sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Bacurau

Anita Maria Filgueira Lopes

Representando um dos “Brasis” que se entreolham, Bacurau carrega gêneros como os filmes de faroeste, de ficção científica e, em certa medida, docangaço. Um cinema que, à primeira vista, pode soar “tarantinesco” pelo sanguederramado, mas que pretende ir além disso. Lançado no Governo Bolsonaro , o filmeconsegue transpassar as influências hollywoodianas à medida em que se reafirmauma obra provocativa em um Brasil quase distópico: seja pelos livros queimados pelo prefeito da cidade, na ficção, seja pela tentativa de minar a cultura de um país  na realidade.

Bacurau traz à discussão o cinema-manifesto de Glauber Rocha ao resgatar os ideais do seu texto “A estética da fome”, que negava um cinema que tentava tornar as violências retratadas mais palatáveis. É um filme que nasce em um Brasil enfraquecido democrática e culturalmente, tornando-o mais forte característico de um tempo político marcado por vieses anticientíficos, anticulturais antipovos. Torna-se um filme delator de seu tempo e também propulsor de um cinema que comunica, seja se afirmando enquanto uma obra que subverte ou enquanto uma obra que reproduz teses ultrapassadas.

 Quer dizer, ao satisfazer o olhar gringo com um filme sanguinário que mostra os trópicos dotados de selvageria, o que maximiza a visão colonizadora imperialista do estrangeiro, Bacurau também pode encarnar o exato oposto de uma ideia de cinema que não pretende banalizar a violência. Pois, nesse caso, o filme é uma obra que se dispõe a mostrar o “inimigo” morto; que se dispõe a querer chocar o público com a cena das cabeças cortadas por Lunga, o “herói” da cidade.

Bacurau nos mostra um interior nordestino ultratecnológico cuja população descobre que misteriosamente sumiu do mapa; nos mostra que os habitantes parecem estar interconectados ideologicamente, de professores às prostitutas; nos mostra uma preocupação com a falta de água, com a precariedade da educação, da saúde, com forças paramilitares; nos mostra no momento em que a cidade precisava ser “salva” dos invasores gringos que a “Lei” ali, por unanimidade, era uma pessoa: Lunga. Uma espécie de “neo-cangaceiro” andrógino que performa um protetor insurgente de um povo que testemunha um momento histórico; nos mostra também com crueza e sarcasmo que os brasileiros brancos não são brancos o suficiente para os norte-americanos e europeus. Isto é, são resumidamente latinos e altamente descartáveis, assim como todo o restante, pelos ultraconservadores da trama.

Ainda assim, Bacurau pode ser interpretado como uma obra que reforça a ideia de um sertão primitivo, de violência animalesca, pois a matança e as cenas de sexo se transfundem, podendo contribuir para que o imaginário coletivo acerca do Nordeste seja mais uma vez alimentado por um produto cultural quebreinventa e sofistica os mitos fundadores dessa região como a miséria, violência, a seca. Diante do contexto político em que foi lançado filme, de profunda permissividade da violência estatal e consequentemente social por parte da ultradireita, Bacurau também pode ser lido como uma obra que diz que o extermínio das forças inimigas pode ser uma solução; que a vingança é uma reparação histórica democrática. Em se tratando de um filme, é claro que esse jorrar de sangue apesar de literal em cena pode ser metafórico em sentido. Ou não.

Sendo assim, Bacurau é um exemplo de filme que será aclamado por uns grupos e odiado, deturpado por outros. É um filme que buscou se instituir enquanto uma resposta para tudo que estava acontecendo nos últimos anos, política e socialmente, legitimando o forte desejo social por vingança, por justiça com as próprias mãos, reafirmando o sentimento de revolta de uma parcela da população que queria ver o “inimigo” sendo derrotado. No entanto, o que fica para nós, espectadores, é a certeza de que uma produção artística assume o papel de aclarar as nossas miopias. Seja para interpretarmos o próprio produto, a sociedade ao nosso redor ou a nossa posição diante de tudo isso.

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