domingo, 27 de novembro de 2022

Fatherhood

Paternidade é um filme sobre mães negras para homens negros
 

Anthony Rodrigues


O(a) leitor(a) que chegou até aqui após ver o longa Fatherhood (Paul Weitz, 2021), no catálogo da Netflix, pode ter estranhado o título do texto. Afinal, o filme estrelado por Kevin Hart e Melody Hurd, narra a história de um pai viúvo criando sua filha recém nascida. Acontece que, durante o enredo, nós percebemos que Matt - persornagem de Hart - é um homem negro descobrindo da forma mais intensa como é estar na pele de tantas mães negras. O fio condutor da narrativa é o processo de aprendizado de Matt em cuidar de sua filha sozinho, sem a presença da mãe.

Para começar a destrinchar como o filme assume essa roupagem crítica a partir da paternidade negra, devemos nos atentar sobre o fato de Matt e Liz (sua ex-companheira falecida) serem um casal negro de classe média. A socióloga estadunidense Patricia Hill Collins nos ensina que uma das características mais comuns das trabalhadoras negras e pobres nos Estados Unidos (e, arrisco dizer, também no Brasil) é serem mães solteiras involuntariamente. Já as mulheres negras que ascendem socialmente, alcançando condições de vida de classe média, acabam optando por serem mães solteiras, por se enxergarem entre o machismo e o racismo estruturais reproduzidos também por homens negros de classe média, que estão em relações afetivas com mulheres brancas. Em suma, de um jeito ou de outro, Fatherhood é sobre como a maternidade negra, dentro de relações heteronormativas, é quase sempre um processo solitário.

Essas características fazem Matt cumprir, simultaneamente, o papel de uma mãe negra e de um pai negro. Isto é, ao mesmo tempo em que precisa desempenhar suas obrigações profissionais para sustentar Maddy, Matt lida com um mundo totalmente novo e ainda raro para homens negros: o das fraldas, mamadeiras, brinquedos, choros, horas de sono, consultas ao pediatra, carrinhos de bebê etc. Não à toa, ele é pressionado por sua ex-sogra, mãe de Liz, para entregar a guarda de Maddy. Ao não aceitar, Matt é rodeado por uma descrença geral - entre amigos, família, trabalho e escola - de que seria realmente capaz de criar sua filha sozinho. Assim como para mães negras solteiras, ele precisa se desdobrar entre as obrigações relacionadas à sua filha, sua casa e seu trabalho, recebendo ajuda esporádica de amigos e familiares conforme vamos percebendo uma evolução no seu aprendizado.

Ainda que tenha uma narrativa ancorada num problema social grave, aos poucos vamos nos deliciando com a relação de afeto entre Matt e Maddy, que faz todos os obstáculos terem valido a pena. Conforme Maddy cresce, Matt vai colocando cada vez mais sua filha como prioridade em sua vida, mesmo diante de relacionamentos com outras mulheres e boas propostas de emprego. O filme, então, vai acumulando cenas lindas entre os dois, inclusive as de suas brigas, consideradas normais numa relação entre pai e filha. No percorrer da narrativa, também acompanhamos como Maddy vai se conscientizando cada vez mais da importância da presença afetiva paterna, principalmente tratando-se de uma família negra.

Por fim, destaco como o filme utiliza bem, em alguns momentos, de um ritmo mais acelerado na montagem para transmitir um sentimento de leveza e comicidade nas situações de destreza de Matt com Maddy. Como na cena do supermercado, onde Matt esquece Maddy no estacionamento e volta para buscá-la ao som de hip-hop. É como se o filme tivesse nos dizendo o tempo inteiro: “tá tudo bem, você está apenas aprendendo a ser pai e vai dar tudo certo”.

Por mais que, na minha opinião, a direção e a montagem pudessem entregar uma carga emocional maior, lançando mão de planos-sequência mais longos, sobretudo em diálogos conflituosos; penso que o filme entrega um tom dramático na medida certa: de conteúdo profundamente sociológico e com boas doses de entretenimento e de cinema de afeto. É um filme, como indiquei no título, sobre mães negras para ser assistido por nós, homens negros. E é por isso que acredito no poder de reflexão que uma boa representação negra nas artes pode gerar. Em Paternidade, nós homens negros recebemos diversos socos na cara, assim como Matt na diegese ficcional e muitos outros que vivenciaram/vivenciam isso na vida real. Resta saber se também decidiremos fazer disso um processo longo e árduo de aprendizado.


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