domingo, 2 de julho de 2023

após o sol

AFTERSUN


Marina Cínthia de Oliveira Dantas


Existe um clichê no cinema que com certeza você já viu: o personagem sofre uma desilusão amorosa, passa por uma dificuldade e sai para dançar. A cena é clássica, ambiente fechado e escuro, luzes coloridas, muita gente ao redor e o personagem principal no centro, dançando loucamente, olhos fechados, cabelos suados e bagunçados.

Em Aftersun, de Charlotte Wells, esse clichê é muito bem utilizado. Num filme que causa incômodo e angústia do início ao fim, é preciso esforço para entender o que está acontecendo nesses momentos em que a cena é escura e as luzes piscam. São flashes quase ininteligíveis nos quais se vê Calum dançando e Sophie, sua filha, já adulta, olhando para ele, inicialmente de longe.

O filme se passa num resort na Turquia, onde o pai (Calum, interpretado por Paul Mescal) e a filha (Sophie, interpretada por Frankie Corio) vão passar férias. A fotografia belíssima e permeada por tons de azul é intercalada com filmagens caseiras, feitas com uma câmera de mão dos anos 90. São muitas a cenas que se passam em completo silêncio e outras sob a trilha sonora original de Oliver Coate que transmite angústia e tensão mesmo em cenas muito alegres, com pulos na piscina e mergulhos no mar. A composição das cenas também não é óbvia, como quando Sophie observa uma conversa pelo buraco da fechadura ou quando vemos pai e filha conversar pelo reflexo de uma televisão de tubo desligada.

Desde o início, a conexão entre pai e filha, o afeto e o cuidado ali existentes tocam o telespectador. Mas aos poucos se vai percebendo que para além dessa relação existem dois indivíduos, cada um passando por seus processos. Sophie está entrando na puberdade e não quer brincar com as crianças mais novas ao mesmo tempo em que é difícil se enturmar com os adolescentes hospedados no hotel, pois estes ainda a enxergam como criança. Mas a sua atenção sempre se volta para a tensão sexual entre eles e ela acaba presenciando cenas de beijos e bebedeiras com bastante interesse.

Já Calum, por mais que tente não transparecer suas fragilidades para a filha, está claramente passando por um momento de sofrimento. Ele fuma, chora, dá um mergulho no mar a noite. Tudo escondido da filha.

O filme dá algumas pistas de que aquela viagem teria sido o último momento que passaram juntos, como o cartão postal que ele escreve para ela pedindo para que ela não o esqueça, a insistência para que ela aprenda a se defender, a despedida demorada e as possíveis tentativas de suicídio anteriores – o braço enfaixado, a entrada no mar – nos levam a crer que em algum momento próximo dali ele possa ter concretizado o que vinha tentando.

Calum se mostra um pai muito atencioso e cuidadoso, por isso o grande anticlímax do filme se dá quando ele deixa a filha sozinha, momento no qual ela se perde dentro do resort e quando consegue achar o quarto ela não tem a chave e ele está dormindo tão pesado que não abre a porta para ela. No fim, ela consegue entrar com ajuda do pessoal do hotel. Nesse momento, então, surgem sentimentos antagônicos: como um pai pode esquecer e se descuidar da filha dessa forma? E acabamos por lembrar que antes de ser pai Calum é um indivíduo lutando contra os seus próprios demônios e foi nessa mesma noite que ele entrou no mar, possivelmente com a intenção de se matar.

Na última noite da viagem Calum chama Sophie pra dançar, ele diz que adora dançar e faz alguns movimentos que segundo ela são vergonhosos. A música que está tocando é Under Pressure do Queen, uma música muito significativa para esse momento que fala sobre sentir o mundo desmoronar ao seu redor, e no final tem trecho que se encaixa muito bem: “porque o amor é uma palavra tão fora de moda/ e o amor te desafia a se importar com as pessoas a beira da noite/ e o amor desafia você a mudar nosso modo de nos preocupar com nós mesmos/ esta é a nossa última dança.”

A letra da música parece se encaixar muito bem nesse momento vivido por Calum em que há claramente um sofrimento e até uma intenção de tirar a própria vida, mas há também o amor que ele tem pela filha. 

Ao final da viagem eles se despedem e, para a Sophie adulta, parece que tudo que restou foi a fita gravada durante a viagem e esses flashes em que ela vê o pai dançar e que não sabemos se é real, sonho ou imaginação.

Não sabemos, portanto, o que realmente aconteceu e por mais curiosidade que isso possa causar, não acredito que seja esse o ponto do filme. Para mim é um filme sobre uma conexão muito bonita entre pai e filha, sobre uma troca e uma convivência entre duas pessoas que se amam e se sentem felizes com a existência uma da outra. Afinal como Sophie fala, mesmo que eles não estejam no mesmo lugar e não estejam realmente juntos, eles estão debaixo do mesmo céu, então eles estão mais ou menos juntos.

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