e imaturos.
A comida é a grande estrela do audiovisual coreano. Está presente praticamente em todos os k-dramas, não apenas como parte do enredo, mas também como produto de marketing (pratos, receitas, cultura culinária) e até como merchandising (inserção comercial de marcas dentro da narrativa). A música pop coreana e a indústria de cosméticos também aparecem e financiam os k-dramas, mas o papel da comida com ênfase na cultura tradicional e em locais turísticos é de longe o elemento de visibilidade mais forte nas narrativas. As bebidas alcoólicas tradicionais - Soju (uma água ardente de batata doce) e Makgeolli (vinho de arroz) - são sempre consumidas alegremente sem censura (inclusive por personagens femininos de forma desmedida) em contextualizações positivas (ter coragem, superar limitações, falar a verdade) ou cómicas.
Tabela 5 - Análise de conteúdo por grupo temático de Kdrama
DORAMA | SEXO | ALCOOL | COMIDA | MÚSICA | POLÍTICA |
Romântico | 0 | 3 | 2 | 3 | 0 |
Familiar | 0 | 2 | 2 | 2 | 0 |
Makjang | 0 | 3 | 3 | 2 | 1 |
Sageuk | 0 | 2 | 1 | 1 | 0 |
Médico | 0 | 2 | 0 | 1 | 0 |
Venganza | 0 | 2 | 1 | 1 | 1 |
TOTAL | 0 | 14 | 09 | 10 | 01 |
Fonte: elaborado pelo autor com ajuda de IA
Particularmente não acho que os coreanos bebam menos que os brasileiros e imagino que os problemas decorrentes do consumo excessivo de bebidas alcoólicas seja o mesmo. Da mesmo forma, não acredito que os homens coreanos sejam menos machistas que os latinos. No entanto, a representação dessas questões nas narrativas audiovisuais não pretende retratar a realidade, mas intencionalmente modelá-la. Em nosso caso optamos por esconder não apenas o consumo de substâncias tóxicas como também nossa rica culinária; enquanto a narrativa melodramática coreana invisibiliza a sexualidade e ... a política.
A política é outra grande ausência no melodrama coreano. Aliás, embora as séries audiovisuais do sul não sejam assistidas na Coreia do Norte, é impossível deixar de imaginar que elas não são uma forma de propaganda ideológica de um estilo de vida híbrido entre o asiático e o ocidental. No entanto, esse ponto é completamente camuflado com o glamour e a afetividade. O K-drama Pousando no amor (ou Crash Landing On You) é um bom exemplo disso.
Seria necessário observar um número maior de elementos simbólicos narrativos - situações interpessoais, metáforas (o guarda-chuva como proteção), merchandisings (anúncios incorporados à narrativa), entre outros; destacando não apenas sua ocorrência em cada série, mas também sua recorrência em cada episódio. Aqui a ideia é apenas genérica. E localizadas as ausências e presenças gerais desses elementos temáticos, chega-se ao aspecto fílmico propriamente dito.
5. Análise fílmica
Aqui a abordagem mimética de Bordwell se coloca e justifica para decomposição analítica dos elementos internos através do visualizador, com a posterior contextualização histórica. O visualizador como enquadramento é uma contribuição válida e útil, desde que não despreze o aspecto coletivo do processo cognitivo: a cultura. Aliás, enquanto a maioria das narrativas se baseia no modelo de três fases de Aristóteles, o Kdrama segue o modelo do kishõtenketsu, estrutura narrativa asiática, presente em contos, anedotas, fábulas - em que Ki é introdução; shõ, desenvolvimento; ten é a reviravolta; e ketsu, a conclusão. Ou seja: o “storytelling” (a estrutura narrativa) do Kdrama é diferente do das narrativas ocidentais.
Além da estrutura narrativa descontinua, de quatro tempos, existem ainda duas características fílmicas marcantes: o roteiro alternando contemplação e ação; e trilha de áudio como imersão emocional na narrativa. A influência do budismo e do confucionismo também pode ser observada, não apenas no conteúdo, mas na necessidade de oferecer uma narrativa mais contemplativa e menos ansiosa. Além de um ritmo de edição mais calmo, há inserção de clips musicais com cenas de alto impacto visuais (o primeiro dia da neve, o florescer das cerejeiras, o luar em um lago, etc). E não se trata apenas de músicas, toda trilha de áudio é artificialmente adicionada e mixada ao som direto durante a pós-produção. A sonoplastia é altamente narrativa e mantém o espectador emocionalmente ligado à história.
