Gabriel Oliveira
Um casal, seu único filho e um cachorrinho viajam para passar as férias em uma casa de veraneio, à beira de um rio austríaco. Ao notarem os novos vizinhos, dois rapazes que trabalham noutra casa ao lado decidem pregar uma "peça" naquela pobre família. Pouco a pouco, esgueiram-se para dentro da casa, dissuadindo-lhes de serem bons moços. Já instalados e sobre o controle da família, aqueles jovens iniciam uma série de desafios para que a família cumpra, em troca de suas vidas.
Impotentes, aqueles coitados inquirem: "por que vocês estão fazendo isso?", ao que são respondidos com um sonoro e debochado: "e por que não?".
Dirigido por Michael Haneke, o longa-metragem alemão Funny Games (1997), propõe-se a debater a violência enquanto entretenimento mórbido, debruçando-se sobre brincadeiras metalinguísticas para tanto. Além disso, consegue contornar na figura dos antagonistas àquela juventude desacreditada do final do séc. XX, filhos da pós-modernidade e da baixa coesão social.
Com um roteiro altamente consciente de si, Haneke faz questão de tirar o espectador da passividade que é praxe ao consumo audiovisual, apontando-nos diretamente o dedo - nem uma, nem duas, mas diversas vezes. Da morbidez que presenciamos, tornamos-nos cúmplices. Paul, um dos torturadores, é o único personagem que entende a diegese em que está inserido e deixa claro: suas ações são exclusivamente para entreter aos que assistem, pelo "bem" do roteiro.
Diante disso, a obra, consegue condicionar seus espectadores a não esquecerem o fato de que, por vontade própria, decidiram acompanhar aquela história moralmente questionável, sentando-se em seus sofás, enquanto comem e bebem algo. Sem reduzir a todos que assistem a meros sádicos, o roteiro ainda assim põe-nos a refletir até que ponto seríamos cúmplices daqueles abusos.
A apatia que somos levados a questionar em nós mesmos, também vemos encarnada nos dois torturadores daquela família. Paul e Peter, dois jovens-adultos que trabalham como caseiros na casa de veraneio vizinha da qual a família se hospeda. Ambos operam de forma cínica e cruel, deliciando-se nos atos perversos e desafios propostos à família. Essas atitudes, à primeiro momento, não aparentam possuir razão alguma para existir, mas observadas com mais atenção, permite-nos descortinar toda uma geração de sujeitos desacreditados e fragmentados socialmente.
Ano após ano, observamos a coesão das comunidades desfazendo-se, num processo que perdura há décadas, mas que tem sua gênese muito antes: no despontar do capitalismo e o individualismo que se seguiu após ele. Ao fim do séc. XX, esse processo ganhou um catalisador: com o crescimento exponencial de tecnologias de informação e a virtualização das relações. Com isso, a relativização encontrou espaço fértil para germinar na juventude que crescia à época. Sem perspectivas de um mundo melhor, sem verdades objetivas ou credo no qual se apegar, os jovens, portanto, viram-se perdidos. É dentro desse quadro social que Haneke apoia seus dois sádicos antagonistas, nessa relativização moral banhada num niilismo do qual não existe retorno à vista.
Amplificando o terror psicológico que sentimos estando sob o poder daqueles rapazes, todos os elementos técnicos convergem para um naturalismo, com cada detalhe acrescentando a esse magnetismo que prende-nos à tela, esperando temerosos até onde aquela crueldade ainda consegue ir.
A julgar como a audiência de Cannes recebeu o longa em sua estreia - com um terço da sala retirando-se da sessão -, em 1997, podemos notar o impacto que o filme tem em provocar e perturbar sua audiência. O desconforto escapa da tela e nós, espectadores, somos forçados a entrar em diálogo direto com os acontecimentos. Funny Games é mórbido, é cínico e também é inesquecível.

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