segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

eu posso, viu?


 Mario Jardel Cunha Felipe

Eu posso te destruir. A minissérie criada por Michaela Coel traz em seu título esse aviso (ou ameaça) que brinca com os conceitos de poder e destruição. Quem são o sujeito e o objeto da oração? A protagonista? Seu agressor? Michaela? O público?

A coprodução BBC/HBO conta a história de Arabella, escritora de um best-seller que sofre para entregar seu segundo livro no prazo indicado. Numa noite ela decide sair com um amigo e no outro dia, têm flashbacks que a fazem pensar que ela foi sexualmente abusada. O piloto se sobressai ao não tratar Arabella como uma vítima definida pelo seu trauma. O episódio é sobre a vida dela: seu trabalho, suas amizades, seus relacionamentos; apenas na última cena é mostrado ao público um indicador do que de fato aconteceu, o que torna o momento ainda mais devastador. É uma vida interrompida.

Os episódios seguintes tratam de mostrar os primeiros passos após a descoberta de Arabella. A princípio, seu mecanismo de defesa a impede de reconhecer o que aconteceu. Bella não quer ser uma vítima. Seus amigos Terry e Kwame a ajudam a processar o acontecimento.

I May Destroy You aborda muitos pontos durante seus 12 episódios. Interseccionalidade, raça, gênero, classe, sexualidade, veganismo, mudanças climáticas, redes sociais; mas acredito que a série se centre em três temas: consentimento, poder, e a ideia de estar no controle.

Numa das melhores cenas da obra, após impulsivamente viajar para a Itália e invadir a casa de seu ex-namorado, Arabella anda em direção ao mar, sozinha, e se deixa cobrir pelas ondas. O mar é um símbolo para o poder que Bella carrega dentro dela, tanto para o bem quanto para o mal: a maior parte do nosso corpo é feita de água, mas a água também pode nos afogar. Somos feitos daquilo que pode nos destruir. Bella pode destruir ela mesma.

Os amigos de Arabella também ganham profundidade. Terry lida com a culpa de ter deixado a amiga de infância sozinha e tenta de toda forma trazer conforto à Bella, enquanto guarda para si um caso em que dois homens se aproveitaram sexualmente dela. Kwame é um jovem gay, confortável com sua sexualidade e que também é vítima de violência sexual durante a série. Através da história de Terry, Kwame e outros personagens a produção explora diferentes formas de violência, expandindo o entendimento cultural sobre consentimento, assédio e abuso sexual.

I May Destroy You também não se limita a mostrar Arabella como uma vítima perfeita. Em um dos episódio mais marcantes da obra, nos é mostrado um lado bastante desagradável de Bella, quando ela, corroída pelo trauma e apoiada por inúmeros seguidores nas redes sociais, abandona sua própria identidade, destrata seus melhores amigos e vira uma casca dela mesma, reduzida ao seu próprio trauma, o que a impede de olhar para si mesma e reconhecer seus defeitos.

Numa obra de inúmeros méritos como I May Destroy You, parece até fútil tentar apontar defeitos. A série possui alguns problemas de ritmo aqui e acolá: um acontecimento que não foi tão bem construído, arcos de personagens que terminaram de forma um tanto apressada. Mas é só isso. Nada que importe no esquema geral da série, principalmente porque Michaela guardou o melhor pro final.

Num último episódio transcendental, Michaela Coel brinca com as expectativas do público apresentando alguns finais possíveis para a história de Arabella. No primeiro, Bella, junto de Terry e outra amiga, se vinga do homem que abusou dela, o drogando e matando; no segundo, ao confrontar seu agressor, Bella começa a simpatizar com ele, antes dele ser levado pela polícia; e na terceira e mais onírica possibilidade, Arabella aborda seu abusador no mesmo bar em que o viu pela primeira vez, o leva para casa e transa com ele, numa posição dominante, e no controle da situação. Nenhum desses finais é o de Arabella de fato: no fim ela decide parar de visitar aquele bar. Bella encerra um ciclo de violência, tomando controle da sua própria narrativa.

No fim, I May Destroy You não é mais sobre destruição do que é sobre reconstrução. Muito mais que o trauma de Arabella, a série é sobre seu processo de cura. Assim, Michaela indica formas de lidarmos com nossos próprios traumas, para que não sejamos definidos por eles, e ganhemos controle das nossas próprias vidas.

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