Segundo a perspectiva de Bordwell, o Kdrama não é um gênero, mas um estilo cinematográfico, embora no ocidente possamos entendê-lo como um movimento cinematográfico. O conceito de estilo (forjado a partir da análise fílmica visual) é central no método de Bordwell e procura uma abordagem histórica menos autoral para decisões técnicas e estéticas que formam os filmes.
Porém, como dissemos, a percepção descontextualizada do visualizador não é suficiente para entender a recepção coletiva da narrativa. É preciso levar em conta os diferentes pactos de leitura e seus significados específicos.
Por exemplo: enquanto dos doramas vendem o consumismo estilizado para os coreanos e chineses, os fãs da cultura coreana no Brasil e nos Estados Unidos são extremamente politizados, participando dos protestos do movimento Black Lives Matter e manifestações contra Donald Trump. No Brasil, fãs do BTS arrecadaram recursos para a proteção do Pantanal. Há diferenças políticas entre as recepções e entre os públicos alvo dos doramas na semiosfera ocidental e na semiosfera coreana (que não é progressista politicamente).
Os k-dramas, em sua origem, são produtos que nascem da intersecção de culturas. Se antes eles precisavam incorporar elementos ocidentais para atrair a atenção do próprio público local, agora também incidem sobre uma semiosfera de sentido que não se restringe à orientalidade. Essas trocas vão aparecer de maneira contínua e não somente com a ocidentalidade. Essas interações entre culturas e entre as formas de representação, condicionam o signo mulher a partir de uma única parte representável do objeto (OLIVEIRA, STEFENON; ABREU, 2021, 10) .
Oliveira, Stefenon e Abreu (2021, 4) acreditam que a representação da mulher preserva matrizes de uma determinada tradição asiática conservadora e reforça a divisão entre os géneros. No entanto, apesar dos elementos machistas tradicionais (mesclado com o marketing capitalista) para o público interno coreano, há também vários elementos progressistas para as jovens ocidentais de classe média alta dos países consumidores das culturas asiáticas.
Vistos os aspectos estilísticos e formais, observados os diferentes contextos de leitura; nossa análise chega agora à análise poética, aos actantes, os agentes da ação, e aos elementos simbólicos, psicológicos e universais embutidos na narrativa.
6. O protagonismo coletivo e antagonismo abstrato
Uma forma simples de definir o protagonismo feminino na jornada do herói é a mudança do antagonista: nas histórias patriarcais o inimigo é a natureza (e suas metáforas); na jornada feminina, o inimigo é a sociedade distópica e machista, a máquina e a razão sem sentimentos. De modo, que homens e mulheres podem ser protagonistas das duas jornadas, cuja a diferença estrutural seria inimigo-contexto.
Greimas (1976) tem um modelo mais complexo, mas ainda incapaz de caraterizar a mudança de valores nas narrativas atuais. Para ele, as narrativas são compostas de quatro ‘actantes’ principais: o objeto de valor, o sujeito (que deseja o objeto), o anti-sujeito (que impede a realização do desejo do sujeito) e o narrador. Nesse modelo, a natureza do objeto de valor determina de que tipo a narrativa é.
Através da compreensão do objeto de valor de uma narrativa é que podemos entender não apenas quem são os sujeitos da disputa e quais suas dificuldades, mas também quem é que está nos contando essa história, ancorada em que valores e com que objetivo.
A maioria dos triângulos amorosos das narrativa dos ocidentais são edipianos, formados por dois homens (o herói e o vilão) e uma mulher (disputada por ele), são uma replicação narrativa da tragédia de Tristão e Isolda. No melodrama coreano, porém, os vilões vão se humanizando no decorrer da narrativa e as falhas de caráter do herói vão aparecendo durante a trama. E o pior (ou o melhor): os dois se tornam amigos, tornando a escolha mais difícil. A vivência e o sofrimento torna-se uma oportunidade de amadurecimento para os envolvidos, independente do resultado.
A mulher, ao invés de vítima ou objeto de disputa, é colocada em uma posição de autonomia e decisão. Mas, não de uma protagonista única e solitária. No melodrama coreana, a narrativa não é uma jornada heroica épica como em Joseph Campbell nem uma história trágica clássica como em Aristóteles. É uma jornada coletiva: do casal, do grupo de amigos, da comunidade. Todos são protagonistas! Todos têm seus conflitos para resolver. Mas, todos também são vítimas da entropia fatal que a todos derrota. Por isso, mesmo quando acaba bem, o K-drama é uma celebração das perdas. “A adversidade como antagonista” significa que os personagens, na verdade, lutam contra a irreversibilidade do tempo, contra a implacabilidade das coisas, contra a dureza da vida que segue.
