Anita Maria Filgueira Lopes
Representando um dos “Brasis” que se entreolham, Bacurau carrega gêneros como os filmes de faroeste, de ficção científica e, em certa medida, docangaço. Um cinema que, à primeira vista, pode soar “tarantinesco” pelo sanguederramado, mas que pretende ir além disso. Lançado no Governo Bolsonaro , o filmeconsegue transpassar as influências hollywoodianas à medida em que se reafirmauma obra provocativa em um Brasil quase distópico: seja pelos livros queimados pelo prefeito da cidade, na ficção, seja pela tentativa de minar a cultura de um país — na realidade.
Bacurau traz à discussão o cinema-manifesto de Glauber Rocha ao resgatar os ideais do seu texto “A estética da fome”, que negava um cinema que tentava tornar as violências retratadas mais palatáveis. É um filme que nasce em um Brasil enfraquecido democrática e culturalmente, tornando-o mais forte e característico de um tempo político marcado por vieses anticientíficos, anticulturais e antipovos. Torna-se um filme delator de seu tempo e também propulsor de um cinema que comunica, seja se afirmando enquanto uma obra que subverte ou enquanto uma obra que reproduz teses ultrapassadas.
Quer dizer, ao satisfazer o olhar gringo com um filme sanguinário que mostra os trópicos dotados de selvageria, o que maximiza a visão colonizadora e imperialista do estrangeiro, Bacurau também pode encarnar o exato oposto de uma ideia de cinema que não pretende banalizar a violência. Pois, nesse caso, o filme é uma obra que se dispõe a mostrar o “inimigo” morto; que se dispõe a querer chocar o público com a cena das cabeças cortadas por Lunga, o “herói” da cidade.
Bacurau nos mostra um interior nordestino ultratecnológico cuja população descobre que misteriosamente sumiu do mapa; nos mostra que os habitantes parecem estar interconectados ideologicamente, de professores às prostitutas; nos mostra uma preocupação com a falta de água, com a precariedade da educação, da saúde, com forças paramilitares; nos mostra — no momento em que a cidade precisava ser “salva” dos invasores gringos — que a “Lei” ali, por unanimidade, era uma pessoa: Lunga. Uma espécie de “neo-cangaceiro” andrógino que performa um protetor insurgente de um povo que testemunha um momento histórico; nos mostra também — com crueza e sarcasmo — que os brasileiros brancos não são brancos o suficiente para os norte-americanos e europeus. Isto é, são resumidamente latinos e altamente descartáveis, assim como todo o restante, pelos ultraconservadores da trama.
Ainda assim, Bacurau pode ser interpretado como uma obra que reforça a ideia de um sertão primitivo, de violência animalesca, pois a matança e as cenas de sexo se transfundem, podendo contribuir para que o imaginário coletivo acerca do Nordeste seja mais uma vez alimentado por um produto cultural quebreinventa e sofistica os mitos fundadores dessa região — como a miséria, a violência, a seca. Diante do contexto político em que foi lançado o filme, de profunda permissividade da violência estatal e consequentemente social por parte da ultradireita, Bacurau também pode ser lido como uma obra que diz que o extermínio das forças inimigas pode ser uma solução; que a vingança é uma reparação histórica democrática. Em se tratando de um filme, é claro que esse jorrar de sangue — apesar de literal em cena — pode ser metafórico em sentido. Ou não.
Sendo assim, Bacurau é um exemplo de filme que será aclamado por uns grupos e odiado, deturpado por outros. É um filme que buscou se instituir enquanto uma resposta para tudo que estava acontecendo nos últimos anos, política e socialmente, legitimando o forte desejo social por vingança, por justiça com as próprias mãos, reafirmando o sentimento de revolta de uma parcela da população que queria ver o “inimigo” sendo derrotado. No entanto, o que fica para nós, espectadores, é a certeza de que uma produção artística assume o papel de aclarar as nossas miopias. Seja para interpretarmos o próprio produto, a sociedade ao nosso redor ou a nossa posição diante de tudo isso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário