sexta-feira, 29 de julho de 2022

veneno

 




Gil Araújo


A série Veneno é dirigida pela dupla Los Javis, a trama envolve a vida e morte de Cristina Ortiz Rodriguez, La Veneno, mulher trans que ganhou visibilidade na televisão espanhola e se tornou um grande ícone da cultura LGBTQIAP+. Em paralelo, a trama envolve a descoberta de Valéria e as maneiras de como sua vida se mistura com a de Cristina.

O encontro das duas protagonistas se configura através de uma reportagem sobre a saída de Cristina da prisão e sua estadia na cidade onde Valéria mora. A jovem que indiretamente acompanhou a trajetória de Cristina na televisão fica animada com a possibilidade de se encontrar com um de seus ícones. O encontro acontece, La Veneno e sua amiga Paca já reconhecem que Valeria una de nosotras - como citado pelas personagens. A partir disso, a história das duas se entrelaçam até a morte de Cristina.

Por ser uma minissérie há a preocupação de montar os arcos narrativos e finalizá-los, nesse sentido, Veneno é marcada por dois núcleos principais: a transição de Valéria e a visita ao passado de Cristina. Com isso, há na série muitos flashbacks enquanto La Veneno narra sua história de vida para a escrita do livro, planejado por Valéria, e, dessa maneira a narrativa vai se construindo através da transição de gênero de Valéria e a visita ao passado da estrela. O episódio 2 é muito provavelmente o mais representativo desse formato narrativo, intitulado "Un viaje en el tiempo" é todo concentrado na infância da protagonista e o começo da sua jornada de se entender mulher. Junto a esse, o episódio final fecha vários arcos narrativos incluindo o de ambas protagonistas de forma dramática e tocante.

O principal conflito apresentado na narrativa é a dúvida se a trajetória de vida de Cristina está sendo contada por ela sem mentiras. Assim sendo, toda a superfície da trama se estremece quando a dúvida aparece através da personagem Valéria, que confia e possui uma relação de afeto com o ícone da TV espanhola. 

Todavia, essa dúvida apresentada no episódio 5 só reforça o potencial dramático dessa biografia e passa a admitir que mesmo não sendo totalmente verossímil, a versão de Cristina perpassa por uma carga emocional muito pesada de lidar com seus traumas passados enquanto busca alcançar os holofotes da mídia novamente. O flashback de La Veneno ainda criança demarca muito bem como a fantasia se mistura com a dureza dessa história. Durante a cerimônia de primeira eucaristia Cristina corta um pedaço de sua roupa para simular um vestido e sobe ao altar da igreja vestida dessa maneira na frente de toda sua vila, enquanto ela narra a forma de como se sentiu preenchida em fazer aquilo, é representado na tela a cauda de um pavão abrindo suas penas quando se sente vista por todos naquele momento.

Nesse sentido, a produção da série acompanha o floreamento da narração de Cristina, tendo, por vezes, aspectos fantasiosos nos flashbacks, que funcionam quase como uma alternativa de evitar a dureza de uma vivência transgênero na Espanha. Assim sendo, a produção acompanha de maneira excelente a história que o roteiro constrói.

Quanto aos personagens, há três núcleos: a família de Veneno, sua comunidade e os profissionais envolvidos em seu período na televisão. 

O primeiro aparece primordialmente nas voltas ao passado que a série realiza, geralmente reforçando um lugar de dor, maus tratos e preconceito gerados principalmente pela figura de sua mãe. 

O segundo, representa, em primeiro momento, o desdém e a competição, principalmente no ambiente de prostituição que perpassa a história, mas logo acontece a reviravolta de se tornar um local de apoio e amor incondicional. 

Por fim, o terceiro núcleo, representa a oportunidade do sucesso que foi repentina e exploratória. Dessa maneira, pode-se concluir que todos os âmbitos da vida de Cristina lhe causaram dor de algum modo. A personagem se monta diante do telespectador enquanto um indivíduo que busca por amor e aceitação e, por poucas vezes, consegue alcançá-los.

Veneno é, por definitivo, uma excelente representação de como fazer uma série biográfica, em especial, de uma pessoa transgênero, todas as três atrizes que interpretam Cristina são trangêneros como a personagem bem como a parcela majoritária do elenco, demonstrando que a representatividade não se trata somente de contar essas histórias, mas também de como elas são contadas. A minissérie espanhola é um convite para que todos possam entender a jornada de viver seu próprio gênero e as batalhas que envolvem o processo de transição através do carisma e dor de La Veneno, a bomba da espanhola.

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