sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

a que horas ...

 ... ela volta?

MARIA CLARA DE MEDEIROS MORAIS

No longa-metragem brasileiro Que horas ela volta? lançado em 2015 e dirigido por Anna Muylaert, é apresentada a história de Val (Regina Casé), uma mulher que sai de Pernambuco em busca de melhores condições de vida para sua família e passa a trabalhar em São Paulo como babá e empregada doméstica para o casal Bárbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli), abastados moradores de um bairro nobre do Morumbi e pais de Fabinho (Michel Joelsas). A dinâmica da relação entre Val e seus patrões é estremecida após seus treze anos de serviço, quando Jéssica (Camila Márdila), sua filha, vem de Pernambuco na tentativa de ingressar na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), um dos mais concorridos vestibulares do país. A partir de então, desenvolve-se uma sequência de conflitos sociais, emocionais e psicológicos que exploram a tensão das relações de poder e submissão carregadas por esse núcleo de personagens.

A trama se vale de pequenos elementos que compõem o cotidiano da família de Bárbara e Carlos, que sustenta uma relação de dependência absoluta com sua funcionária - até mesmo para gestos mínimos, como levantar-se da mesa, ir até a geladeira, pegar uma lata de refrigerante e se servir. O filho do casal enxerga em Val uma figura materna, sentindo-se à vontade para trocar gestos de carinho e desabafar suas frustrações.

Tratada como “quase da família”, a personagem Val encontra-se integralmente a serviço doméstico, zelando pelo cuidado com Fabinho e pela manutenção da casa, dispondo apenas de um pequeno quarto em seus fundos, onde pode se recolher ao fim do dia. Apesar de apresentar uma boa composição na maior parte das cenas, há um certo retrato de exagero na personagem, especialmente em cenas de humor, levando em conta o estereótipo exótico incorporado aos nordestinos pela mídia brasileira.

De encontro à lógica de dominação, Jéssica almeja um lugar em uma das mais prestigiadas universidades públicas do Brasil, espaço em que até pouco tempo era completamente interditado a alguém de sua origem social. A personagem desafia os papéis sociais impostos a si, protagoniza comportamentos de ruptura com a ordem estabelecida e recusa-se a aceitar as normas de subordinação que já haviam sido incorporadas pela sua mãe.

Em Que horas ela volta? Anna Muylaert apresenta ao espectador duas fases distintas do processo de migração interna Nordeste-Sudeste: Val é a representação do imigrante colonizado, Jéssica representa o imigrante em processo de descolonização. A naturalização da condição de subalternidade vivenciada por Val é reflexo das estruturas remanescentes de uma sociedade escravocrata que perpetua relações de poder assimétricas que constituíram-se ao longo de uma história marcada pela dominação e exploração. Assim como Val, Jéssica não representa caso isolado, sua trajetória não deve ser confundida com uma narrativa meritocrática. A personagem interpretada por Camila Márdila representa uma categoria que é fruto das lutas sociais e de uma série de políticas públicas de inserção educacional e incentivo à região Nordeste, adotadas durante os anos 2000 no governo do Partido dos Trabalhadores.

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