quarta-feira, 30 de novembro de 2022

US


Erica Beatriz Teixeira De Souza


Jordan Peele, é um Ator, Roteirista e Produtor americano que fez sua estreia nos cinemas com o filme “Get Out” em 2017, redefinindo o gênero do terror com uma produção moderna, e cheia de críticas sociais. Em 2019, com seu longa metragem “Us”, Peele mostra uma evolução positiva do seu trabalho em amplas direções, deixando claro que ele têm algo além de uma história de terror para contar ao seu público.

“Us” começa em 1986, onde uma garotinha (Adelaide) se diverte no parque de diversões Santa Cruz Beach Boardwalk com sua família. Ao se afastar de seus pais em um momento de distração, Adelaide perambula sozinha pelo parque até se encontrar dentro de uma casa de espelhos. Confusa e cercada por seus próprios reflexos ela nota que um deles na verdade é uma outra versão dela, Adelaide foge com medo e se torna uma criança reclusa por causa do trauma.

Anos se passam até os dias atuais, e somos reapresentados a uma história típica de férias de verão, na qual Adelaide, agora já crescida, leva sua normal família para o lugar onde vivera seu maior trauma. Tudo está bem até que de repente em uma noite, uma outra versão nada normal de sua família (Doppelgängers), aparecem em sua casa usando macacões vermelhos e tesouras afiadas, a partir deste momento o caos é instaurado, lutas, perseguições, agressões e diálogos profundos preenchem a história, dando pistas sensoriais de que algo está errado no mundo.

Em “Us”, a família de Adelaide vive o sonho americano, Gable (marido de Adelaide) durante a maior parte do filme usa um moletom de Howard, um lembrete da prestigiada e histórica universidade na qual ele se formou, passam o verão em uma segunda casa destinada às férias, e ainda possuem um barco. Mas claro, estão sempre se comparando a outra família e tentando acompanhar o estilo de vida de seus amigos.

Mesmo com todos esses clichês, Peele consegue trazer para a sua obra um tom experimental e personagens interessantes que são constantemente colocados à frente de situações intrínsecas. A invasão domiciliar abordada no filme já é um subgênero reconhecido no terror, todo mundo tem medo da violação de sua casa, a ideia de que um lugar onde você teoricamente deveria estar seguro possa se tornar uma cena de crime é aterrorizante e o diretor consegue sofisticar esse cenário adicionando os Doppelgängers, tornando a narrativa chamativa e incomum ao redefinir a ideia de uma luta contra uma figura desconhecida ou sobrenatural, pois neste cenário seu inimigo é você mesmo.

O filme é sobre muitas coisas mas principalmente sobre o contexto da dualidade, o longa é repleto de de espelhos, desde a pequena Adelaide que encontra seu clone em um corredor cheio deles, até os outros personagens que se olham, são empurradas, e se assustam com seus próprios reflexos. São duas famílias, duas linhas de tempo e finalmente dois mundos. Gabe (o marido de Adelaide) enfrenta essa dualidade ao ser um homem negro nos EUA quando confronta os invasores de sua casa, ele é gentil e compreensível por alguns minutos mas ao ver que esta atitude não surtiu efeito, o vemos performar uma alternância de código linguístico, assumindo a postura de um homem grande, negro e intimidante em uma tentativa falha de afastar a misteriosa família de sua propriedade.

O ápice e momento mais perturbador desta dualidade, é quando cada membro da família olham nos olhos de seus clones e veem eles mesmos, desprovidos de linguagem, educação e de etiqueta para conviver em sociedade. Os coelhos presentes no filme também podem ser uma alusão a “Alice Através do Espelho e O Que Ela Encontrou Por Lá” de Lewis Carrol, no qual Alice atravessa um espelho e encontra um mundo onde tudo é o oposto do que deveria ser. Fica claro que cada frame é meticulosamente calculado, e nenhuma referência é por acaso.

Quando finalmente descobrimos a origem dos Doppelgängers, vemos que eles estão diretamente ligados aos seus originais e forçados a viver versões miseráveis de suas vidas. Esse é o principal motivo da tentativa violenta ascender a escada social, sugerindo que todo o sucesso dos originais seria baseado na falha dos clones. O diretor transcende a crítica direta, e ao ao invés de levantar novamente o tema do racismo, ele critica sutilmente o nosso modelo de sociedade, no qual enquanto alguns vivem uma vida confortável e de luxo , outros sofrem para que isso possa acontecer.

Como última revelação inquietante, percebemos a Adelaide clone na verdade trocou de lugar com sua original no dia em que se conheceram na casa de espelhos. Adelaide que nasceu no subsolo estava esse tempo todo atuando como protagonista de forma que questiona nossas posições sociais e sugere que qualquer ser humano, poderia se tornar um monstro violento se submetidos às torturas vivenciadas pela Adelaide original. Qual personagem, neste cenário, seria o vilão?

“Us”nos força a encarar dilemas morais e perceber como a dualidade é usada para explorar noções do que faz nós sermos nós, seria algo genético ou tudo depende das circunstâncias em que estamos inseridos? O filme é uma produção intimista que deve ser apreciada mais de uma vez, várias camadas visitam temas e interpretações diferentes, se recusando a entregar um final fechado, insinuando assim uma metáfora que pode vir a ser realidade, talvez nós sejamos os nossos piores inimigos.


Referências

GET out. Direção de Jordan Peele. Estados Unidos: Universal Pictures Home Entertainment, 2017. 1 disco blu-ray (104 min.).

US. Direção de Jordan Peele. Estados Unidos: Universal Pictures Home Entertainment, 2019. 1 disco blu-ray (117 min.).

CARROL, L. As aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através Espelho e o que Alice Encontrou Por Lá. Brasil: Editora Zahar, 2010.

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