terça-feira, 26 de julho de 2022

Euphoria:

Complexidade e subjetividades juvenis


TAIANE CRISTINA DE MEDEIROS SILVA  

Ao olharmos para o passado escolar é possível lembrarmos como um momento nostálgico que vez ou outra, queremos voltar (ou não). O contexto escolar é terra fértil para a série Euphoria da HBO lançada em 2019 e dirigida por Sam Levinson. Ao retratar temas maduros vivenciados por adolescentes de 15 a 18 anos, a série tem como foco principal a história de Rue (Zendaya) e a sua dificuldade em se recuperar do vício das drogas enquanto vive o longo luto pela perda do pai e as suas descobertas afetivas juvenis. Em uma sátira das séries adolescentes, com cores quentes e bem iluminadas, Euphoria nos traz tonalidades de cores frias, saturadas e com baixa iluminação, dando maior dramaticidade e seriedade à obra.

Rue Bennet é a narradora personagem a quem somos apresentados no primeiro episódio. Logo, sabemos que o seu primeiro contato com as drogas foi na infância com seu diagnóstico de Transtorno Obsessivo Compulsivo, e adiante, com os medicamentos do pai doente de câncer terminal. A história da série é contada sob seu ponto de vista intercalando os momentos bons ou ruins da sua trajetória. Entretanto, mesmo estando em contato com o narrador-personagem Rue, o espectador pode ter acesso ao narrador mediador que são as imagens e todos os elementos audiovisuais que ora ratificam a personagem principal, ora expõe sua hipocrisia quanto a sua própria narração na série auxiliando o narrador autor na sua intenção comunicativa. Ao nos depararmos com tais narrativas, o espectador também entra em crise ao aprovar ou desaprovar as condutas da jovem viciada.

Apesar dessa premissa, a série dá amplo espaço aos outros personagens adolescentes que contemplam o drama em suas duas temporadas lançadas. Cada episódio traz a narração de Rue, mas também expõe o perfil sociopsicológico dos seus melhores amigos e rivais, um por episódio conforme sua subjetividade e das relações com as quais constrói. É perceptível que a narração de Rue é uma narração mais madura em relação aos fatos narrados, o que nos faz presumir que existe um espaço temporal entre o que aconteceu (flashbacks). Com a narração sarcástica dela ao tratar do seu próprio inferno pessoal, o espectador acessa suas emoções e inclusive “se relaciona” com Rue quando a personagem quebra a quarta parede em diversos momentos ao longo da série.

Jules Vaughn (Hunter Schafer) é uma menina trans nova na cidade e na escola pela qual Rue se apaixona. A amizade é o primeiro vínculo entre as duas, e em nome desse relacionamento e a pedido de Jules, Rue tenta com mais afinco ficar sóbria, falhando diversas vezes. Nos primeiros momentos, somos apresentados a uma personagem meiga que conhece poucas pessoas ainda na cidade. Mas que ao longo da história, ela relata que se relaciona com homens mais velhos para afirmar a sua “feminilidade”, sendo contestada imediatamente por uma amiga: “Porque você tem que ficar com homens para se sentir mulher?”. Isso explica o fato de Jules não avançar no relacionamento amoroso com Rue no início da série, pois o seu foco está em avançar cada vez mais no seu processo feminino.

Já Nate Jacobs (Jacob Elordi) é apresentado como principal antagonista da série. Excessivamente cruel, destrutivo, manipulador e abusivo, esse personagem se mostra capaz de interferir negativamente na vida de todos ao redor para a conquista de seus interesses e manutenção do seu status quo na escola. Superficialmente, é um personagem inteligente, controlador e crítico, entretanto ao longo do drama percebemos que é extremamente inseguro e duvida da sua sexualidade, além de carregar traumas advindos das cobranças e vida dupla sexual do seu pai Cal Jacobs (Eric Dane) que esconde sua própria homosexualidade atrás de um pai de família heteronormativa. No ambiente escolar, Nate têm uma relação abusiva e de co-dependência com Maddy (Alexa Demie), que mente para ele ao dizer que era virgem na sua primeira relação sexual com ele. Maddy possui todos os atributos considerados femininos pela heteronormatividade (pele lisa, cuidados estéticos, ausência de pelos) e, além da ideia de posse, Nate a usa com pano de disfarce para seus desejos sexuais mais escondidos e camufla sua atração por Jules.

Se pensarmos no Quadrado Semântico Narrativo proposto por Algirdas Greimas, temos nesta narrativa já apresentada quatro actantes: Rue (sujeito), Nate (anti sujeito), Jules (ajudante) e objeto de valor (sobriedade de Rue). E além das descobertas afetivas de Rue Bennet e seus conflitos com as drogas, somos confrontados com as subjetividades de Jules e de Nate em relação à própria sexualidade e as aparências sociais. Jules, mulher trans, que vive posteriormente uma relação homosexual com Rue e Nate que tem uma relação abusiva com Maddy, contudo tem conflitos e desejos por Jules, que já se relacionou com seu pai Cal Jacobs.

Considerando Luiz Gonzaga Motta, o plano metanarrativo do enredo se concentra em temas sobre homoafetividade, reabilitação e uso abusivo de drogas, transexualidade, problemas de autoimagem, violência, hipocrisia social e luto. Complexidades e subjetividades que permeiam a fase da adolescência e juventude e que, sim, estão relacionados a problemas psicológicos e de saúde mental que podem afetar toda uma família ou sociedade. A série marca sua relevância não somente para o simples entretenimento do drama, mas para a interpretação, crítica e reflexão sobre como a sociedade lida com tais questões tão próximas ao nosso cotidiano.

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