sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Ó Paí, Ó

Ó Paí, Ó (2007), de Monique Gardenberg


Maria Emanoela da Silva Cadó


“Ó Paí, Ó” é um daqueles filmes que parecem estar desde sempre no imaginário do brasileiro, especialmente o brasileiro negro e nordestino. Algumas cenas icônicas e piadas foram tão reproduzidas desde seu lançamento, em 2007, que a sensação é de que todo mundo já o assistiu. Entretanto, para a geração daqueles nascidos na virada do milênio, as memórias podem ser difusas; a verdade é que, à época do seu lançamento, eu era uma criança. E somente agora, aos 25 anos, resolvi parar para assisti-lo do início ao fim, e foi uma experiência e tanto.

O cinema brasileiro pós retomada trouxe uma grande variedade de histórias e abordagens, numa época em que as grandes produções internacionais eram marcadas pelo advento das tecnologias de efeitos especiais. Na falta dos recursos dos grandes estúdios, nosso foco era narrativo e de olhar. “Ó Paí, Ó” surge nesse contexto, com um elenco

recheado de atores globais, e destaque para Lázaro Ramos, Dira Paes e Wagner Moura. Trata da vida de um conjunto de moradores de um cortiço no centro histórico de Salvador, precisando lidar com as adversidades da vida na periferia em pleno Carnaval. É baseado na peça homônima escrita por Marcio Meirelles e estrelada pelo Bando de Teatro Olodum, ao qual o filme é dedicado nos créditos finais e do qual fez parte grande parcela do elenco.

O desenrolar dos fatos ocorre quando a dona do edifício, a evangélica fervorosa Joana (Luciana Souza), resolve interromper o fornecimento de água do prédio como forma de punir os moradores por estarem curtindo a festa. São vários núcleos que se conectam: Roque (Lázaro Ramos) é um pintor e aspirante a cantor, de coração bom e apaixonado pelo Carnaval, que se interessa por Rosa (Emanuelle Araújo), afilhada de Neusão (Tânia Tôko), dona do bar local que frequentemente reúne a comunidade em festa; Reginaldo (Érico Brás) é um malandro taxista que trai a esposa grávida Maria (Valdinéia Soriano) com diversas

mulheres, incluindo a travesti Yolanda (Lyu Arisson), também moradora do cortiço, e Psilene (Dira Paes), irmã de Carmem (Auristela Sá), enfermeira que realiza abortos clandestinos e mantém um pequeno orfanato em sua casa. Em meio a tudo, os pequenos filhos de dona Joana, os inteligentíssimos Cosme e Damião (Vinícius Nascimento e Felipe Fernandes) saem pelas ruas do Pelourinho buscando as mais diversas maneiras de ganhar dinheiro dos turistas escondidos da mãe.

“Ó Paí, Ó” é, também, um musical. Com coordenação de trilha sonora de Caetano Veloso, traz seleção riquíssima e com a qual muitos de nós podemos nos identificar; desde repertório original do Olodum, passando por Edson Gomes, Ilê Ayê e composições do próprio Caetano. São cenas lindíssimas, muito bem construídas e que se conectam muito bem com a narrativa da obra, de maneira direta ou indireta. A estrela é, obviamente, Roque, apresentado como um artista sonhador que interpreta boa parte da trilha sonora, mas o carisma dos demais personagens é evidente.

Ao longo do filme, somos expostos a momentos do cotidiano daquelas pessoas que expressam inúmeros problemas sociais. Com teor humorístico ou não, são cenas que não apresentam dificuldade em comunicar a forma como questões importantes como desigualdade social, violência urbana, racismo e lgbtfobia perpassam a vida daqueles moradores, quase sempre utilizando como contraponto o conservadorismo representado na figura de dona Joana, ou o fato de que o centro histórico de Salvador, especialmente em época de Carnaval, agora vive em função de agradar os turistas, enquanto não há esforço do poder público em melhorar a vida dos moradores, que vivem em constante situação de pobreza e violência. Dessa forma, evidencia-se o significado sintomático do filme, que se torna ainda mais claro com os tristes acontecimentos finais.

Conclui-se, portanto, que este é um filme muito importante. Tanto do ponto de vista da experiência que ele traz, quanto no que diz respeito ao que ele deixa; ao que fica no espectador. É um gosto agridoce, um gosto de Brasil mesmo. Ao fim, nos perguntamos: como pode um lugar ser tão especial e tão sofrido ao mesmo tempo? Como pode tudo simplesmente seguir, paralelo a uma tristeza e uma impotência assim, tão profundas? São perguntas que seguem diariamente sem resposta, mas que já se tornaram parte de nós. E o que nos resta é, realmente, seguir.

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