quinta-feira, 28 de julho de 2022

Trilogia da Terra

  


Uma análise comparativa dos filmes Terra para Rose (1987) O Sonho de Rose (2000) e Frutos da Terra (2008), de Tetê Moraes



Ygor Felipe Pinto


O presente trabalho tem por objetivo analisar os filmes da Trilogia da Terra: Terra para Rose (1987), O Sonho de Rose (2000) e Fruto da Terra (2008), da cineasta Tetê Morais. Para tanto, parto de uma análise comparativa entre os filmes, buscando apontar os procedimentos e elementos estéticos escolhidos pela diretora, identificando aproximações e distâncias entre as estratégias discursivas de cada narrativa. Como metodologia parto da análise pragmática de Luiz Gonzaga Mota (2013), utilizando seus procedimentos operacionais para debater a respeito dos sentidos expressados pela narrativa, levando em conta o contexto histórico de produção e as estratégias discursivas elaboradas pela diretora que dão sentido aos filmes.


Introdução

A Trilogia da Terra é uma série de 3 filmes documentais, produzidos pela diretora Tetê Moraes, em um espaço de tempo de 22 anos. Os filmes representam a história de luta do MST, sua evolução como organização e as ideologias que norteiam a lógica dos assentamentos, não o bastante, a partir do segundo filme, a diretora confronta os filmes anteriores aos personagens, medindo os efeitos recepção da narrativa do filme na vida dessas pessoas. O tempo tem papel fundamental no processo de construção discursiva, pois tanto os personagens quanto a diretora sempre estão em confronto com ele, questionando sempre sua posição anterior a tomadas de cenas.

O primeiro filme, Terra para Rose (1987) foi gravado em 1986. O filme conta a história do processo de ocupação da Fazenda Annoni, um latifúndio improdutivo de nove mil hectares, através da trajetória de Rose, uma militante histórica do MST, primeira mulher a dar à luz em um assentamento, que morreu em um suposto acidente, durante o processo de ocupação desta fazenda.

O Sonho de Rose (2000) narra a volta de Tetê Moraes aos assentamentos do Rio Grande do Sul, no filme a diretora reencontra os antigos militantes, evidenciando as transformações em suas vidas. Também encontra a família de Rose, descobre que após a sua morte, seu marido e filhos se afastam do movimento, indo morar em Porto Alegre. Lá ele reencontra Marcos, filho de Rose e primeira criança a nascer em uma acampamento do MST, que relata não lembrar da mãe e não ter sonhos. Após as gravações do filme, o MST decide conceder um lote à família de Rose, em função de sua luta e sacrifício pela reforma agrária, o que faz a família retornar aos quadros do movimento.

O último filme da trilogia é Fruto da Terra (2008), é um curta-metragem de 15 minutos, onde a diretora reencontra Marcos, na ocasião, estudante de medicina em Cuba. O filme aborda a trajetória de Marcus até chegar a universidade e o papel que os outros filmes possuem em sua vida. Também mostra um pouco das experiências de Marcos em Cuba.

Nessa análise irei aplicar o método de análise pragmática de Luiz Gonzaga Mota, para discutir a respeito das escolhas estéticas e conceituais empregadas pela diretora em seus filmes. Levando em conta que meu olhar sobre a narrativa se debruça sobre o contexto comunicacional da enunciação, onde tanto o contexto, quanto o de recepção devem ser levados em conta (Mota, 2013). Compreendendo que os discursos narrativos se constroem através de estratégias e astúcias comunicativas que decorrem dos desejos do sujeito narrador.

Ele recorre consciente ou inconsciente a operações e ardis linguísticos e extralinguísticos a fim de realizar certas intenções: as estratégias narrativas realizam-se em contextos pragmáticos e produzem certos efeitos de sentido de acordo com os contratos comunicativos e a burla consentida (e compreendida desses contratos cognitivos. A comunicação narrativa gera, assim, certo tipo de relação entre os sujeitos interlocutores: consciente ou inconscientemente o narrador investe na construção narrativa do seu discurso como um projeto dramático e solicita uma determinada interpretação de parte do seu destinatário (se essa interpretação se realizará de fato é outra questão. (Motta, 2013, p 126)

Irei adotar os procedimentos da Metodologia de Análise Pragmática consiste em um esquema de três planos de entendimento, sendo eles plano da expressão (linguagem ou discurso) corresponde à descrição, o plano da estória (ou conteúdo) equivale à análise, e o plano da metanarrativa (tema de fundo) o da interpretação. Em seguida defino os três níveis de narração, em que operam dentro das narrativas, sendo eles, narrador autor, narrador mediador e narrador personagem. Por fim iremos enquadrar os filmes nos sete movimentos narrativos: a intriga, o paradigma, os episódios, o conflito dramático, os personagens, as estratégias argumentativas e a metanarrativa.


