terça-feira, 25 de novembro de 2025

Trainspotting

Iago Alves Bezerra 

Lançado no auge dos anos 90, Trainspotting permanece até hoje como uma das obras mais importantes do cinema britânico, justamente por tocar em conflitos que não se restringem ao seu tempo. 

A história acompanha Mark Renton, interpretado por Ewan McGregor, e seu grupo de amigos em Edimburgo, jovens envolvidos em um cotidiano de vício, melancolia e escolhas autodestrutivas, enquanto tentam, entre avanços e recaídas, romper o ciclo da dependência em heroína e encontrar algum sentido fora dele. O título, além de remeter ao hobby de “caçar trens", é um termo escocês usado pejorativamente para pessoas consideradas perdidas na vida ou à deriva, e sugere trajetórias repetidas como trilhos que levam sempre ao mesmo destino. A narrativa se apresenta desde o início como uma experiência sensorial e que traduz o estado de fuga constante desses personagens.

A compreensão dessa força estética e temática é ampliada se voltarmos às décadas de 50 e 60, época em que a geração beat transformou inquietação, rebeldia e errância em uma filosofia de vida. O autor Jack Kerouac, escreveu sobre jovens que recusavam a linearidade da rotina e buscavam intensidade. Seu livro On the Road influenciou ícones como Bob Dylan, cuja postura rebelde representava esse espírito de ruptura, da contracultura. Trainspotting dialoga com essa herança, embora a devolva em forma de um espelho estilhaçado por um reflexo pessimista. Em vez da estrada que oferecia descoberta, o diretor nos apresenta personagens que tentam escapar, mas acabam presos a si mesmos. A suposta liberdade se torna outra espécie de confinamento.

Danny Boyle, constrói aqui um universo que mistura brutalidade e humor ácido como equilíbrio narrativo. Sua câmera inquieta dá ritmo ao caos e a montagem frenética cria uma sensação quase alucinógena. A direção de arte reforça esse clima com interiores claustrofóbicos, cores saturadas e espaços que parecem se contorcer junto aos personagens. A famosa narração em off de Renton funciona como guia desse labirinto mental e se integra à cena, evitando explicações supérfluas e que consegue traduzir de maneira cirúrgica a lógica fragmentada de alguém que tenta justificar a própria fuga. 

Outro ponto forte do filme, é a atuação de Ewan McGregor que para interpretar o protagonista se manteve em contato com adictos reais para representar de modo fidedigno as sensações físicas e psíquicas de cada dose. 

O resultado é um Mark Renton cuja vulnerabilidade não soa fabricada, mas emergente de uma experiência interna que o ator consegue traduzir com precisão assustadora. Em alguns trechos, porém, o filme se apoia tanto em recursos visuais marcantes e em um ritmo instigante que a representação da dependência pode parecer menos mórbida do que de fato é. Essa aproximação, por vezes, suaviza a brutalidade do cotidiano retratado e cria uma linha tênue entre a exposição crua do vício e uma possível romantização.

Duas décadas depois, Danny Boyle revisita esse universo com T2 Trainspotting, reencontrando Renton e seus antigos companheiros já marcados pela passagem do tempo e pelas escolhas que moldaram suas vidas. A energia caótica da juventude cede espaço para um tom mais sóbrio e melancólico que, apesar de se manter bem humorado, observa a vida adulta com seus desencantos e a dificuldade de preencher vazios que antes pareciam ter solução fácil. Embora não alcance o impacto cultural do primeiro filme, a sequência oferece um fechamento digno, consciente da própria distância e honesto o suficiente para encerrar esse ciclo sem se apoiar apenas em nostalgia.

Assistir ao filme nos provoca um certo incômodo, pois acompanhamos a autodestruição dos personagens com a mesma impotência daqueles que convivem com alguém preso ao vício. Não se trata de uma história de superação, mas de ciclos que se repetem e que nem sempre a convicção em encerrá-los é real. Trainspotting permanece perturbadoramente atual porque reflete questões que atravessam gerações como a alienação, a pressão por sucesso e a vontade de escapar de uma vida que parece sem sentido. 

Se a geração beat buscava liberdade na estrada aberta, Mark Renton e seus amigos tentam encontrá-la na heroína e descobrem que cada dose cria um novo limite, não uma saída. A jornada do protagonista mostra que a liberdade pode, ironicamente, se transformar em outra forma de aprisionamento. Nesse sentido, a obra supera a condição de retrato geracional e se afirma como uma experiência visceral, que reverbera porque nos imerge, sem filtros, na sensação de estar preso a um ciclo do qual poucos realmente conseguem escapar.

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