Existe ainda uma característica importante: é busca pela redenção. Muitas histórias têm dois enredos cruzados: um no passado (que vai sendo conhecido através de ‘feedbacks’ progressivos de vários personagens diferentes) e outro no presente (em que a história principal se desenvolve). Em muitos doramas, há segredos esquecidos (a memória é um tema recorrente) e um ‘karma’ no passado que explica e justifica a linha do tempo do enredo imediato.
Ao contrário da tragédia clássica, em que a catarse de expiação é ativada por uma antecipação constante do final inevitável, no melodrama coreana há viradas, surpresas, suspense. Os golpes do destino são inesperados. A catarse dorâmica é de redenção do passado e o final, uma espécie de balanço das derrotas sofridas e dos personagens sobreviventes.
Há também ‘viagens no tempo’ e ‘troca de corpos’ em várias séries, sendo Senhor Rainha ( ) e Bon Apetite, sua majestade (2025) - as mais conhecidas.
7. Considerações finais
Inicialmente, apresentou-se o Kdrama em seu contexto atual. Em seguida, se discutiu métodos de análise e foi definido um roteiro combinando contribuições de Greimas e Bordwell. O conceito de ‘Visualizador’ foi legitimado como ferramenta de análise fílmica, mas foi também relativizado frente aos contextos coletivos de recepção. No decorrer do texto, levantou-se os elementos narrativos (temáticos, estilísticos e simbólicos) de uma amostra aleatória de Kdramas - assistidos em sua maioria através da Netflix.
Também se defendeu que a mulher, como símbolo nas narrativas dorâmicas, tem uma interpretação progressista no ocidente, mas, no universo asiático apenas atualiza as relações tradicionais com o consumo.
Então, temos protagonistas coletivos e antagonistas abstratos. Os vilões são humanizados e tornam-se parceiros. Os coadjuvantes têm suas próprias jornadas. O sofrimento é generalizado.
E do ponto de vista teórico, pode-se dizer que, do mesmo modo que a imagem oscila entre representar o real (a mímese) e expressar, o sujeito (a diegese), o cinema apresenta duas tendências visuais contrárias indissociáveis: o realismo naturalista e o expressionismo em geral (incluindo todas as formas de desconstrução da realidade visual). Consequentemente, há também análises afinadas com os que acreditam retratar o mundo (as miméticas) e análises orientadas pelos que desejam reformatá-lo, ressaltando exageros (as diegéticas). Ambas são complementares e carregam dentro de si o reflexo da outra.
É a vida que imita a arte que imita a vida ou será que a arte que imita a vida que imita a arte? Quem veio primeiro: a narrativa ou o contexto? Esta é a dialética entre mimesis e diegesis. O contexto mostra; a narrativa conta. Mas, ambos são indissociáveis.
E essa foi nossa intenção aqui: abordar um estilo audiovisual contemporâneo nesse duplo viés.
Referências
AUMONT, J. & MARIE, M. (2009). A análise do filme. (M. Félix, Trad.). Lisboa, Portugal: Texto e Grafia.
BORDWELL, David & THOMPSON, Kristin. A arte do cinema. Tradução: Roberta Gregoli. São Paulo: Editora da Unicamp, 2013a.
_____ Sobre a história do estilo cinematográfico. São Paulo: Editora Unicamp, 2013b.
GOMES, Marcelo Bolshaw. O Sistema Narrativo da TV: Metodologia para leitura de tele séries" - revista ESTÉTICA, volume 1, páginas 45-56, 2019.
GREIMAS, A. J. Semântica estrutural. São Paulo, Cultrix & Edusp, 1976.
PENAFRIA, Manuela. Análise de filmes - conceitos e metodologia(s). In: VI Congresso SOPCOM, Lisboa, 2009. Anais eletrônicos... Lisboa, SOPCOM, 2009.
OLIVEIRA, Felipe Moura de; STEFENON, Eduarda; ABREU, Júlia Ozorio de. O dorama como texto da cultura: a mulher nas séries sul-coreanas mais vistas entre janeiro e junho de 2020. Semeiosis - Semiótica e Transdisciplinaridade em revista. V.9 N2 2021.
SANTIAGO JÚNIOR, Francisco das C. F. David Bordwell: sobre a narrativa cinematográfica. INTERCOM/UERJ. X Simpósio de Pesquisa em Comunicação da Região Sudeste - SIPEC. Rio de janeiro, 7 e 8 de dezembro de 2004.
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