Pano de expressão, estória e metanarrativa

O plano de expressão é como a narrativa é empregada, no caso das três narrativas analisadas, por serem filmes, é o audiovisual de não ficção (documentário).

Já o plano de conteúdo diz respeito a substância das histórias e o assuntos principais abordados, no casos dos filmes da Trilogia da Terra (1987 a 2008) é a Luta dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Rio Grande do Sul, focalizada na história da militante Rose, mártir na luta pela reforma agrária e símbolo do movimento e seus múltiplos (positivos e negativos) desdobramentos.

O plano meta-narrativo diz respeito aos subtemas e grandes temas empregados na narrativa, como por exemplo a “moral da história” ou quais discussões a narrativa que levar ao público. Nos filmes propostos para análise fica clara a centralidade de questões relacionadas à desigualdade no campo, concentração fundiária, falta de interesse de agentes políticos e violência policial e política, uma vez que trata da trajetória, até a pós a morte, da militante Rose, vítima de violência do campo, que faleceu sem ver seu sonho se realizar.


Níveis de narração

Como narrador-autor, temos a empresa que produz os filmes bem como suas fontes de financiamento. Quando falamos de contexto comunicacional esse narrador autor tem grande relevância, uma vez que, é quem financia e tem seus interesses expressos nas narrativas. Os filmes analisados foram produzidos pela produtora VemVer Brasil, de propriedade da diretora dos filmes, Tetê Moraes, assim podemos dizer que tanto o narrador-autor, quanto o narrador-mediador se coadunam, sendo eles a mesma pessoa. Contudo, precisamos identificar as linhas de financiamento e apoiadores financeiros das obras.

O primeiro filme (Terra para Rose, 1987) teve apoio da EMBRAFILME, FUNTEVÊ/TV-E RIO, FINEP, IBASE, SECRETARIA DE ATIVIDADES SÓCIO CULTURAIS/INACEN (Coordenadoria de mulher e cultura), FUNDAÇÃO NACIONAL PRÓ-MEMÓRIA, CEDI, CESE, MST-RS; Segundo filme (O Sonho de Rose 2000), com o apoio da Lei de Incentivo à Cultura n 8.313 (MINC), BILANCE, ICCO, INCRA/PNUD Terceiro filme (Fruto da Terra, 2008) teve apoio, AECID – Centro Cultural São Paulo, CTAV – Centro Técnico Audiovisual, MINC – Secretaria do Audiovisual.

Todos os apoios partem de instituições de caráter social e financiamento público, isso deixa claro o caráter militante dos filmes, sendo essas narrativas contestadoras da situação abordada, a desigualdade fundiária e a violência política no Brasil. Olhar as fontes financiadoras é um grande passo para entender a posição ideológica e a mensagem que as narrativas empregam.

Para identificar o narrador-personagem precisamos lançar um olhar aos elementos estéticos do filme. As Sonoras: Assentados, políticos, fazendeiros, transmitem memórias e opiniões, que reforçam a mensagem do cineasta, também são utilizadas como contraponto de opiniões na montagem dos filmes.

Outro fator importante é Voz Over (voz de Lucélia Santos) narra a história contextualizando, trazendo dados estatísticos, históricos e factuais. No primeiro filme ela é um elemento organizador das ações, empregada de uma forma muito parecida com a feitura de documentários expositivos e reportagens jornalísticas. Já no segundo serve como elemento de ligação entre os episódios. Por exemplo, quando a diretora vai de um assentamento a outro, a voz over traz alguma informação histórica, ou sobre a organização do MST.

O Arquivo é um elemento fundamental, tanto para a cobertura da voz over, quanto para contextualizações históricas. A partir do segundo filme ele ganha maior relevância pois a diretora sempre usa o arquivo para fazer comparações entre o antes e depois das personagens, colocando as personagens em choque com o passado.

A partir do segundo filme a presença da diretora é mais frequente, ela interage com as personagens aparecendo em cena com eles. Dessa forma a diretora se converte em personagem participando das ações em cena.

Tomadas de cenas em som direto: Quotidiano do acampamento, registros das negociações com a polícia, palavras de ordem, cantos. Essas cenas trazem o aqui e agora das ocupações, das marchas e o cotidiano dos acampamentos. Procedimentos esse remonta o perfil de produção do cinema direto e cinema etnográfico francês.


Os sete movimentos analíticos

1º Movimento: compreender a intriga como síntese do heterogêneo

Para compreender a intriga dos filmes foi necessário compreender suas partes e como elas interagem com o todo narrativo, para tanto, fiz uma decupagem dos filmes analisados, onde os filmes foram “desmontados” para identificar como se opera a intriga dessas narrativas.

Terra para Rose (1987) Foca na personagem Rose, mostrando suas posições e luta. É dividido em capítulos que narram a luta pela desapropriação da fazenda Anoni, Mostrando o nascimento do filho de Rose, o acampamento ao redor da fazenda, a caminhada até a cidade de Porto Alegre, a volta ao acampamento, a violência policial e a morte de Rose (atropelada por uma carreta desgovernada nas proximidades de Fazenda Anoni). A voz Over guia a história, sendo reforçada pelas imagens in loco dos eventos e as sonoras dos diversos agentes envolvidos.

O Sonho de Rose (2000) é focado na relação da cineasta (personagem) com as personagens. Faz usos de flashes backs, com imagens do filme de 1987 e atuais. A voz over surge possui papel de elemento de ligação. Ao invés de capítulos temos as visitas da cineasta aos assentamentos, apresentados como cartelas. O auge da narrativa está no encontro de Tetê Moraes com a família de Rose, principalmente a entrevista com o menino Marcos, que diz não lembrar da mãe, não sonhar e querer ser pintor como seu pai, totalmente afastado do antigo sonho de sua mãe de ter uma terra para plantar.

Frutos da Terra (2008) e foca na relação da cineasta com Marcos, filho de Rose e a primeira criança a nascer num assentamento do MST. Esse filme é um resultado do filme anterior, já que após as gravações o MST, resolveu acolher a família concedendo um lote de terra, o que fez toda a família voltar ao movimento Marcus faz curso de medicina em Cuba, onde as cenas são gravadas. A voz over agora é do próprio Marcos, que fala sobre as mudanças de sua vida, sua relação com a mãe e o MST. O momento atual de Marcos é sempre contraposto com cenas dos dois outros filmes.


2º Movimento: compreender a lógica do paradigma narrativo

A lógica do paradigma narrativo muda com a produção dos filmes. Enquanto o primeiro filme é centrado na trajetória de Rose, nos filmes seguintes o foco das ações são os encontros dos personagens com a diretora, que a partir daí levanta questões referentes aos trabalhos anteriores. A personagem Rose sempre é lembrada, em arquivos e depoimentos.

Os filmes vão se desdobrando uns nos outros, Terra para Rose, a luta de Rose por terra e sua trágica morte; O Sonho de Rose, retorno de Tetê Moraes para saber se o sonho de Rose havia se realizado e como estão os outros integrantes do MST registrados em 87 e como o movimento se desenvolveu nesse período; por fim Frutos da Terra, a realização do sonho de Rose, pois sua família estava assentada e seu filho estudando medicina em Cuba graças aos convênios do MST com o estado cubano.


3º Movimento: deixar surgirem novos episódios

Terra para Rose: 6 capítulos – Prólogo (sem cartela); Pressão; A Espera; O Confronto; O Sonho; A Trégua. As cartelas são igual com a imagem de uma carroça em cima de uma monte ao pôr do sol, só mudando os texto.

Sonho de Rose: Cada assentamento é um capítulo, onde ocorrem os encontros entre a diretora e as personagens.

Frutos da Terra: Curta metragem sobre a vida de Marcus em Cuba.


4º Movimento: permitir ao conflito dramático se revelar

Foram identificados os seguintes conflitos dramáticos nas obras?

Terra para Rose: A luta pela terra, sob a perspectiva da desigualdade e violência no campo. Personagem Rose personifica esse conflito.

O Sonho de Rose: A luta pela conquista da terra pela família de Rose, que até então havia deixado o movimento, ao final do filme o MST consegue assentar o companheiro e os filhos de Rose (filme como mediação da conquista familiar) Secundário: As transformações na vida das personagens do primeiro filme.

Frutos da Terra: Como Marcus lidou com sua presença nos filmes, com a perda precoce da mãe e como chegou a cursar medicina em Cuba. A importância de um movimento social organizado e multidisciplinar e sua militância no MST.


5º Movimento: personagem: Metamorfose de pessoa a persona

São três os personagens principais da série, Rose, Marcus e Tetê Moraes, pude identificar que a história gira em torno de suas ações e memórias, norteando assim a narrativa.

Rose, militante do MST que se torna mártir no primeiro filme. A construção dessa personagem é muito forte no primeiro filme, o que a torna um símbolo do movimento por sua luta e por sua entrega. A trajetória de Rose é central para pensar a série de filmes, sob sua órbita emergem outras histórias e temas a serem debatidos.

Marcos Tiaraju Correa da Silva, filho de Rose, primeira criança a nascer em um assentamento do MST. Sua trajetória é marcada pelo afastamento do movimento quando criança e seu retorno, que fica evidente no terceiro filme, como estudante de medicina do MST. Marcus simboliza as conquistas do movimento, seu sucesso e sua internacionalização.

A diretora Tetê Moraes, que aparece em imagem e interage em cenas com as personagens, troca com elas memórias, se tornando um elemento mediador, entre as obras.


6º Movimento: as estratégias argumentativas

São muitas as estratégias argumentativas para produção de um documentário. Aqui já escrevi um pouco sobre algumas dessas estratégias como a voz over e o arquivo. Também podemos encontrar nos filmes influências de diferentes escolas do cinema documentário como o cinema direto, que privilegia os encontros entre cineasta e personagens e depoimentos “no calor do momento” (ex manifestações). Outra estratégia vem de encontro com o documentário expositivo, onde a voz over guia as ações que aparecem na tela, construindo uma relação de som e imagem, por vezes de ilustração ou de oposição argumentativa.


7º Movimento: permitir às metanarrativas aflorar

Esses filmes têm por objetivo trazer uma visão positiva do MST, não entram em muitas polêmicas em relação ao movimento, as únicas que pude identificar são relacionadas aos assentados trabalharem em cooperativas ou para si, o que não apareceu, nas sonoras, ser algo tão polêmico entre as personagens. O que os filmes procuram transmitir é a questão da desigualdade no campo, simbolizada pela ocupação de áreas como da fazenda Annoni, um latifúndio improdutivo de 9 mil hectares de terras. Desse tema afloram outros subtemas como a falta de comprometimento político e a violência por parte do estado.

Nos dois últimos filmes a diretora expande essa visão e além das questões referentes a desigualdade, levanta-se questões relacionadas ao trabalho em cooperativas e agroecologia. Trabalhar de forma cooperada e unida sob uma base de preceitos agroecológicos, ou seja, alimentos limpos que respeitam a natureza tem sido uma das principais bandeiras do MST.


Conclusões

Os filmes da Trilogia da Terra, são um conjunto de filmes que abordam a luta e a organização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Podemos concluir que um filme é o desdobramento do anterior, evidenciando a busca da diretora por simbolizar o MST por meio dos personagens Rose e Marcos, mãe e filho que participam ativamente das lutas do movimento.

As propostas discursivas da diretora modificam muito a forma estilísticas dos filmes, enquanto Terra para Rose, temos um grande cuidado com planos (direção Walter Carvalho) e em registrar os vários momentos da personagem Rose e seu filho recém-nascido, com contextualizações históricas, trazendo para discussão a voz de autoridades, pesquisadores e políticos ou outros dois se baseiam nos encontros da diretora com as personagens e as mudanças em suas vidas após o lançamento do primeiro filme, assim. Terra para Rose é como um ponto de partida para as outras narrativas.

O sonho de Rose (2000) teve um papel importante para a família de Rose, já que a partir das gravações desse filme, os filhos e marido de Rose realizaram o sonho de ganhar um lote de terra no Rio Grande do Sul. Mostrando assim o potencial mobilizador e transformador que as narrativas audiovisuais possuem.

Por fim, Frutos da Terra (2008) simboliza a realização do sonho, a ascensão social de quem foi tão massacrado pela sociedade. Isso se dá pois o filme foca unicamente na relação de Marcos com os filmes realizados por Tetê Moraes, ela chega a dizer em um momento “esses são os filmes da sua vida”. Em entrevista em O Sonho de Rose, Tetê questiona Marcos se ele lembra de sua mãe, se tem sonhos e o que quer ser quando crescer, Marcos responde que não lembra nada da mãe, que não sonha e quer ser pintor como o pai. Em Frutos da Terra fica clara a mudança de perspectiva que o filme anterior gerou na vida da família do garoto.

Ainda há muito que se refletir sobre os filmes, transmito aqui uma primeira análise que será o primeiro passo para reflexões mais profundas, com base em entrevistas com a cineasta e com os personagens envolvidos.



Referências

MOTA, Luiz Gonzaga, Análise Crítica Narrativa - Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 2013, 254p

Filmes

Terra para Rose (1987) https://www.youtube.com/watch?v=1ZlqjK4K1-0

O Sonho de Rose (2000) https://www.youtube.com/watch?v=xP2Jm23RJ9Y

Fruto da Terra (2008) https://www.youtube.com/watch?v=EzGqqYJlWZI

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